Roteiros homiléticos

Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 40-42

15 de setembro – 24º Domingo do Tempo Comum

Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

Tome a sua cruz e me siga!

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia deste domingo nos convida a confessar Jesus como Messias, o Filho de Deus. “Tome a sua cruz e me siga!” é o convite dirigido a nós, cristãos. Para tal, o Evangelho nos chama à renúncia, deixando de lado tudo que parece ser mais importante que Deus mesmo. Na primeira leitura, Isaías restaura nossa confiança no Senhor, nosso auxiliador. Deus é aquele que nos ama e, por isso, salva-nos, justificando nossa vida. Na segunda leitura, Tiago restaura, na mesma perspectiva do Antigo Testamento, a confiança em Deus, por meio das obras de misericórdia. Não há, para a comunidade de Tiago, fé verdadeira que não seja testemunhada por obras. É preciso testemunhar que somos cristãos por atitudes que se assemelhem às de Cristo.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 50,5-9a)

O profeta Isaías, neste terceiro cântico do Servo sofredor, apresenta-nos o Ebed Adonai, o servo fiel de Deus, que se sente seduzido ao ouvir o apelo divino para cumprir sua vontade. O Servo, que parece possuir também uma identidade coletiva – dando-nos a entender que é o próprio povo de Israel –, dá suas costas para baterem e sua face às cusparadas (v. 5-6). É um retrato da humilhação que o povo sofreu no exílio, o mesmo povo que, na volta para Judá, se encanta com a mensagem de esperança a ele confiada pelo Senhor. Deus é seu auxiliador (v. 7), aquele que não deixa o ânimo de seu povo esmorecer. Deus está ao lado de seu povo: justifica-o e salva-o. Desse modo, quem fará objeção? O profeta pergunta: “Quem é meu adversário? Aproxime-se” (v. 8). O v. 9 confirma: “Sim, o Senhor é meu auxiliador, quem é que vai me condenar?”  Vale notar que o verbo hebraico que designa a ação de Deus é “auxiliar”, “ajudar” (ʻâzar [aw-zar’]), que designa aquilo que dá apoio, ajuda e auxílio. Assim, teologicamente, o profeta está propondo ter fé no Senhor que auxilia seu povo, que o acompanha e o apoia.

2. II leitura (Tg 2,14-18)

Na segunda leitura, Tiago questiona a comunidade de Jerusalém: “que adianta dizer que tem fé, quando não a põe em prática?” (v. 14). Para o apóstolo, não há como conceber uma fé sem prática, sem obras, pois fé e vida se relacionam intrinsecamente. A fé só é capaz de salvar quando corroborada pelas obras de misericórdia e caridade. Novamente, Tiago propõe uma casuística, como no domingo passado: “Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então alguém de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei-vos’, e: ‘Comei à vontade’, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adiantará isso?” (v. 15-16). Nesse caso, trata-se de alimentar o corpo primeiro, para que a alma seja capaz de buscar a Deus. As forças do corpo são fundamentais para garantir a força espiritual, pois a inanição do corpo leva à inanição espiritual. Então, conclui Tiago: se a fé não se traduzir por obras, está morta (v. 17). É preciso que nossa fé se deixe revelar por nossas obras (v. 18).

3. Evangelho (Mc 8,27-35)

A passagem deste domingo corresponde ao coração do Evangelho de Marcos. O texto se localiza como o divisor de águas de toda a obra marcana. Na primeira parte, encontramos nas narrativas, como pano de fundo, a pergunta: “Quem é Jesus?” A partir da passagem deste dia, temos uma resposta: Jesus é o Messias – mas não aos moldes da tradição de Israel, baseado na inspiração do rei Davi ou de seu sucessor Salomão, o messias davídico-salomônico, que vem governar com cetro de ferro. Jesus, com efeito, é Messias diferente, não triunfalista, que vai dar sua vida em resgate de muitos (Mc 10,45). O messianismo vivido e traduzido por ele, especialmente em Marcos, é o do serviço, da humildade e da doação de si, e não do triunfo e da glória mundanos. Por isso, Jesus ensina seus discípulos Tiago e João que o essencial não é estar à sua direita ou à sua esquerda, mas servir, doando a vida como ele (Mc 10,35-45).

Jesus está em Cesareia de Filipe, já próximo do fim de sua vida ministerial. Cesareia estava ao norte, e havia ali o santuário de Panias, lugar dedicado ao deus pagão Pan. É nessa região que Jesus pergunta aos seus discípulos quem ele é (v. 27). Jesus quer saber se sua identidade messiânica já está bem definida e estabelecida no horizonte hermenêutico (de interpretação) dos discípulos. Ele insiste em averiguar se os discípulos e também os pagãos já o conheciam, pois estes iam ao seu encontro (Mc 7,24-30). Com uma resposta mais evasiva e genérica, os discípulos não satisfazem à pergunta do Mestre (v. 28). Jesus, em seguida, continua: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, aquele que precede o grupo dos seguidores, responde: “Tu és o Messias!” (v. 29). Trata-se de uma profissão de fé: o Messias, o ungido, o esperado pelo povo. No v. 30, Jesus pede que mantenham reservado o segredo messiânico até a cruz, na qual ele se revelará plenamente. E segue dizendo que o Filho do Homem vai ser preso e torturado, morrer e ressuscitar. Jesus está dizendo que sofrerá pela mão dos anciãos, sumo sacerdotes e doutores da Lei, pois já sente a hostilidade que o cerca.

Pedro, porém, de sua parte, não compreende que Jesus vai morrer e quer ensinar-lhe que seu destino não pode ser a morte de cruz – proposta que corresponderia, em outras palavras, ao aniquilamento de todo o projeto salvífico de Deus (v. 32). Pedro não compreende o messianismo de Jesus e quer impor ao Mestre seu modo humano de pensar. Então, Jesus, no v. 33, diz a Pedro: “Vai para trás de mim, satanás”. Está exigindo que Pedro volte para o lugar de discípulo e não queira ser seu Mestre – “tu não pensas como Deus, mas como os homens” é sua justificativa.

Os versículos que se seguem, 34-35, derivam dessa chamada de atenção: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”. Trata-se de um conjunto simples de ensinamentos sobre como ser discípulo: tomar a cruz e perder a vida significa doá-la para o bem comum; quem assim o fizer ganhará a eternidade. Esse ensinamento de Jesus está baseado numa inversão escatológica, na qual só se ganha perdendo, só se ressuscita morrendo e só se vive a vida eterna dispondo-se a servir os irmãos e irmãs.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Levar a comunidade cristã a reconhecer em Deus um verdadeiro amigo, capaz de auxiliar nossa vida, seja qual for a circunstância em que vivamos. Propor que a comunidade seja testemunha verdadeira do Ressuscitado, vivendo gestos concretos de caridade: alimentando os famintos, acolhendo os pecadores, a fim de que testemunhemos a Deus por nossas obras. Perceber que Jesus é o Messias que veio para dar sua vida em resgate de muitos e, por isso, sentirmo-nos convidados a seguir seus passos, renunciando a nós mesmos e tomando nossa própria cruz.

Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*

*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected].