Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 42-46
1º DOMINGO DA QUARESMA – 6 de março
Por Marcus Mareano
Viver a fé nos desertos da vida
I. INTRODUÇÃO GERAL
O 1º domingo da Quaresma nos sugere o que deve ser este tempo propício: um deserto para nos fortalecer no combate contra o mal. Assim, recordando, neste tempo litúrgico, os anos de Israel no deserto, de Moisés e Elias no monte e os dias de Jesus no deserto, fortalecemos nossa opção de fé em Deus.
Os textos da liturgia da Palavra deste domingo nos convidam à aventura de confiar em Deus. A primeira leitura lembra a ação de Deus na história do seu povo, a qual faz Israel oferecer agradecido as primícias ao Deus libertador. A segunda leitura destaca a importância da confissão de fé em Jesus como Senhor, pois Deus o ressuscitou dentre os mortos. Finalmente, no Evangelho, Jesus confirma sua fidelidade a Deus e sua adesão ao seu projeto, recusando as seduções de satanás. A fé se apresenta como uma possibilidade de escolha a quem a deseja. Quem crer, experimentará as maravilhas de Deus.
Na Igreja primitiva, a Quaresma era o tempo de preparação para a iniciação cristã (batismo-crisma-Eucaristia). Os neófitos se preparavam longamente, por meio de ensinamentos, penitências, estudos, orações e práticas espirituais diversas. A finalidade era o compromisso com Cristo. De igual modo, somos chamados a renovar nosso comprometimento com Cristo, por meio dos exercícios quaresmais.
A opção por Jesus e seu Evangelho não ocorre apenas uma vez na vida, em algum momento do nosso passado. Ela deve ser contínua, renovada cotidianamente, pois sempre temos diante de nós diferentes possibilidades. Deus é a melhor de nossas escolhas. Como diz uma oração conhecida de Santa Teresa de Jesus: “Quem a Deus tem, nada lhe falta: só Deus basta!”.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 26,4-10)
O livro do Deuteronômio se apresenta como um grande discurso que ocorre entre a chegada do povo à fronteira da Terra Prometida e a entrada nela e sua conquista, narradas em Josué e Juízes. É uma despedida de Moisés, com teor de recordação do passado e exortação para o presente.
O trecho da liturgia deste domingo se situa em uma dessas recomendações de Moisés para quando o povo entrar na Terra Prometida. Da mesma forma que os primogênitos humanos e animais pertencem a Deus (Ex 13,11), as primícias do solo devem ser oferecidas ao Senhor (Ex 22,28; 23,19; 34,26; Lv 2,12.14; 23,10-17; Dt 18,4). A leitura narra como deve ser essa oferta na nova terra.
O sacerdote se responsabilizará por receber do povo para levar até o altar do Senhor (v. 4). Em seguida, Israel deverá recordar a própria história, reconhecendo a ação libertadora de Deus. Os v. 5-9 resumem os feitos de Deus no passado, com destaque à libertação da escravidão do Egito.
Recorda-se que os pais eram andarilhos errantes até chegar ao Egito. Depois, esses pais se multiplicaram e se tornaram uma nação forte e numerosa, a ponto de causar ameaças aos egípcios. Por isso, estes os escravizaram, para que não se rebelassem. Então, os israelitas clamaram ao Senhor. Ele agiu, fazendo o povo sair daquela opressão e conduzindo-o a um lugar onde mana leite e mel (v. 5-9). Essa “confissão de fé” se desenvolve por conta da memória do povo e do reconhecimento da atuação de Deus na história.
Os 40 anos passados pelo povo no deserto foram um tempo oportuno para a experiência de fé. Deus se manifesta nos acontecimentos, na vida e na nossa percepção das coisas. Tal como o povo de Israel, olhemos nosso passado e nosso presente como narrativas das maravilhas de Deus realizadas em nosso favor, a fim confessarmos a fé no Senhor.
2. II leitura (Rm 10,8-13)
O texto da carta aos Romanos apresenta o efeito da confissão de fé em Cristo. A passagem se inicia citando Dt 30,14, segundo a qual a Palavra de Deus está próxima, ao alcance de todos (v. 8). Essa Palavra de Deus é pregada por Paulo para gerar a fé entre os ouvintes.
O apóstolo explica que, se alguém confessar Jesus como Senhor e acreditar que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo (v. 9-10). A fé é uma adesão pessoal, desde o interior humano, que se exprime nas palavras e, sobretudo, na nova vida, transformada pela experiência do crente.
Para fundamentar o que disse, Paulo recorre novamente às Escrituras. Dessa vez, ele cita Is 28,16, que diz que quem crê não será enganado. O ato de crer implica confiança, por isso Deus é o único destinatário do nosso movimento de fé. Ele não decepciona.
Por fim, a passagem selecionada para a liturgia deste domingo conclui falando da indistinção entre os que creem no Senhor Jesus. Não há diferença entre judeu e pagão. Todos são salvos pela fé em Cristo, e não por pertencer a uma raça ou classe social (v. 12-13).
Se tínhamos, na primeira leitura, a fé por causa da libertação da escravidão do Egito, vemos, na segunda leitura, a fé decorrente da salvação dada por Deus em Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos. Em ambas as leituras, percebe-se a salvação como ação de Deus na história humana.
3. Evangelho (Lc 4,1-13)
A narrativa do episódio da tentação de Jesus no deserto, texto com o qual se celebra o 1º domingo da Quaresma (Mc 1,12-13; Mt 4,1-11), ganha particularidades no Evangelho de Lucas.
De início, Jesus é apresentado “pleno do Espírito Santo” (v. 1), como Lucas gosta de destacar também em outras passagens (4,14.18; 10,21; 11,13). Deste modo é que Jesus encara as provações: no Espírito de Deus, revivendo toda a história do seu povo em sua “quaresma” (v. 2).
Jesus experimentou fome no deserto, da mesma forma que os israelitas (Nm 14); no entanto, reconheceu que não se vive apenas de pão (Dt 8,3). Embora o alimento seja necessário, Jesus compreendia que a vontade do Pai era mais importante e nisso ele se sustentava (Jo 4,34).
Em seguida, Jesus olha todos os reinos com os quais o diabo o quer seduzir. Os judeus adoraram o bezerro de ouro no deserto (Ex 32), mas Jesus rejeita aquela proposta e adora apenas o único Deus (Dt 6,13). A fé em Deus é superior às grandezas e honrarias que se poderiam adquirir prostrando-se diante do tentador e o servindo.
Enfim, Jesus sofre a mais refinada tentação: a da filiação divina. O inimigo de Deus sugere: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo” (v. 9). Jesus não tentou a Deus, como o povo no deserto (Sl 95,8-9), mas venceu o tentador no deserto, mostrando sua confiança no Pai e sua fidelidade a ele.
Na narrativa de Lucas, a ordem das tentações difere da de Mateus. Lucas inverte as duas últimas tentações e prefere concluir seu relato em Jerusalém, para onde peregrina Jesus e onde se consuma sua existência humana. Lá será o combate final (Lc 22,3.53), pois o diabo deixou Jesus até um tempo oportuno (v. 13).
Nas duas leituras, ouvimos a fé confessada por meio de palavras. No Evangelho, Jesus vive a fé em Deus no combate contra o mal. Sua relação com o Pai e o conhecimento de sua Palavra colaboraram para Jesus resistir às seduções e manter sua opção pela vontade de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Todo 1º domingo da Quaresma, a liturgia nos leva ao deserto. Esse lugar evoca privações, carestias e adversidades. Para as Escrituras, é também memória das proezas de Deus, lugar de escuta de si e de Deus (Os 2,16), e momento privilegiado de renovação da fé.
Comumente, as tentações de Jesus são interpretadas com um teor moralizante. Costuma-se ouvir que Jesus dá o exemplo de fortaleza para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas. Contudo, podemos compreender o episódio do Evangelho deste dia como uma ocasião de discernimento, de oração e solidão, diante do Pai. A confissão de fé se desenvolve a partir dessa experiência.
Desse modo, é possível aproveitar este deserto quaresmal para bom confronto interior. Podemos questionar: como viver a própria missão e em qual lugar? Temos buscado o próprio interesse ou o do Pai? Como deveremos atuar? Dominando os outros ou pondo-nos a serviço?
O que livrou Jesus de cair nos enganos do tentador foi sua referência ao Pai e à sua Palavra. Dessa orientação ele receberá o impulso para abandonar o deserto e se deixar conduzir pelo Espírito Santo. A partir desse momento, nos Evangelhos, acompanharemos Jesus caminhando pela Galileia, entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino e vivendo a fé e a confiança no Pai. Então, desse modo, ele abre um horizonte de sentido de vida para todos.
Marcus Mareano
é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]