Publicado em julho-agosto de 2021 - ano 62 - número 340 - pág.: 44-47
16° DOMINGO DO TEMPO COMUM – 18 de julho
Por Marcus Mareano
A compaixão pelas ovelhas sem pastor
Contemplamos, nas Escrituras, a vida humana de Jesus, que teve um corpo, criou relações, agiu como humano e manifestou a presença de Deus em sua existência. Aprendemos a viver conforme sua vida, seguindo seus passos e praticando seus ensinamentos.
A liturgia deste domingo nos põe frente a frente com a compaixão que Jesus experimentava pela multidão que o seguia. As necessidades eram numerosas e de diferentes tipos (físicas, psíquicas, espirituais, materiais etc.), tal como vemos no nosso mundo presente. O que já era difícil se agravou com o período da pandemia, cujas sequelas ainda tanto nos impactam.
Celebrar a Palavra de Deus e a Eucaristia significa comprometer-se com a proposta que nos é comunicada. Deus promete novos pastores para seu povo (1 leitura), pois os reis estavam descompromissados com a missão. Jesus se recolhe com seus discípulos e percebe uma multidão numerosa que dele precisa (Evangelho). Ele reúne todos os dispersos, formando um só povo e derrubando os muros que nos separam (II leitura). Há um apelo para a compaixão, pois muitos vivem como “ovelhas sem pastor”.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 23,1-6)
Essa passagem pertence à coleção de vários oráculos relativos aos últimos reis de Judá (Reino do Sul). O trecho selecionado para a liturgia é a conclusão, na qual Deus anuncia pastores (líderes) conforme seu coração, isto é, que tenham seus mesmos pensamentos, dispostos a realizar sua vontade e serem fiéis à Aliança. Uma profecia semelhante encontra-se em Ez 34.
A perícope se inicia em forma de imprecação: “ai dos pastores...” (v. 1). Há uma oposição aos reis, que deveriam cuidar do povo e zelar pelo cumprimento dos mandamentos, no entanto abandonam o rebanho por causa de interesses particulares. O Senhor Deus é comparado a um pastor (Sl 23,1-4; 78,25-26; 95,7), e os reis e outras lideranças deveriam ser reflexo dessa presença divina.
A profecia se dirige contra esses maus pastores do povo. Eles o abandonaram, ocuparam-se em dispersar as ovelhas, ao invés de unir, e comportaram-se de maneira perversa e irresponsável (v. 2). Então, Deus vai reunir o que foi disperso, procurar o que está perdido e conduzir a lugares seguros. Em seguida, vai suscitar novos pastores para apascentar seu rebanho e agir conforme os tempos messiânicos (Jr 3,15; 29,10-14; 30,10).
Enfim, o oráculo identifica uma pessoa que assumirá essa função. Deus estabelecerá um rei, descendente de Davi, que será competente, defenderá o direito e a justiça (binômio importante para os profetas bíblicos) e terá por nome “Senhor, nossa justiça” (v. 6). Em hebraico, essa expressão evoca, ironicamente, o nome do rei Sedecias.
O texto cria a expectativa de um enviado de Deus para o cuidado do povo. Ainda hoje sofremos da mesma mazela de lideranças, principalmente políticas, descompromissadas com a maior parte da população. Triste situação a que assistimos em nosso país e em outras partes do mundo: os maus pastores prejudicando o rebanho de Deus.
O Senhor, nossa justiça, age para reunir o que se dispersa e curar o que se fere. Enquanto alguns agem mal, outros ouvem a Palavra de Deus e buscam ser seu reflexo como pastores do povo que desejam a vida, e não a morte.
2. II leitura (Ef 2,13-18)
A segunda leitura comunica a unidade de todos em Cristo. As segregações devem ser superadas, e, as diferenças, diminuídas, pois o Senhor aboliu os motivos que separavam as pessoas.
Para o judaísmo antes de Jesus e contemporâneo a ele, os pagãos estavam longe de Deus devido ao desconhecimento da Lei e às suas práticas idolátricas. Entretanto, Cristo trouxe os pagãos para junto de Deus (v. 13). A comunidade dos efésios experimentava o que lemos no texto. Eles se converteram à fé cristã sem passar pela circuncisão.
A situação de perturbação pela separação de Deus é revertida pelo sangue de Cristo, ou seja, por sua vida. Por isso, ele é a “paz” de todos, porque uniu o que estava dividido pelo muro dos preconceitos e do apego às normas e costumes. A existência carnal de Jesus faz que o amor supere o ódio e o perdão prevaleça sobre a punição.
A separação principal existente na comunidade dos efésios e em outras comunidades do Império Romano era a distinção entre judeus e pagãos. Então, a partir do judeu e do pagão, Cristo estabelece uma unidade de paz (v. 13.17), formando das duas etnias uma nova humanidade em comunhão com Deus e com pessoas unidas umas às outras.
A ação de Jesus veio unir e aproximar os que estavam distantes. Portanto, todos têm acesso ao Pai e podem viver na paz da sua comunhão (v. 18).
Ao contrário do que algumas mentalidades conservadoras defendem, Cristo não veio somente para alguns nem para segregar classes de pessoas. Ele veio unir, congregar, derrubar os muros e, como diria o papa Francisco, “construir pontes”. As atitudes que vemos de exclusão social, discriminação, injustiça e preconceito não são inspiradas na fé autenticamente cristã, mesmo quando usam o nome de Deus.
3. Evangelho (Mc 6,30-34)
Na sequência da leitura contínua do Evangelho de Marcos, lemos neste domingo o retorno dos discípulos da missão dois a dois (cf. domingo anterior: Mc 6,7-13), o recolhimento de Jesus para um lugar à parte (v. 31) e a compaixão pela multidão (v. 34).
Os apóstolos (enviados) regressam da missão e comunicam a Jesus os acontecimentos e ensinamentos (v. 30). Estavam entusiasmados com a experiência missionária e com os fatos que acompanharam a pregação deles. Então, Jesus lhes propõe ir a um lugar deserto, descansar, distante da multidão (v. 31-32). Era uma maneira de não apenas repousar, mas de avaliar e planejar para seguir adiante. A pausa é fundamental para melhor prosseguir. O deserto, nas Escrituras, é imagem do lugar da aliança de Deus com seu povo.
Contudo, a multidão não desiste de Jesus e dos discípulos. Muitas pessoas das cidades vizinhas, das aldeias por onde o grupo passava e outras que ouviam falar de Jesus iam até ele para encontrá-lo e ouvi-lo. A multidão chega antes de Jesus sair da barca (v. 33).
Ao ver aquela gente, Jesus se compadece dela pelos seus sofrimentos e necessidades. Ele “se move de compaixão”, como Deus (Ex 34,5-6; Is 40,11). Marcos a compara a “ovelhas sem pastor” (v. 34), imagem presente desde o Antigo Testamento, que descreve a demanda de uma voz para nortear o rumo a seguir (Nm 27,17; Ez 34,5.8; Jr 50,6). Jesus é a Palavra de Deus encarnada que revela o mistério do amor do Pai. As pessoas precisavam desse “novo” ensinamento que consola e dá sentido à existência. Havia uma busca por parte de muitos, e eles encontravam resposta em Jesus.
O conteúdo do ensino de Jesus era o Reinado de Deus. Seu método não consistia em explicações descritivas a respeito do mistério do Reino, mas na vivência dele entre as pessoas. Isso atraía a multidão, cansada de tantos discursos vazios. Por isso, trata-se de ensinamento “novo”, como de alguém que tem “autoridade” (Mc 1,27).
A existência humana de Jesus era a explicação do Reinado de Deus. Diante das misérias daquele tempo, Jesus aliviava a dor com a presença de Deus. Sobretudo diante das doenças, não existiam muitos recursos. A medicina era pouco evoluída e para poucos; por isso, as curas possuíam tremenda implicação social, o que levava muitos a querer estar com Jesus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Nossas realidades eclesiais e o mundo em que vivemos estão repletos de pessoas que caminham como “ovelhas sem pastor”, sem maiores sentidos de vida, sem propósitos nem objetivos. A Palavra de Deus propõe o recolhimento e o encontro.
Não somos apenas uma carne para ser cuidada, mas somos seres humanos vivos, livres, conscientes e desejosos de transcendência. Jesus nos convida a ir a um lugar tranquilo, sereno, para conversar, encontrar as belezas de Deus presentes na vida de todos nós, na luta dos operários, no trabalho de um médico, de um construtor, no esforço de um jovem que busca emprego, de um recém-formado, de alguém que estuda para entrar na universidade... Quantas histórias lindas temos para perceber em nós e no nosso meio! Somos, todavia, demasiadamente ocupados com uma vida vazia.
Assim como agiu com seus discípulos, Jesus também nos indica o silêncio e o recolhimento, para ouvirmos melhor o próprio interior, onde Deus habita. A unidade e a reunião das “ovelhas dispersas” se iniciam desde dentro, quando acolhemos nossos fragmentos e nos integramos na fé, no Senhor. A partir daí, ajudamos essa unidade em Cristo a realizar-se em outras pessoas, nas nossas comunidades e na nossa sociedade.
A compaixão sentida por Jesus deve preencher nosso coração e nos deslocar para o encontro com o outro necessitado. Não apenas como mero sentimento, mas como jeito de ser e de agir. Há tantas pessoas por aí necessitando da compaixão de Deus!
Marcus Mareano
é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]