Roteiros homiléticos

19 de junho – CORPUS CHRISTI

Por Pe. Johan Konings, sj

COMUNHÃO COM O DOM DE CRISTO

I. INTRODUÇÃO GERAL

Como que prolongando a atmosfera pascal, atmosfera do mistério de nossa redenção pelo Senhor morto e glorificado, a Igreja quer celebrar de modo mais expressivo o sacramento pelo qual participamos da doação até o fim de seu corpo e sangue, conforme a palavra de Jesus na Última Ceia.

A festa de Corpus Christi não é veneração supersticiosa de um pedacinho de pão nem simplesmente ocasião para procissões triunfalistas pelas ruas. É comprometimento pessoal e comunitário com a vida de Cristo, dada por amor até a morte. É o memorial da morte e ressurreição do Cristo, como diz a oração do dia, mas não é um mausoléu. É memorial vivo, no qual assimilamos em nós o Senhor mediante a refeição da comunhão cristã, saboreando um antegosto da glória futura (cf. a oração depois da comunhão e a bela oração O sacrum convivium, de santo Tomás de Aquino). Merece atenção ainda a oração sobre as oferendas, inspirada na Didaqué e em 1Cor 10,17, utilizando o simbolismo do trigo e da uva reunidos até formarem pão e vinho para exprimir a unidade da Igreja em Cristo. Pois a festa de Corpus Christi é também a festa do seu Corpo Místico, a Igreja, que ele nutre e leva à unidade da mútua doação.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Dt 8,2-3.14b-16a)

A primeira leitura serve para preparar o reto entendimento do sinal do pão, ao qual o evangelho faz alusão. Já em Dt 8,3, o dom do maná, do “pão caído do céu”, é interpretado num sentido não material, mas teologal: o ser humano vive de tudo que sai (da boca) do Senhor – sua palavra, sua Lei. Ora, a Palavra por excelência é Jesus Cristo. “Foi Deus quem te alimentou no deserto...”: o maná era símbolo da completa dependência de Israel de Javé, no deserto; e também do amor e da fidelidade de Javé. A recordação disso – um jarro com o maná era conservado no santuário (Ex 16,33-34) – serve de guia para a história (Dt 8,2.14). O caminho do deserto era um ensaio de toda a história salvífica, um teste em que Deus quis mostrar seus dons a seu povo, como os continua mostrando (Dt 8,16b). Não provindo da tecnologia humana, o maná significa que o ser humano vive da Palavra e da iniciativa de Deus.

2. II leitura (1Cor 10,16-17)

Na II leitura, Paulo lembra – talvez utilizando algum hino dos primeiros cristãos – que o “cálice da bênção” (beraká, “brinde sagrado”) e o pão repartido na assembleia cristã são participação e comunhão do sangue e do corpo do Senhor. Essa participação, ou “mistério”, faz-nos reviver a doação do Cristo e realizá-la em nossa vida. E essa comunhão do único pão nos torna o único Corpo do Cristo. Na ceia eucarística, comungamos da existência (corpo) e morte (sangue) de Cristo. Sendo uma só essa vida que comungamos, formamos um só corpo também. Dizer isso não é um jogo de palavras: quem despreza o “corpo de Cristo” (a Igreja), ao participar da ceia de seu Corpo sacramentado, exclui-se a si mesmo da comunhão da vida (1Cor 11,29). Quem comunga em Cristo não pode comungar com os ídolos de qualquer tipo (1Cor 10,14), e sabemos que não faltam ídolos de todo tipo em nossa sociedade. Não o consumo de tudo que se nos oferece, mas a comunhão do corpo de Cristo é nossa vocação.

3. Evangelho (Jo 6,51-58)

O evangelho de Corpus Christi é o final do “sermão do Pão da Vida” segundo o Evangelho de João. Depois da multiplicação dos pães, Jesus explicou o sentido do “sinal” que acabou de fazer: ele mesmo é “o pão que desce do céu” como presente de Deus à humanidade (Jo 6,26-50). E, no fim de seu discurso, explicou um sentido mais profundo ainda desse mesmo “sinal”: o sentido que celebramos na eucaristia (6,51-58). Depois de ter explicado ser o verdadeiro maná (cf. I leitura), Jesus pede que também seja tomado como alimento, em todos os sentidos: não só como alimento espiritual (alimentar-se de sua palavra, de seu mandamento e do exemplo de sua vida), mas também como alimento físico, no gesto sacramental. (No texto grego de Jo 6,54 está que devemos “mastigar” sua carne e beber seu sangue. Maior realismo dificilmente se imagina!)

Esse ensinamento, só podem entendê-lo os que têm o Espírito (6,63), os que receberam o “prometido” da Última Ceia e continuam celebrando essa ceia como realização da ordem que Cristo nos legou. Alimentamo-nos de Cristo não somente escutando sua palavra, mas recebendo o dom de sua “carne” (= vida humana) e “sangue” (= morte violenta) dados “para a vida do mundo” (v. 51). Tomando o pão e o vinho da eucaristia, recebemos Jesus como verdadeiro alimento e bebida. A sua vida, dada para a vida do mundo, até a efusão de seu sangue, torna-se nossa vida, para a eternidade.

Esse texto é, portanto, o ensinamento eucarístico de João. Não se encontra no contexto da Última Ceia, como nos evangelhos sinóticos, mas no contexto da multiplicação do pão. Esse contexto permite mostrar melhor, por contraste, o sentido profundo, “espiritual”, que Jesus quer revelar pelo “sinal do pão”. Se, para os judeus, que pensam no maná mediado por Moisés, o “pão do céu” significa um alimento material (Jo 6,30-34), para Jesus, significa o dom de Deus que desce do céu e é ele mesmo, em pessoa (6,35-50), especialmente no dom do céu que é “sua carne (= existência humana) para a vida do mundo” (6,51; cf. a fórmula paulina da instituição da eucaristia: “meu corpo por vós” [1Cor 11,23]). Graças a esse dom, podemos ter em nós a vida que ele nos traz, a vida que não é deste mundo, mas de Deus mesmo, a vida eterna (literalmente: “a vida do século [vindouro]”). Devemos assimilar em nós a existência de Cristo por nós, sua “pró-existência” (existência para os outros). Essa assimilação se dá pela fé, pela adesão existencial, pela qual reconhecemos a verdade de Jesus e conformamos nossa vida com a sua. O sinal sagrado, o sacramento disso, é: comer realmente o pão que é sua “carne” e beber o vinho que é seu sangue. A “carne” é a existência humana, carnal, mortal; o sangue é a vida derramada na morte violenta. É isso que devemos assimilar em nós pelos sinais sagrados. A essas realidades devemos aderir na fé assinalada pelo sacramento. Devemos “engolir” Jesus bem assim como ele foi: dado radicalmente, até a morte sangrenta. Realizando autenticamente esse sinal, teremos a vida divina que ele nos comunica.

III. DICAS PARA REFLEXÃO: Eucaristia e comunhão

Depois da multiplicação dos pães, Jesus deu a entender que ele mesmo é “o pão que desce do céu” como um presente de Deus à humanidade. No fim dessa explicação, eclode o sentido mais profundo do “sinal”, o sentido que celebramos na eucaristia: alimentamo-nos de Cristo não somente escutando sua palavra, mas recebendo o dom de sua “carne” (= vida humana) e “sangue” (= morte violenta) dados “para a vida do mundo” (Jo 6,51). Tomando o pão e o vinho da eucaristia, recebemos Jesus como verdadeiro alimento e bebida. A sua vida, dada para a vida do mundo, até a efusão de seu sangue, torna-se nossa vida, para a eternidade.

Celebrar é tornar presente. Receber o pão e o vinho da eucaristia significa assumir em nós mesmos a vida a todos nós dada por Jesus até morrer, em corpo e sangue. Significa “comunhão” com essa vida, viver do mesmo jeito. E significa também comunhão com os irmãos, pelos quais Cristo morreu (“um só pão”, como diz a II leitura).

Na oração eucarística celebrada no contexto da fé, quando o sacerdote invoca o Espírito Santo e pronuncia sobre o pão e o vinho as palavras de Jesus na Última Ceia, Jesus se torna presente, dando-nos seu corpo e sangue, sua vida dada em amor até o fim. Quando então recebemos o pão e o vinho, entramos em comunhão com a vida, a morte e a glória eterna de Jesus e também com os nossos irmãos, que participam da mesma comunhão.

Na eucaristia, torna-se presente o dom da vida de Cristo para nós. Mas a eucaristia se torna fecunda apenas pelo dom de nossa própria vida, na caridade e solidariedade radical. Para que o pão eucarístico realize a plenitude de seu sentido, é preciso resgatar o pão cotidiano da “hipoteca social” que o torna sinal de conflito, de exploração, de desigualdade, de “anticomunhão”. Quando, ao contrário, o pão cotidiano significar espontaneamente comunhão humana, e não suor e exploração, o sentido de comunhão do pão eucarístico será mais real. Por isso, antes de falar da eucaristia, Jesus providenciou o pão comum...

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”.