Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 42-45
16 de março – 2º DOMINGO DA QUARESMA
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
“Este é o meu Filho, o Escolhido, escutai
o que ele diz”
A liturgia deste 2º domingo da Quaresma, do episódio da transfiguração, conduz-nos à montanha sagrada com Jesus, a fim de “provarmos” de sua glória antecipada, a ressurreição. O Evangelho de Lucas destaca os testemunhos de Moisés e Elias, símbolos da Lei e dos Profetas, que atestam que Jesus está no caminho da realização da vontade de Deus. Da nuvem, uma voz ratifica que Jesus é o Filho amado, o qual nos cabe escutar. Já no caminho para Jerusalém, na montanha, lugar do encontro com Deus, o Cristo revela sua glória – força propulsora da ressurreição. Esse ato de Jesus nos faz lembrar parte do breve Cântico XIII de Cecília Meireles: “Renova-te. Renasce em ti mesmo. Multiplica os teus olhos, para verem mais...”. Na primeira leitura, Abraão é confirmado por Deus como seu servo. A aliança entre Deus e Abraão é selada com um sacrifício. O Senhor, de sua parte, concederá aos descendentes do patriarca a posse da terra. Na segunda leitura, a comunidade de Filipos é admoestada pelo apóstolo a imitá-lo, sobretudo se tornando amigos da cruz de Cristo em vista da participação ativa, consciente e frutuosa da cidadania celestial, na glória vindoura.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Gn 15,5-12.17-18)
Abraão é figura lendária da tradição bíblica do Antigo Testamento, símbolo, por antonomásia, da fé no Deus único. Sua fé é traduzida como convicção e obediência, não obstante as imperfeições humanas das quais esse patriarca compartilha. Ele traduz a saga de um povo, convidado a habitar a terra que o Senhor lhe prometeu. Essa travessia se dá por meio de um pacto ou aliança (berit, em hebraico) que Deus estabelece com Abraão e sua descendência numerosa (v. 5), incontável como as estrelas do céu e as areias do mar.
O povo seminômade, em regime tribal, vive a atividade pastoril. Para a maioria das nações vizinhas de Canaã, havia um “deus”, ligado seja à fertilidade, à terra ou à água. Abraão não desconhece tais deuses, mas faz uma aliança estrita com Adonai, o Deus verdadeiro. Esse Senhor concede-lhe suas bênçãos, como a fecundidade de Sarai, esposa do patriarca, que gerará Isaac, o filho da promessa. Deus lhes é providente e bom: percebe a necessidade de seu povo, não obstante as misérias e incompreensões das pessoas.
Deus confirma seu servo fiel, Abraão: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos caldeus, para te dar em possessão esta terra” (v. 7). Abraão questiona como possuí-la (v. 8); em seguida, Deus lhe pede um ato generoso de doação (v. 9). O patriarca realiza o combinado (v. 10). Todo rito é feito por Deus, representado pelo braseiro fumegante (v. 17), conforme a tradição das Escrituras – recordemo-nos, aqui, da narrativa da sarça ardente em fogo, que não se consumia diante de Moisés (Ex 3,2-3). Desse modo, no v. 18, Deus sela a Aliança com seu servo Abraão, prometendo uma terra a seus descendentes, desde o rio Nilo, no Egito, até o Eufrates, na Babilônia. Essa cena teofânica (que evidencia a manifestação de Deus) transforma significativamente a vida de Abraão: de alguém que se propõe realizar a vontade de Deus (promessa) àquele que concretizará sua saga, mesmo que por meio de seus descendentes (cumprimento).
2. II leitura (Fl 3,17-4,1)
A exposição retórica de ideias, por parte de Paulo, em Filipenses chega a um clímax narrativo parenético, ou seja, exortativo – aquilo que poderíamos chamar de instrutivo. O v. 17, passagem que inicia o texto, afirma: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que damos”. Há, além de Paulo, outros que vivem conforme seu modo de agir. Para ele, o modo de proceder e de tratar as coisas de Deus é fundamental. A fé se fundamenta também pela ação: assim, não há verdadeira fé sem obras de caridade. Paulo justifica esse exórdio do v. 17 logo em seguida, chorando por existir, no interior da comunidade cristã, muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo, hostis a ela. Isso equivale a dizer que, ao pregarem algo (a circuncisão) que nega a eficácia da cruz, anulam o significado teológico do autossacrifício redentor do Senhor (Gl 2,21).
No v. 19, Paulo é ainda mais agudo: o fim deles é a destruição (ruína escatológica; do grego, apoleia); o deus deles é o ventre (estômago), referindo-se ao zelo com as leis alimentares e denotando o egoísmo (Rm 16,18: “servem a si mesmos”). A glória destes, Paulo diz, está no que é vergonhoso, como a jactância (orgulho) da circuncisão que vivem (v. 2-3), pois observam as coisas terrenas, “o que está sobre a terra”, isto é, o que pertence à era antiga, agora plenamente ultrapassada por Cristo.
Em sentido contrário a esses que se orgulham do apego aos costumes humanos, Paulo diz: “Nós, porém, somos cidadãos do céu” (v. 20; politeuma en ouranóis). Em outras palavras, “nossa cidade está no céu”. Embora ainda não tenha chegado o novo éon (“tempo”, expressão grega para dizer “cem anos”), os cristãos já estão inscritos na “cidade celestial” (Gl 4,24-27; Ef 2,19). Paulo está evidenciando agora a escatologia cristã, segundo a qual a salvação não se dá sobre esta terra, com a observância irrestrita à Lei, mas vem de Cristo, como justiça de Deus.
O v. 21 denota essa transformação de corpos (soma) humilhados em gloriosos (em grego, doxês: exaltados). A transfiguração do corpo mortal em imortal (1Cor 15,50) é possível na configuração a Cristo ressuscitado, que é modelo e agente da verdadeira humanidade que Deus deseja a todo ser humano desde a eternidade (Rm 8,19-21.29-30). A passagem conclui-se com uma peroratio, uma exortação final dirigida aos irmãos amados (adelfoí agapetoì): “continuai firmes (pode ser lido como “perseverantes”) no Senhor”. A base de toda exortação paulina é cristológica, permitindo-nos entender que tudo é possível ao cristão por e em Cristo.
3. Evangelho (Lc 9,28b-36)
O 2º domingo da Quaresma é marcado pelo sinal luminoso e encorajador da transfiguração de Jesus. O Senhor caminha em direção a Jerusalém para a morte de cruz. A transfiguração constitui um sinal prévio da ressurreição, uma antecipação do que se espera no tempo oportuno. Jesus apresenta, no Evangelho, duas atitudes fundamentais de sua vida no meio da humanidade: o chamado ao discipulado e a oração (v. 28b-29). Ele levou consigo Pedro, Tiago e João, que, em momentos decisivos, o acompanhavam (Mc 5,37). A oração do Senhor mantém viva sua relação com o Pai, a quem se dirigia sempre. Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência (to eidos tou prosópon autou heteron, “diferente”), e suas roupas ficaram brancas e brilhantes, simbolizando a cor da glória, do transcendente (Mc 16,5; Jo 20,12; Ap 7,9).
O v. 30 apresenta Jesus conversando com Moisés e Elias, o que significa que a “estrada que Jesus está trilhando está em acordo com a Lei e os Profetas, isto é, a vontade de Deus” (Robert Karrys, ofm, novo comentário bíblico São Jerônimo, Paulus). Esse versículo deve ser lido em consonância com a narrativa dos discípulos de Emaús, com os quais Jesus também falava, no caminho, da Lei e dos Profetas (Lc 24,26-27). Lucas é o único dos sinóticos que afirma que Jesus e suas testemunhas conversavam, preparando o leitor para a próxima etapa de Jesus, que ensinará, em Jerusalém, o caminho que o levará para o Pai. O v. 31 descreve-os revestidos de glória, associada com a glória do Ressuscitado (Lc 24,26). Essa glória também está ligada às curas realizadas por Jesus ao longo do Evangelho, as quais levavam as pessoas a glorificar a Deus (Lc 5,26; 7,16).
A proposta de “armar três tendas” consiste em uma desconexão causal do narrador realizada por Pedro na narrativa teofânica (v. 33), que revelou a natureza da morte de Jesus, pelo sofrimento (v. 31), e a passagem do sono para a não compreensão do que estava acontecendo. Pedro e os discípulos ainda estão longe de compreender o fim, a glória da ressurreição. O v. 33 alude à festa dos Tabernáculos (sukkot, cf. Dt 16,16) e a nuvem (v. 34) simboliza a shequinah, a in-habitação de Deus.
No v. 35, encontramo-nos com as palavras do Pai: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” Elas recordam as palavras na cena do batismo do Senhor (Lc 3,21-22). A nuvem faz recordar o povo que andava pelo deserto, amparado por Deus (Ex 14,19; 40,34-35; Nm 9,15-23; 10,34; 14,14); em Lucas (1,35), Maria terá sobre si a sombra do Altíssimo. Já “escutar o Filho” constitui o mandamento do Pai, que fala do alto céu. A palavra que Jesus traz é o alimento para a vida dos discípulos. Há ainda uma alusão a Moisés, que fala a seu povo, como em Dt 18,15, instruindo-os. A cena teofânica (v. 36) encerra-se com o silêncio messiânico sobre Jesus, pois tudo será compreendido somente no fim. Essa passagem pode ser considerada uma antecipação da exuberante glória da ressurreição, revelada no final do Evangelho, após a morte de Jesus (Lc 24,1-12). O relato lucano da ressurreição põe em destaque o v. 4: “dois homens vestidos de roupas reluzentes”, como aqueles que são iluminados pela glória do Ressuscitado.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Hoje, os ministros ordenados podem convidar os fiéis leigos ao compromisso da oração. Orar é se retirar, não necessariamente a uma montanha, mas dentro de si mesmo, para encontrar a luz do Ressuscitado, que habita as sombras de nossa vida tão corrida e fatigante. Pode-se propor um exame de consciência quaresmal para perceber se estamos no caminho de Jesus, como seus amigos, ou se nossas atitudes estão na contramão do que diz Jesus. Pode-se também propiciar às lideranças da comunidade local um retiro quaresmal, para que, a exemplo de Abraão, também o povo possa renovar a aliança com Deus – visível sacramentalmente na experiência fraterna de escuta da sua Palavra –, se possível ao redor da Eucaristia, sacramento do amor e da paz.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: [email protected]