Publicado em janeiro-fevereiro de 2025 - ano 66 - número 361 - pp. 57-61
16 de fevereiro – 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Gisele Canário*
Os sinais do ministério de Jesus
I. INTRODUÇÃO GERAL
O 6º domingo do Tempo Comum nos traz uma reflexão que une a confiança em Deus diante das adversidades, a centralidade da ressurreição de Jesus e as bem-aventuranças anunciadas e vividas por ele, que abalam as estruturas sociais e econômicas da época e de hoje. A profecia de Jeremias, atuando num período de crise no Reino de Judá, adverte contra a confiança excessiva na força humana e destaca a importância da fidelidade ao projeto do Deus da vida, usando a metáfora da árvore plantada junto às águas para ilustrar a prosperidade dos que o seguem. As leituras deste domingo reafirmam a força do projeto de Jesus, oferecendo uma esperança que sustenta a vida daqueles que decidem seguir suas práticas e ensinamentos. Nesse sentido, os “ais” do Evangelho invertem os valores do mundo in- tolerante e sem vida para sublinhar a dimensão radical do Reino de Deus. Somos convidados a cultivar uma fé robusta, ancorada na decisão de seguir a proposta de Jesus e na esperança da ressurreição, que é sempre plenificada por um mundo novo, cheio de amor e justiça, já nesta existência. Portanto, viver a misericórdia e a justiça divina deve ser uma prática cumprida aqui e agora, neste mundo carente de com- paixão em todas as suas dimensões.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 17,5-8)
O profeta Jeremias atuou no século VI a.C., durante um período de intensa cri- se no Reino de Judá, causada por ameaças de invasão e desintegração política. Nesse contexto, a mensagem profética de Jeremias torna-se urgente e necessária, advertindo que a autossuficiência leva à desolação e ao fracasso. Ele usa a metáfora do cardo no deserto para descrever aqueles que confiam apenas em si mesmos: são como plantas que não percebem a chegada da floração, vivendo em regiões áridas e desabitadas, sem prosperidade nem crescimento.
Em contrapartida, o profeta dá ênfase à árvore plantada junto às águas, que representa aqueles que confiam em Deus. Essa árvore possui raízes profundas, que se estendem em busca de umidade, e jamais teme a chegada do calor, mantendo suas folhas verdes e sempre dando frutos, mesmo em tempos de estiagem. No Oriente Médio antigo, onde a água é escassa, essa imagem da árvore plantada junto às águas simboliza a sobrevivência, a prosperidade e a vitalidade. Jeremias quer dizer, com essa metáfora, que a segurança e a estabilidade fazem parte do projeto do Deus da vida e são garantidas àqueles que nele confiam e seguem essa proposta.
Sem dúvida, a mensagem de Jeremias possui uma ressonância importante no contexto litúrgico deste domingo, convidando os seguidores do projeto de Jesus a refletir sobre a centralidade da fé em Deus na própria vida. No mundo atual, que muitas vezes valoriza a autossuficiência e o materialismo, a leitura nos desafia a reconsiderar onde depositamos nossa confiança. A promessa de prosperidade e estabilidade para aqueles que confiam em Deus é convite a uma fé séria e profunda, que transcende as circunstâncias temporais e se enraíza na esperança eterna, sempre considerando a vida e o cuidado com ela no mundo presente.
2. II leitura (1Cor 15,12.16-20)
A leitura nos apresenta uma reflexão teo- lógica importante sobre a ressurreição de Jesus. Paulo escreve à comunidade de Co- rinto, uma cidade cosmopolita e influenciada por diversas correntes filosóficas e religiosas. Nesse ambiente, ele é confrontado com cer- to ceticismo em relação à ressurreição dos mortos. Existem membros na comunidade que não acreditam na ressurreição e ques- tionam sua possibilidade por influência da cultura grega, que valorizava a imortalidade da alma, mas não a ressurreição do corpo.
Paulo deixa claro que a ressurreição de Cristo é o pilar sobre o qual se sustenta toda a fé cristã. Ele argumenta que, se Cristo não ressuscitou, então a pregação cristã é vazia, a fé dos crentes é inútil e os cristãos ainda estariam em seus pecados. Essa afirmação revela a centralidade da ressurreição como um evento histórico para os cristãos e como a base da redenção e da vida nova em Cristo.
Paulo se utiliza de uma imagem agrícola familiar ao seu público, na qual as primícias representam a primeira colheita que garante e antecipa outra mais abundante. Assim, a ressurreição de Cristo é a garantia da futura ressurreição de todos os que creem nele e seguem seu projeto. Essa esperança não pode ser entendida apenas como uma expectativa futura, mas deve transformar a vida presente dos cristãos, infundindo significado e propósito na sua existência.
É preciso entender que Paulo escrevia à luz da sua compreensão da época em que vivia. Ele aborda a cultura helenística, que tinha uma visão dualista do corpo e da alma. Para os gregos, o corpo era considerado uma prisão para a alma, e a ideia da ressurreição do corpo era absurda. Contrariamente a essa posição, o apóstolo insiste na ressurreição do corpo, sublinhando a redenção completa da pessoa humana, corpo e alma, em Cristo.
É interessante notar que essa compreensão de Paulo acerca da ressurreição de Cristo desafia as estruturas sociais e políticas do mundo romano, que venerava o imperador como um deus e promovia a pax romana como a salvação suprema. Nesse sentido, a ressurreição de Jesus subverte essa visão, proclamando um Reino que vai além do poder meramente terrestre e oferece verdadeira esperança de vida eterna.
A certeza da ressurreição anunciada por Paulo transforma a perspectiva sobre a morte e também sobre a vida presente, incentivando uma existência marcada pela justiça, pelo amor e pela fidelidade ao projeto do Deus da vida.
3. Evangelho (Lc 6,17.20-26)
O Evangelho de Lucas, redigido entre 80 e 90 d.C., surge num período de grande tensão entre os primeiros cristãos e as autoridades judaicas e romanas. Lucas, médico conforme a função da época e companheiro de Paulo, escreve para um público predominantemente gentio, sublinhando a universalidade da mensagem de Jesus e destacando que ela é destinada a todos, independentemente de sua origem étnica, social ou econômica.
Nesse contexto, a sociedade era profundamente dividida por barreiras sociais e econômicas. A mensagem de Jesus, conforme registrada pelo evangelista, desafia as normas sociais da época. Ao proclamar as bem-aventuranças dos pobres, famintos, chorosos e perseguidos, Jesus inverte os valores do mundo. Em uma sociedade que exalta a riqueza, o poder e o status, a mensagem que ele anuncia destaca a importância da humildade, da solidariedade e da confiança em Deus.
Jesus não possuía poder político ou religioso para transformar imediatamente a situação injusta de seu povo. Ele contava apenas com a força de suas palavras. Os evangelistas registram os clamores subversivos que Jesus proclamou nas aldeias da Galileia em diversas situações. Suas bem-aventuranças permanecem gravadas na memória de seus seguidores. Jesus encontra-se com pessoas empobrecidas, que não conseguem defender suas terras dos poderosos, e declara: “Felizes os que não têm nada, porque vosso Rei é Deus”. Ao ver a fome das mulheres e crianças desnutridas, ele proclama: “Felizes os que agora têm fome, porque serão saciados”. Ao testemunhar os camponeses chorando de raiva e impotência quando os cobradores de impostos levam o melhor de suas colheitas, consola-os: “Felizes os que agora choram, porque rirão”.
Poderia parecer zombaria ou cinismo se Jesus estivesse falando de um palácio ou de uma vila de Jerusalém, mas ele está com eles, sem dinheiro, descalço e sem uma túnica de reposição. É um indigente entre eles, falando-lhes com fé e total convicção.
Jesus é realista. Ele sabe que suas palavras não significam o fim imediato da fome e da miséria dos pobres. No entanto, o mundo precisa reconhecer que eles são os filhos prediletos de Deus, e isso confere à sua dignidade uma seriedade absoluta. A vida deles é sagrada.
O que Jesus quer deixar claro em um mundo injusto é que aqueles que não interessam a ninguém são os mais queridos por Deus; os marginalizados ocupam um lugar privilegiado em seu coração; aqueles sem defensores têm Deus como Pai.
Nós, que vivemos confortavelmente na sociedade da abundância, não temos o direito de pregar as bem-aventuranças de Jesus a ninguém. Cumpre-nos ouvi-las e começar a enxergar – da mesma forma que Deus os vê – os pobres, os famintos e os que choram. Só então poderá surgir nossa verdadeira conversão.
Por fim, a mensagem de Jesus, conforme narrada por Lucas, é um chamado para a comunidade cristã de ontem e de hoje refletir sobre suas atitudes e valores. Em um mundo que frequentemente exalta o materialismo e a autossuficiência, as bem-aventuranças nos lembram da importância de uma fé enraizada na dependência do Deus da vida e na prática do amor ao próximo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– Confiança no Deus da vida. Da mesma forma que Jeremias exorta o povo a confiar no Senhor, em vez de apenas nas capacidades humanas, somos chamados a examinar onde temos depositado nossa confiança e segurança na vida. Em um mundo marcado por diversos tipos de intolerância, seguir o projeto do Deus da vida nos impulsiona a estar do lado comprometido com a vida e a justiça.
– Ressurreição e compromisso. A ressurreição de Cristo é o fundamento da nossa fé. Como essa verdade impacta nossa vida diária e nossa visão de futuro? A ressurreição re- presenta vida nova, é a prática do amor em prol do bem comum. Ressurreição é atitude e compromisso diário com o Deus da vida.
– Bem-aventuranças. As bem-aventuranças de Jesus questionam nossas ideias sobre felicidade e sucesso. Como podemos aplicar esses ensinamentos em nosso contexto atual? O Evangelho ressoa de maneiras diferentes para diferentes pessoas. Para os pobres, é uma mensagem de esperança que os convida a encontrar consolo; para os ricos, é um chamado à transformação e à mudança de coração. Como podemos entender e vivenciar essa mensagem em nossas comunidades cristãs?
– Convite ao compromisso. A mensagem das leituras deste domingo ecoa ao longo dos séculos, desafiando-nos a examinar onde depositamos nossa confiança e segurança na vida. Ela quer suscitar em nós uma fé que transcenda as circunstâncias temporais, enraizando-se na esperança eterna e na pessoal e social. Que possamos responder ao chamado de Jesus com generosidade e coragem, comprometendo-nos com a construção de um mundo mais justo, solidário e compassivo, onde todos possam experimentar a plenitude da vida que Cristo nos prometeu.
Gisele Canário*
*é mestra em Teologia, com ênfase em Exegese Bíblica (Antigo Testamento), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É licenciada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul e assessora no Centro Bíblico Verbo, onde atua, desde 2011, com a confecção de material para estudos bíblicos, gravação de vídeos, formação em comunidades eclesiais e cursos bíblicos on-line.