Publicado em janeiro-fevereiro de 2025 - ano 66 - número 361 - pp. 37-40
1º de janeiro – MARIA, MÃE DE DEUS
Por Gisele Canário*
Maternidade divina em Maria: libertação e identidade filial
Maria é uma mulher de Nazaré, um povoado judaico que contava entre duzentos e quatrocentos habitantes na época de Jesus. Escavações realizadas sob as estruturas cristãs posteriores revelam prensas para a produção de azeite de oliva e vinho, cisternas, silos e pedras de moer espalhadas ao redor de covas, indicando uma população rural que vivia em casas muito precárias. A arqueologia evidencia que a vida dessa sociedade rural era marcada pela fome e pelo sofrimento. Na época de Jesus, cerca de 30% dos recém-nascidos morriam, índice que subia para cerca de 50% no período dos primeiros dez anos de vida. Na faixa etária dos 30 anos, entre 70% e 75% morriam, especialmente devido à desnutrição e à falta de alimentos, causadas pelo trabalho pesado e pelas guerras. O empobrecimento do judeu camponês era decorrente do pagamento de altos impostos, incluindo o imposto sobre 25% a 30% das colheitas para os romanos, pedágios para a circulação de mercadorias e trabalho forçado dedicado às tropas e obras públicas. Também havia impostos do templo, diversos dízimos, ofertas de sacrifícios, imposto pessoal, estipulado em 1 denário, entre outros. Com toda essa problemática, a quantidade de pessoas escravizadas aumentava cada vez mais. Era comum testemunhar famílias sendo vendidas como escravas por causa de dívidas.
Neste domingo, somos convidados a refletir sobre a autenticidade e a significância da maternidade divina representada por Maria, a Mãe de Deus. Maria é protagonista do projeto de Jesus porque acreditou ser possível formar e educar seu filho, que estaria à frente de um projeto pautado no amor e na justiça. Em sua maternidade reside a conexão entre o humano e a divindade, que nos conduz à libertação e à nossa identidade filial em Deus.
A maternidade divina de Maria deve ser realidade contínua e presente na vida espiritual dos cristãos. Maria é profetisa por excelência, pois acolhe o Verbo de Deus e vive o plano divino de ser a Mãe de Jesus. Nesse sentido, não nos cumpre apenas colaborar para que o Reino de Deus aconteça entre nós; cabe-nos vivê-lo assim como ela, protagonizando o enfrentamento dos poderes que promovem a destruição da vida, em todas as suas manifestações.
Esta solenidade revela nossa identidade de filhos e filhas do amor de Deus. Jesus nos ensinou a chamar Deus de “Abbá, Pai”. Maria anda conosco e nos apresenta o caminho da relação amorosa com Deus, que é uma relação de escuta, amor e compaixão. Ela experimentou esse caminho, pois acreditou no Senhor e viveu em total comunhão com ele. Sua obediência é ao projeto de justiça, pois é da vontade divina entrar em comunhão com quem deseja viver e trilhar o projeto de vida em abundância para todos os seres vivos.
A liturgia deste domingo nos convida a refletir sobre nossa resposta a esse amor e liberdade oferecidos por Deus. Assim como Maria acolheu Jesus em sua vida e serviu os necessitados ao seu redor, somos chamados acolhê-lo de maneira prática e a expressar esse amor por meio do serviço e da solidariedade aos mais vulneráveis e necessitados da nossa sociedade.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.I leitura (Nm 6,22-27)O relato faz parte do núcleo presente no Pentateuco que narra eventos ocorridos durante o período do êxodo dos israelitas do Egito até sua chegada às fronteiras da Terra Prometida. O capítulo 6, particularmente, trata da lei nazireia, que estabelece um voto especial de consagração a Deus. O texto em questão faz parte de uma seção que descreve as instruções dadas por Deus a Moisés para abençoar os filhos de Israel. Essa bênção é dada aos sacerdotes para ser pronunciada sobre o povo. O texto é uma bênção composta de três partes: invocação (“O Senhor te abençoe e te guarde”), petição (“O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti”) e conclusão (“O Senhor sobre ti levante o seu rosto e te dê a paz”). Essa estrutura tripartida enfatiza a completude e a plenitude da bênção divina. Historicamente, essa bênção era pronunciada pelos sacerdotes sobre o povo de Israel como parte do serviço religioso no templo.
A essência do ser humano sempre foi, de alguma forma, buscar a bênção da divindade; pessoas e comunidades revelam seus anseios mais profundos por vida plena e paz. Dessa forma, ele busca se relacionar com a vida e com a promoção da vida, e é aí que reside o caráter sagrado das religiões (cf. Ex 20,24). O problema se dá quando rituais são perverti- dos e práticas religiosas comunitárias e pessoais se voltam para projetos individualistas – por exemplo, no pós-exílio, em que muitos rituais foram utilizados para a legitimação de instituições (Nm 15,32-36), hierarquias (Nm 17,1-5.25) e coleta de ofertas que não tinham o objetivo de fortalecer práticas de solidariedade, justiça, defesa e promoção da vida. A bênção e os rituais nunca devem ser usados como fonte de manipulação e ideologias, pois seu sentido é trazer vida abençoada para toda a comunidade e para todos os seus membros (cf. Jo 10,10).
2. II leitura (Gl 4,4-7)
Paulo, em sua carta aos Gálatas, destaca o momento oportuno da vinda de Jesus, filho de Maria, como parte do ápice da história da salvação. Essa encarnação do Verbo representa o clímax do plano divino, pelo qual Deus envia seu Filho para nos libertar da escravidão do pecado e nos adotar como filhos e filhas. Tal mensagem é crucial na carta, escrita por volta do ano 49-50 d.C. e dirigida às igrejas da Galácia, na atual Turquia. O objetivo é corrigir a influência dos judaizantes, que pressionavam os gentios convertidos ao cristianismo a seguir a Lei judaica.
O trecho em questão está situado em uma seção em que Paulo argumenta sobre a liberdade em Cristo, em contraste com a escravidão da Lei. Ele discorre sobre o papel central de Jesus na história da salvação, enfatizando o momento oportuno de sua vinda e sua importância para a o resgate do pecado da humanidade, adotada como filhos e filhas de Deus.
Paulo afirma que a vinda de Jesus ocorreu no “momento oportuno” (kairós), ressaltando a soberania e providência de Deus na história da salvação. Ele contrasta a antiga escravidão da humanidade sob a Lei com a liberdade que vem por meio de Jesus, destacando que, por meio da fé nele, os crentes são adotados como filhos e filhas de Deus e herdeiros de suas promessas. Essa transição do regime da Lei para o regime da graça em Jesus é crucial para a compreensão do texto em seu contexto histórico e teológico.
3. Evangelho (Lc 2,16-21)
O Evangelho de Lucas foi escrito por alguém que não era da Palestina, porque se atrapalha ao falar da geografia da região. Possivelmente, quem escreveu esse Evangelho foi um grande admirador de Paulo; talvez um membro de alguma comunidade paulina ou um prosélito grego – alguém que teve contato com a religião judaica, estudou as Escrituras e mais tarde se converteu ao Evangelho de Jesus. No fim do século, as comunidades vi- vem um momento crítico, correndo o risco de abandonar o projeto de Jesus e assimilar valores propostos pela sociedade greco-romana. Algumas pessoas caem na descrença e no desânimo e acabam abandonando a caminhada (Lc 24,13.21). Diante dos desafios de seu tempo, o autor procura reavivar a memória da prática de Jesus, tendo como objetivo principal “verificar a solidez dos ensinamentos recebidos” (Lc 1,4). Para isso, ele apresenta quem é Jesus de Nazaré e o que é preciso fazer para segui-lo. Mais do que informar, o autor quer reforçar a fé dos seus leitores.
O texto de Lucas 2,16-21 faz parte do relato do nascimento de Jesus em Belém. Após o nascimento, pastores vêm adorar o recém-nascido, conforme os anjos lhes anunciaram. O texto menciona a circuncisão de Jesus e a imposição do nome, conforme a tradição judaica. A circuncisão e a imposição do nome são práticas que mostram o cumprimento Lei de Moisés e a inserção de Jesus na tradição religiosa judaica. Isso enfatiza sua identificação com o povo judeu e sua submissão às práticas religiosas da época. O texto retrata a humildade do nascimento de Jesus, pois ele nasce em Belém, em uma manjedoura, e é anunciado primeiramente aos pastores, que eram considerados pessoas simples e humildes na sociedade da época. Historicamente, o texto ressalta a importância de Jesus como o Messias esperado pelos judeus e sua identificação com seu povo por meio da circuncisão. Nessa perspectiva, ao considerar o papel de Maria nessa realidade, é importante visualizar sua forte presença em todo o evento. Maria, ao aceitar ser a mãe de Jesus, torna-se também um exemplo de fé e obediência ao projeto do Deus da vida. Embora o texto de Lucas foque nos eventos que confirmam a identidade judaica de Jesus, Maria é a figura que integra essa identidade no contexto familiar e religioso. Sua atitude de “guardar todas essas coisas no coração” (Lc 2,19) revela uma postura de profunda meditação e aceitação dos planos de Deus, que se alinham com a tradição e a fé que sustentavam as comunidades cristãs nas dificuldades do final do primeiro século. Ao mencionarmos a circuncisão de Jesus, não podemos esquecer que Maria, como Mãe de Deus, desempenhou um papel essencial em assegurar que seu filho fosse fiel às tradições de seu povo, preparando-o para cumprir seu projeto de amor.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Maria é símbolo de resistência e esperança. Viveu numa sociedade onde imperava a opressão, a exploração e a violência. Como mãe e mulher, protagonizou o projeto do seu filho, Jesus. Inspirados pela coragem e ousadia de Maria, como podemos resistir à opressão e trabalhar pela transformação de nossas comunidades?
– A maternidade de Maria subverte as expectativas sociais e religiosas de seu tempo. O nascimento de Jesus não em um palácio, mas em uma manjedoura, e a visita dos pastores, pessoas simples e marginalizadas, questionam as hierarquias de poder e status. Que ações concretas podemos tomar para subverter as hierarquias injustas em nossa sociedade e promover verdadeira igualdade?
– Maria não deve ser apenas um ícone passivo de devoção, mas sobretudo uma figura ativa de transformação social e espiritual. Sua vida nos chama a uma fé que se traduz em ações concretas de libertação dos oprimidos. Como podemos, em nossa prática diária, transformar nossa fé em ações que promovam a libertação das diversas formas de escravidão moderna, sejam elas econômicas, sociais ou espirituais?
– Jesus nos ensinou a chamar Deus de “Abbá, Pai”, criando uma comunidade baseada na fraternidade e na justiça. A maternidade de Maria nos lembra que essa identidade filial exige de nós um compromisso ativo com a justiça social. Em que aspectos de nossa vida estamos falhando em viver esse compromisso? O que podemos fazer para alinhar mais estreitamente nossas ações com a visão do Reino de Deus?
– A aceitação de Maria do chamado divino e sua vida de serviço nos desafiam a uma resposta profética ao amor de Deus. Isso significa não apenas acolher passivamente, mas também agir ativamente para transformar as realidades de desigualdade e injustiça que nos cercam. Estamos dispostos a arriscar nosso conforto e segurança para agir em nome dos princípios de justiça e amor exemplificados por Maria?
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos bíblicos on-line.