O bom uso das riquezas: desapego
I. Introdução geral
Num tempo de esbanjamento desbragado; num tempo em que se pretende resolver o desequilíbrio social estimulando o consumo de produtos que mais complicam que ajudam e, além disso, ameaçam o ambiente natural; num tempo de narcisismo alimentado pela insaciável febre de compras e pela alienação induzida pelas mídias individuais, alcançam-nos, oportunamente, as severas advertências do profeta-agricultor, Amós, e do profeta-carpinteiro, Jesus, a respeito das riquezas.
II. Comentário dos textos bíblicos
- I leitura: Am 8,4-7
Amós denuncia a injustiça institucionalizada no reino do Norte (Israel). Sua atuação se situa no momento em que já começava a declinar o “século de ouro” de Israel, no tempo de Jeroboão II (por volta de 750 a.C.). Faltavam poucos anos para o reino ser invadido e o povo ser deportado pelos assírios (722 a.C.). Entretanto, reinava a riqueza injusta, fonte de opressão, uns poucos tendo tudo e quase todos tendo quase nada.
O pecado dos “poucos” não é contra tal ou tal mandamento; aliás, eles observam as festas religiosas – mas com que espírito (cf. Am 8,5)! Pecaminosa é sua atitude global, caricatura da justiça e misericórdia que Deus espera de seu povo. Assim, Amós 8,4-6 é uma censura eloquente, denunciando que os ricos se tornam sempre mais ricos e os pobres, sempre mais pobres. No versículo 7 ressoa a ameaça do juízo.
- Evangelho: Lc 16,1-13
O Evangelho parece ir na direção oposta da leitura do profeta Amós. Traz o texto conhecido como a “parábola do administrador desonesto”, na qual o dono da fazenda louva a ação pouco escrupulosa de seu administrador! É uma parábola que escandaliza, e é isso que Jesus quer, pois se contasse só coisas com que todo mundo está de acordo, ninguém prestaria atenção! Ora, entenda-se bem: Jesus não propõe como modelo tudo o que esse administrador andou fazendo! Só quer ressaltar a sua “prudência” (= previdência), o resto não!
Jesus quer ensinar que a inteligência no uso dos bens deste mundo faz parte do Reino de Deus, em dois sentidos: 1) utilizá-los prevendo a crise (juízo); 2) utilizá-los para fazer amigos para a eternidade (caridade). Inteligente é quem sabe escolher de quem ele será amigo, enquanto ainda tem oportunidade.
Vejamos o texto de perto. Diante da iminente demissão por causa de má administração da fazenda, o administrador comete umas fraudes em favor dos devedores do patrão, para poder contar com o apoio deles na hora em que for posto na rua. Será um exemplo? Em certo sentido, sim: era um homem que enxergava mais longe que seu nariz. Porém, não o devemos imitar na sua injustiça, mas na sua previdência. Não vem ao caso argumentar que os administradores costumavam definir pessoalmente sua “comissão” dos bens do patrão e que, portanto, esse administrador não foi propriamente injusto, mas apenas desistiu de sua comissão. Jesus mesmo o chama de administrador injusto (16,8). Mas mereceu elogios, até do patrão prejudicado, porque agiu com previdência. Sabia – melhor que aquele fazendeiro estúpido descrito em Lc 12,16-21 – que sua posição era precária e tomou providências. Sem esconder a imoralidade desse homem, Jesus observa que os “filhos das trevas” são geralmente mais espertos, nos seus negócios, que os filhos da luz. Ter consciência da precariedade das riquezas e utilizar as últimas chances para ganhar amigos para o futuro, eis o que Jesus quis ensinar.
O grande amigo que devemos ganhar para o futuro é Deus mesmo (“ser rico perante Deus”, Lc 12,21). Ganhamo-lo por meio dos pequenos amigos: seus filhos. A iminência do juízo (Lucas tomava isso bastante literalmente) nos deve levar à prática da caridade. Entenda-se bem: não se trata de fazer caridade para “comprar o céu”, mas para – com os olhos fitos na realidade definitiva que é Deus, Pai de bondade – transformar nossa vida numa prática que combine com ele. Já que sabemos o que é definitivo, ajamos em conformidade: sejamos misericordiosos como Deus é misericordioso (cf. Lc 6,35b-36).
O encontro com os amigos das “moradas eternas” inclui os coxos, cegos, estropiados, os pobres em geral, os que são convidados para o banquete eterno (cf. Lc 14,12-14.15-24). Temos amplas oportunidades de usar o “vil dinheiro” para conquistar esses amigos. Será que o dinheiro é vil? Não há dúvida. Não há um dólar que não seja manchado de opressão e exploração. Por meio dos bancos que investem minha aplicação compulsória do imposto de renda, estou investindo em indústria bélica, em projetos que acabam com o meio ambiente e assim por diante...
O dinheiro participa do sistema que o gera. O fato de eu poder “comer como um padre” participa de uma estrutura em que muitos não podem fazer isso. Então, alimentado como um padre, devo pelo menos fazer tudo o que posso para que os outros possam alimentar-se assim também. Ou estar disposto a não mais comer como um padre, pois esta não é a realidade definitiva. A caridade, pelo contrário, é definitiva e não perece nunca (cf. 1Cor 13).
- II leitura: 1Tm 2,1-8
A 2ª leitura, extraída da leitura contínua das cartas de Paulo, trata de um tema diferente das outras. Paulo continua a reflexão em torno do anúncio da reconciliação que ele deve proclamar entre os gentios (cf. domingo passado). Nesse espírito, insiste na oração da comunidade, oração de agradecimento e intercessão por todos os homens (cf. também 17º domingo comum). O foco está na comunidade orante, no culto da comunidade, que comporta aspectos de petição, de adoração, de intercessão e de ação de graças. Todos precisam suplicar e devem agradecer, pois Jesus salvou a todos, sendo mediador único, dado em resgate por nós. Essa é a verdade que salva. A comunidade está diante de Deus rezando e agradecendo por todos, elevando suas mãos, purificadas pela prática da caridade, como as mãos do Crucificado.
Nós devemos traduzir nossa busca de unidade e reconciliação no fato de tornar-nos mediadores de todos, assim como Cristo reconciliou a todos, tornando-se mediador, por sua morte salvadora. A última frase (2,8) pode servir de motivação para que a comunidade reze, por exemplo, o Pai-Nosso, com as mãos elevadas ao céu, “sem ira nem rancor”.
III. Pistas para reflexão
A riqueza bem utilizada: Nesta e na próxima semana, a liturgia dominical está usando os textos de Amós como “aperitivo” para, depois, alimentar-nos com as palavras de Jesus. Hoje ouvimos na 1ª leitura uma crítica inflamada de Amós contra os que “compram os pobres por dinheiro”. Mas, no Evangelho, Jesus conta uma parábola que parece louvar o suborno que um administrador de fazenda comete para “comprar” amigos para o dia em que for despachado do seu serviço. Admiramo-nos de que Jesus tenha escolhido esse exemplo para explicar que ninguém pode servir a dois senhores: Deus e o dinheiro.
Ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro (cf. Lc 16,13). Há pessoas que observam as prescrições do culto, mas interiormente estão longe de Deus (cf. Is 29,13). Observam o sábado e a “lua nova” – festa religiosa tradicional no antigo Israel –, mas interiormente pensam em como explorar, logo depois, os pobres e os oprimidos com uma avareza sem fim: convertem em lucro até o refugo do trigo (Am 8,6; 1ª leitura). Para nada servem seus cultos e orações: Deus não os esquecerá (Am 8,7)! E, quanto aos oprimidos, Deus os levantará (salmo responsorial). As palavras de Amós nos advertem a respeito do vazio da riqueza procurada por si mesma. A riqueza não apenas não nos acompanha (cf. Lc 13,16-21), mas pode tornar-se causa de nossa condenação. Que dizer, então, de uma sociedade que põe tudo a serviço do lucro?
Aí está a fineza de Jesus. Mostra que nem mesmo um administrador inescrupuloso almeja somente o dinheiro. Esse “filho das trevas” é previdente, larga peixe pequeno para apanhar grande. Diminui o débito dos devedores para lograr a amizade das pessoas, a qual vai lhe ser muito mais útil que o dinheiro.
A lição para nós é: dar preferência àquilo que combina com Deus e o seu projeto, acima da riqueza material. E o projeto de Deus é: justiça e amor para com os seus filhos, em primeiro lugar os pobres.
A riqueza de nossa sociedade deve ser usada para estarmos bem com os pobres. A riqueza é passageira. Se vivermos em função dela, estaremos algum dia com “as calças na mão”. Mas se a tivermos investido num projeto de justiça e fraternidade para com os mais pobres, teremos ganhado a amizade deles e de Deus, para sempre.
Observe-se que Jesus declara o dinheiro injusto – todo e qualquer dinheiro. Pois, de fato, o dinheiro é o suor do operário acumulado nas mãos daqueles que se enriquecem com o trabalho dele. Todo o dinheiro tem cheiro de exploração, de capital não invertido em bens para os que trabalham. Mas já que a sociedade, por enquanto, funciona com este recurso injusto, pelo menos usemo-lo para a única coisa que supera a caducidade de todo esse sistema: o amor e a fraternidade para com os outros filhos de Deus, especialmente os mais deserdados e explorados. Assim corresponderemos à nossa vocação de filhos de Deus. Não serviremos o dinheiro, mas o usaremos para servir o único Senhor.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected]