Publicado em julho-agosto de 2020 - ano 61 - número 334 - pág.: 55-58
19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 9 de agosto
Por Ir. Rita Maria Gomes
Deus se manifesta aos seus
I. Introdução geral
Na liturgia do domingo passado, as leituras envolviam a questão do Reino dos céus, que se revela nas palavras e ações de Jesus. Neste domingo, a liturgia se volta para a revelação de Jesus como Messias e Filho de Deus. O Evangelho traz uma teofania em íntima relação com a teofania presente na primeira leitura. Essa revelação transborda na consideração da origem humana de Jesus, na segunda leitura. A perspectiva da revelação, por sua vez, aparece como anseio na boca do salmista, ao dizer: “Mostrai-nos, ó Senhor, vossa bondade, e a vossa salvação nos concedei!” (Sl 84).
II. Comentários dos textos bíblicos
1. Evangelho (Mt 14,22-33)
A leitura do Evangelho deste domingo continua a narrativa do Evangelho do domingo anterior, e essa continuação é marcada pelo início: “depois da multiplicação dos pães”. Esse trecho tem dois momentos: o movimento de Jesus da montanha ao mar e a ida de Pedro ao encontro de Jesus sobre as águas.
A sequência é uma justificativa para os eventos narrados no mar. Jesus sobe ao monte para orar sozinho. Enquanto estava na montanha, os discípulos estavam no meio do mar e o barco era agitado pelas ondas por causa do vento. Jesus vai ao encontro dos discípulos caminhando sobre o mar. O que impressiona, nesse relato, é que a razão do medo dos discípulos se justifica pela impressão de que Jesus fosse um fantasma, e não pelo fato de que alguém possa caminhar sobre as águas de um mar agitado. O final desse primeiro momento se conclui, como se concluem normalmente as teofanias, com uma exortação a não temer: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (v. 27).
O segundo momento da narrativa envolve as consequências dessa teofania. Jesus acabara de dizer “sou eu”, e Pedro rebate: “Se és tu, Senhor, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). Diante disso, Jesus responde a Pedro: “Vem!” Ao chamado de Jesus, Pedro prontamente sai do barco e começa a andar sobre a água, mas o vento lhe causa medo e começa a afundar. No primeiro momento, o medo era porque achavam que Jesus fosse um fantasma, agora a causa do medo é o vento. Jesus censura Pedro por sua fraqueza na fé. Há uma relação aqui muito sutil: o contrário da fé é o medo. Por isso, a cada momento de medo há um alerta para dar-se conta de que o Senhor está com eles. É a presença de Deus, que afasta o medo debilitador da fé.
2. I leitura (1Rs 19,9a.11-13a)
A primeira leitura da liturgia deste domingo é, como o Evangelho, um relato de teofania. Aqui, o profeta Elias se encontra no monte Horeb, para onde fugiu por medo de Jezabel. No Horeb, Elias procura uma gruta e ali se abriga durante a noite. Deus se dirige ao profeta e ordena: “Sai e permanece sobre o monte diante do Senhor, porque o Senhor vai passar” (v. 11). O Senhor convida o profeta a ir ao seu encontro no monte. Elias, porém, precisa reconhecer o momento em que Deus se manifestará e o modo como o fará.
O relato traz as imagens habituais da teofania: vento impetuoso, terremoto, fogo. Em nenhuma das expressões conhecidas Deus estava. O Senhor se mostra numa leve brisa e, diante dele, Elias cobre o rosto com o manto, sai e se põe à entrada da gruta. A teofania do Senhor ao profeta Elias é construída segundo o modelo de Moisés: acontece por meio de fenômenos naturais e no Horeb, a montanha onde também Moisés encontrou a Deus. Por isso, Elias cobre o rosto como antes fizera Moisés. As duas teofanias estão relacionadas à aliança. O Senhor veio a Elias em um momento em que a aliança selada entre Deus e o povo, por intermédio de Moisés, estava ameaçada. Uma vez mais, Deus toma a iniciativa, mostra sua bondade e vem em socorro do seu povo.
3. II leitura (Rm 9,1-5)
A segunda leitura continua, como nos domingos anteriores, o texto da carta aos Romanos. Nesse trecho, o autor conta a razão de sua tristeza: a situação dos israelitas em relação à salvação. Deus se manifestou definitivamente em Cristo, mas uma parte do povo eleito não o reconheceu. O apóstolo sente tão profundamente essa situação, que chega a desejar ser “segregado por Cristo” em favor dos seus irmãos. Diante disso, faz um elenco de tudo que poderia exaltar seu povo: a filiação adotiva, a glória, as alianças, as leis, o culto, as promessas e os patriarcas. Nada disso parece ter sido suficiente para que, diante da teofania de Cristo, os israelitas o percebessem.
Por fim – e talvez o mais importante para o apóstolo nesse momento –, ele recorda que, quanto à sua humanidade, Cristo descende desse povo. Por meio de Israel, Cristo, na condição de humano, chegou até nós e nos garantiu a salvação. Pode esse povo, eleito por Deus e responsável pela vinda do Filho na carne, ser renegado? Por que o povo de Deus não soube reconhecer essa teofania distinta? Não temos resposta pronta nem fácil a essas questões, mas elas nos inspiram a não nos fecharmos em visões estreitas ou sedimentadas que impedem o reconhecimento de Deus quando ele vem ao nosso encontro.
III. Pistas para reflexão
O tema que vincula as três leituras da liturgia deste domingo é o da manifestação ou revelação de Deus. A esse tema se ligam a questão do não reconhecimento de Deus em seu meio de revelação, bem como a questão da fé nele, que é abalada ou fragilizada pelo medo. Reconhecer a manifestação de Deus é o primeiro passo para a salvação por meio do encontro amoroso com ele.
Nas leituras, o encontro é marcado pelos lugares: montanha e mar. Esses dois lugares são aproximados pelo elemento vento, embora de modo distinto. O vento forte (impetuoso) aparece na primeira leitura e no Evangelho com funções diferentes. Com Elias, o vento impetuoso só tem função negativa, indicando que Deus não estava nele. No Evangelho, o vento agitava as ondas e o barco onde se encontravam os discípulos; Deus também não estava nele. Contudo, a simples presença de Jesus no barco faz o vento acalmar. Diante da brisa suave, Elias cobre o rosto, como antes fizera Moisés, em sinal de respeito. Diante daquele que acalma o vento, os discípulos se prostram pela mesma razão e fazem uma profissão de fé: “Tu és o Filho de Deus”.
A afirmação dos discípulos de que Jesus é o “Filho de Deus” encontra, de certo modo, correspondência na segunda leitura, quando o apóstolo diz que aos israelitas pertence a “filiação adotiva”. Com efeito, a expressão “Filho de Deus” é, antes de tudo, uma afirmação da adoção do rei como “filho” por Deus. Essa é a primeira afirmação do apóstolo sobre os israelitas, e a última é a afirmação de que deles descende o Cristo quanto à sua humanidade. Isso pode indicar que, para o autor da carta, a expressão “filho de Deus” tinha também o sentido veterotestamentário de “adoção”, e não a afirmação posterior da “divindade” do Filho.
Enfim, a liturgia deste domingo se propõe nos fazer refletir sobre a manifestação gratuita de Deus e seu convite para que o encontremos onde e como ele se deixa ver. Convida-nos a ter olhos e corações abertos para percebê-lo e, sobretudo, a não ter medo, porque o medo nos impede de continuar a caminhar ao seu encontro.
Ir. Rita Maria Gomes
é natural do Ceará, onde fez seus estudos de Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde lecionou Sagrada Escritura. Atualmente é professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura.