Publicado em julho-agosto de 2021 - ano 62 - número 340 - pág.: 47-50
17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 25 de julho
Por Marcus Mareano
Alimentar os famintos
“Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?”, pergunta uma canção brasileira cuja letra exprime que o ser humano precisa de algo mais do que comida e bebida. Contudo, a liturgia deste domingo situa nossos pés na dura realidade de que há ainda muitas pessoas sem ter o que comer e o que beber, sem condições adequadas para a sobrevivência (saneamento, moradia, emprego etc.). A partilha dos pães nos lembra que nossos dons se multiplicam quando não os retemos para nós.
A dinâmica do pouco oferecido e partilhado com muitos se repete na primeira leitura e no Evangelho. O resultado é a formação de um povo abundantemente saciado por Deus, a ponto de sobrar mais do que havia na situação inicial. As pessoas alimentadas por Deus se unem, formando um corpo, o de Cristo, para viver a unidade na caridade do pão partilhado.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (2Rs 4,42-44)No segundo livro dos Reis, há algumas narrativas de milagres realizados pelo profeta Eliseu, sucessor de Elias. O episódio que lemos na liturgia apresenta a distribuição de pães semelhante ao que teremos no Evangelho.
Um homem trouxe para o profeta um saco de pão das primícias, feito de trigo novo, de acordo com a descrição de Lv 23,17. Eliseu, chamado de “homem de Deus” (v. 42), recebe daquele homem anônimo o que se destinava aos sacerdotes do templo (Lv 23,20). O profeta não retém a oferta para si, pede que seja repartida com todos.
O ajudante replica ao profeta, pois eram poucos pães para muitas pessoas. Eliseu insiste na distribuição dos pães, esperando, conforme a palavra do Senhor, que todos comeriam e se fartariam. Assim aconteceu, como cumprimento da Palavra de Deus dita pelo profeta.
O relato se assemelha ao que já conhecemos das narrativas de multiplicação dos pães realizada por Jesus nos Evangelhos. Um bocado de pão oferecido, acolhido e distribuído a uma multidão. No fim, as sobras superam o que se tinha e percebe-se a superabundância da ação divina. O pouco ofertado, abençoado e partilhado se torna muito para satisfazer a todos profusamente.
2. I leitura (Ef 4,1-6)
Continuando a leitura da carta aos Efésios, acompanharemos, nos próximos domingos, a segunda parte da carta (Ef 4,1-6,20), que oferece orientações mais práticas para a comunidade. No trecho desta liturgia, temos um convite à unidade por meio da boa vivência dos vínculos fraternos.
O início exorta os destinatários a viver uma vida conforme o chamado recebido desde o princípio da fé em Cristo. A comunidade sofria com alguns dos seus membros rompendo a unidade, entusiasmando-se com heresias e, por conseguinte, conduzindo-se segundo uma moral dissoluta e distante dos ideais cristãos. As separações ocorriam por conta desses ensinamentos contrários à fé comum. Então, deve-se praticar a humildade, a mansidão, a paciência e suportar uns aos outros em prol dessa unidade ameaçada pelas discórdias.
Em seguida, o texto recorda a unidade do corpo que constitui a Igreja, comunidade de fé. Há uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só batismo, pois Deus é único e Pai de todos (Ef 4,6; Cl 3,12-15). Não se trata de uma unidade de aparências por falta de diversidade, mas de uma unidade em construção com base na fé em Deus uno.
No contexto da primeira leitura e do Evangelho, podemos relacionar a unidade indicada pelo autor com os pães distribuídos. A Eucaristia celebrada unifica os fiéis em um só coração e uma só alma para viver o mistério do amor no mundo.
3. Evangelho (Jo 6,1-15)
Na liturgia do Ano B, ano do Evangelho de Marcos, acompanhamos por alguns domingos o discurso do “pão da vida” em João 6. Trata-se de catequese eucarística ampliada da narrativa dos pães em Marcos.
Na sequência do Evangelho de João, Jesus conclui abruptamente o ensino a respeito do testemunho que ele dá do Pai (Jo 5,47). A partir de Jo 6,1, a cena se desloca de Jerusalém para o interior, a Galileia. Jesus se encontra à beira do lago de Tiberíades (ou de Genesaré) e atravessa-o. Tal como em Mc 6,33-34, muita gente vai atrás dele, por ter visto os sinais que ele realizava.
Entretanto, Jesus sobe com seus discípulos aos montes que ladeiam o lago. O evangelista situa o evento na época da Páscoa judaica, a comemoração do êxodo dos israelitas, quando Deus livrou seu povo da escravidão do Egito, alimentou-o no deserto e guiou-o à Terra Prometida. O leitor já se prepara para uma ação de Jesus semelhante à de Moisés junto ao povo no deserto.
Então, Jesus vê a multidão do alto da montanha e questiona Filipe, para experimentá-lo: “Onde vamos comprar pães para que estes possam comer?” (v. 5). Jesus sabe o que quer e como vai agir. Ele toma a inciativa. Em João, a pergunta “de onde?” sempre evoca uma origem misteriosa, algo que possui origem divina (Jo 1,48; 2,9; 3,8; 4,11; 6,5; 7,27-28; 8,14; 9,29-30; 19,39).
Portanto, Jesus possui um conhecimento superior ao dos discípulos, entre os quais Filipe, que pensa em termos deste mundo e conclui que 200 denários não bastam para que cada um receba um pouco de pão (cf. Mc 6,38 e paralelos; um denário parece ser a diária de um lavrador: Mt 20,2). Outro discípulo observa diferente. Há um menino com cinco pães de cevada e dois peixinhos (v. 9). João apresenta esse personagem com pães e peixes para recordar Eliseu (2Rs 4,21-44).
Eles estão diante do impasse de alimentar numerosa multidão com tão pouco. Então, Jesus entra em ação e ordena que os discípulos acomodem as 5 mil pessoas na grama daquele lugar ermo (v. 10). Em seguida, Jesus tomou os pães e, tendo dito a ação de graças (eucharistia), distribuiu-os aos que estavam sentados. Fez do mesmo modo com os peixinhos. Os gestos e as palavras usados no Evangelho são os mesmos da celebração dos primeiros cristãos.
Os pães e os peixes se tornaram abundantes, a ponto de alimentarem a multidão que seguia Jesus. Quando terminaram de comer, Jesus mandou recolher o que havia sobrado. Foram 12 cestos cheios das sobras dos cinco pães e dos dois peixinhos (v. 12-13). O número 12 representa as tribos do antigo povo de Israel e também os apóstolos, o novo povo de Deus, a Igreja; logo, o novo povo de Deus alimentado no deserto, sinal do dom messiânico de Deus em Jesus, que age como novo Moisés.
O Evangelho de João fala de “sinais” realizados por Jesus. Prefere esse termo a milagres, pois os acontecimentos apontam para uma realidade além daquela apresentada imediatamente. Por isso, o povo reconhece Jesus como um profeta que deve vir ao mundo, a exemplo de Moisés, Elias e Eliseu (Dt 18,15; Ml 3,1.23), mas quer segurá-lo para proclamá-lo rei, um messias (rei) apenas político. Aquelas pessoas só pensavam na saciedade da fome material.
Havia um sentido mais profundo naquele acontecimento. As pessoas comeram pão e peixe e não observaram que aquilo indicava a partilha do pão e do vinho na última ceia, a qual, por sua vez, prenunciava a entrega de Jesus na cruz, sua morte e ressurreição. Logo, o sinal dos pães convidava a pensar em um alimento superior, que era a vida de Cristo.
Por fim, Jesus se retira sozinho para o monte (v. 15). Uma atitude de quem precisa de orientação divina para seguir adiante e de quem se inspira para agir de melhor maneira com seus discípulos.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A liturgia da Palavra nos convida à partilha. Há tantas pessoas famintas, sem vestuário, sem emprego digno, sem moradia adequada etc. Muitas realidades instigam nossa sensibilidade cristã para agirmos em favor dos mais vulneráveis da sociedade.
Ainda que não nos insiramos em algum projeto social perene, podemos agir de maneira mais solidária e fraterna nas relações mútuas. A Escritura nos convida a distribuir o pão que temos e somos. Apesar de podermos partilhar um pouco dos bens que possuímos, cabe-nos oferecer também nossas qualidades, nosso tempo para ouvir, a sabedoria acumulada nos anos, as experiências de vida, histórias marcantes, testemunhos de fé etc. Olhando nossos cestos, podemos encontrar outros pães e peixes para outras necessidades. Sempre temos o que oferecer!
Seria grande tristeza ter nossos estoques interiores vazios. Depois de alguns anos de vida, olhar para o passado e perceber que acumulamos quinquilharias, que nada temos para distribuir, para partilhar com quem está ao nosso lado.
Neste domingo celebramos o dia mundial do idoso, instituído pelo papa Francisco para recordar as pessoas mais maduras que muito nos ensinam com a experiência acumulada. Trata-se de oportunidade para pensarmos no cuidado mútuo e no sentido que damos à vida. Pode ser terrível percebermos que uma vida inteira se passou, tendo-nos encontrado muito ocupados com coisas e na mais completa vacuidade. Trágica verdade quando deparamos com o silêncio da inutilidade, de quem não viveu, de quem nada experimentou.
Olhando nossa vida e o que podemos oferecer, cabe-nos perguntar: “A quem daremos os pães? Que pães daremos? Como daremos esses pães?”.
Marcus Mareano
é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]