I. Introdução geral
Ser protagonista exige responsabilidade. Muito mais fácil é permanecer na dependência dos outros e deixar que decidam tudo quanto for necessário. Por causa dessa acomodação, muitos deixam de ser senhores de si mesmos e abandonam a autonomia que lhes é própria. Deus, quando se insere na história dos escravos no Egito, age como protagonista, libertando-os. Todavia, o protagonismo divino abre as portas para que os escravos se sintam estimulados a assumir eles mesmos, a partir desse momento, o protagonismo de sua vida. Deus lhes dá um projeto e uma terra. Mais do que isso, concede-lhes a possibilidade de se assumirem e construírem na terra prometida um projeto de liberdade que nasceu, para eles, do próprio Deus.
II. Comentários aos textos bíblicos
1. I leitura: Dt 26,4-10
A primeira leitura representa não somente uma confissão de fé, como também um itinerário espiritual. O povo se encontrava numa jornada que incluía desde o desaparecimento até a escravidão, seguida de requintes de violência, situação na qual não parecia haver nenhum tipo de esperança de que um dia a vida iria melhorar. Em meio à brutalização da vida e à antecipação da morte, os escravos clamaram a Deus, e o seu clamor foi ouvido por ele. Aflição, sofrimento e opressão ameaçavam e, na verdade, punham abaixo não somente o presente, mas também o futuro do povo. Deus irá manifestar-se na periferia do Egito e ao lado daqueles que se encontravam submetidos e derrotados.
No entanto, a inserção de Deus na história dos escravos não deve ser vista como analgésico para amenizar as dores de cada um deles. Ao se manifestar junto aos escravos e contra o rei do Egito, Deus apresenta um projeto de vida abundante em outra terra, tendo eles mesmos como protagonistas de nova sociedade. Diante da libertação provocada por Deus, somente resta ao povo se prostrar diante dele e agradecer todas as coisas boas que realizou.
2. II leitura: Rm 10,8-13
A segunda leitura nos mostra que o apóstolo Paulo se opõe a viver a vida cristã de forma esquizofrênica. Para ele, deve haver coerência entre a fé confessada com os lábios e a fé vivida no coração. A fé deve ser vivida de forma integral. De fato, ela atinge a pessoa toda, fazendo que dê frutos no cotidiano. Coração e lábios estão juntos num projeto de vida que leva a viver como se já não houvesse barreiras.
O relacionamento com Deus não é construído segundo um processo mágico, mas unicamente por meio da obediência à sua vontade, que não se prende a coisa alguma. Além disso, a vida cristã não combina com as injustiças; isto é, o que fazemos no templo não pode ser acompanhado por injustiças praticadas no dia a dia. A celebração a Deus não combina com a realidade diária daqueles que manifestam duplicidade de comportamento e, por isso, não vivem uma existência autêntica. Para Paulo, o comportamento diário é o critério para a autenticidade do culto. Certamente o que acontece nas ruas profana ou não a nossa condição de discípulo.
Nesse novo projeto de vida, a igualdade entre todos os povos se faz sentir de modo seguro e verdadeiro. A confissão de fé, ao invocar o nome do Senhor, garante que a pessoa será salva mediante a responsabilidade e o protagonismo de cada indivíduo em sua relação com Jesus. Na verdade, estamos diante de uma responsabilidade intransferível e inegociável.
3. Evangelho: Lc 4,1-13
É cheio do Espírito Santo que Jesus enfrenta três dos maiores desafios de qualquer ser humano: a fome, que se apresenta como a possibilidade da satisfação de uma necessidade básica, a segurança religiosa e o desejo irrefreável de poder. Pensemos também que, diante das tentações, Jesus responde com a Escritura. Seu incisivo “está escrito” permite compreender um eficiente processo de catequese. Diante das grandes questões que desestabilizam homens e mulheres em todos os tempos e lugares, Jesus traz a Palavra de Deus para dentro da vida. Em meio ao caos que as tentações desejam instalar, ele combate cada uma das tentações com a libertação que vem da Palavra e não permite aprisionamentos. Responde com segurança, e a segurança vem das Escrituras. “Está escrito” revela muito mais do que poderíamos imaginar; revela que Jesus tinha plena consciência da necessidade de sempre estar preparado e alicerçado na Palavra de Deus. Se as tentações parecem fortes e têm o poder de desestabilizar, necessário se faz buscar forças e fundamentos numa palavra eterna.
São três tentações que atingem Jesus em cheio. Não se trata, porém, de tentações episódicas e homeopáticas. Na verdade, perseguem o ser humano ao longo de toda a sua história e, por isso, são tsunâmicas. Possuem força tão avassaladora, que, ao longo da história da civilização, podemos encontrar muitos desastres ocasionados exatamente como frutos delas. Portanto, as tentações não são somente para Jesus, mas também para toda a humanidade. Todo homem e toda mulher são suas vítimas, levando-os a desejar o indesejável. Envolvem-nos de tal maneira, que nos perdemos completamente. Jesus, ao vencê-las, aponta para a possibilidade que temos de fazer o mesmo caminho. Reagir às tentações de forma diferente de Jesus levará cada um a sucumbir diante delas. Bom seria se a vida não as oferecesse. Certamente tudo seria mais fácil, e mais facilmente viveríamos a vida cristã. Todavia, elas se manifestam sem aviso prévio. Não sabemos quando e em que lugar se apresentarão. Sendo assim, antes que sejamos engolidos pelas tentações e nos vejamos perdidos no olho do furacão, talvez seja necessário e prudente nos anteciparmos aos dias maus e vivermos plenamente o projeto de Jesus em nossa vida, pois ele mesmo foi tentado em tudo, mas em tudo foi vencedor.
Jesus enfrenta os desafios e não se faz de vítima. Poderia muito bem apelar para a fragilidade física que se apresentava após 40 dias de jejum. Fraco e esgotado fisicamente, seria uma vítima fácil! Todavia, a aparente fraqueza e esgotamento não são nada se comparados com duas expressões que fazem toda a diferença: Jesus estava “cheio do Espírito Santo” e “no Espírito” era conduzido pelo deserto. É justamente no momento em que Jesus parece ser mais fraco que ele é mais forte!
III. Pistas para reflexão
– Na experiência do povo do êxodo, Deus se manifestou desde a periferia do Egito. Em meio àqueles/as destinados a morrer antes do tempo e a viver marcados pela dor e pelo desespero, aí Deus fez seu lugar preferencial. Aqueles que haviam sido esquecidos pelos governantes e por seus deuses foram objeto preferencial e solidário do amor divino. Desde a periferia existencial, econômica e social dos escravos/as é que se dá a mais bela das experiências da ação de Deus na história. Ele caminha pelas periferias do mundo. E por onde vão nossos passos?
– Uma das tentações mais fortes e mais prejudiciais ao povo de Deus é a tentação do poder. Não conseguimos compreender como o poder, na dimensão evangélica, está extremamente ligado ao serviço. Podemos até mesmo sair vencedores em dois dos três rounds das tentações. No entanto, fazemos questão de sucumbir diante da tentação do poder. Afinal, desejamos o poder e lutamos por ele. Queremos ser os melhores e, como melhores, exercer a autoridade. É provável que ainda hoje queiramos ser como aqueles discípulos que desejavam assentar-se um à direita e outro à esquerda de Jesus. Para esses, o mais importante não é Jesus e o seu projeto, mas o poder pelo poder!
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]