Roteiros homiléticos
UM DEUS DE PERDÃO E RECONCILIAÇÃO
I. INTRODUÇÃO GERAL
“Não quero a morte do pecador, e sim, que ele se converta e viva.” Essas palavras de Ezequiel (18,23) formam o pano de fundo (deixado na penumbra) da liturgia de hoje (cf. Lc 15,32). A leitura do livro do Êxodo mostra-nos um Deus que volta atrás do seu projeto de rejeitar Israel, e o evangelho apresenta as parábolas de Jesus a respeito de quem se perdeu e por Deus é reencontrado. Paulo entendia bem isso: na Primeira Carta a Timóteo descreve como, de perseguidor, ele foi, pela abundante graça de Deus, levado à vida em Cristo. Jesus veio para salvar os pecadores, e Paulo foi o principal deles. Com isso, tornou-se exemplo daquilo que ele mesmo pregou: a reconciliação.
1. I leitura (Ex 32,7-11.13-14)
O livro do Êxodo descreve como Moisés, logo depois da promulgação da Lei e da Aliança (Ex 10-24), permanece, durante quarenta dias, na montanha do Sinai, onde Deus lhe mostra o projeto do seu santuário e o encarrega de montá-lo no meio do povo (Ex 25-31). Ao descer da montanha, porém, encontra o povo em festa, adorando o bezerro de ouro, símbolo da fecundidade e objeto ritual das religiões dos povos pagãos. Essa festança é uma desistência da Aliança com o Deus único, que se manifestou no Sinai e elegeu Israel para ser seu povo-testemunha (Ex 32,1-6).
A reação de Deus é dura. Não quer mais esse povo (“teu povo”, diz ele a Moisés, 3,7). Moisés, porém, torna-se mediador e lembra a Deus suas promessas, como Abraão lhe lembrou sua justiça (cf. Gn 18,25). E Deus se deixa convencer: “O Senhor desistiu do mal com que havia ameaçado o seu povo” (Ex 32,14). Essa narração representa Deus de modo bastante humano (antropomorfismo): tanto a cólera de Deus, quanto seu arrependimento, são modos de significar que Deus não é indiferente, nem ao nosso pecado, nem à nossa prece. São maneiras humanas de falar de seu amor sem fim.
2. Evangelho (Lc 15,1-32)
O evangelho nos mostra Jesus em má companhia: “todos os publicanos e pecadores” (Lc 15,1). É um escândalo para os fariseus. Em duas parábolas menores, Jesus apresenta, então, uma imagem de Deus, descrevendo o pastor que só pensa na ovelha desgarrada, que está em perigo (15,3-7); ou a dona de casa, procurando adoidada uma moeda extraviada e ficando fora de si de alegria quando a reencontra (15,8-10). E depois conta a parábola do filho perdido e reencontrado – obra prima entre as parábolas de Jesus (15,11-32, na leitura longa, que evidentemente deve ser preferida à breve!).
Nessas parábolas, o pastor, a dona de casa, o pai de família parecem alegrar-se mais com o perdido que reencontraram do que com aquilo que não se perdeu: o rebanho a pastar, as moedas no pote, o filho que fica em casa trabalhando... Como entender isso? Será que a “opção preferencial” pelas ovelhas perdidas os leva a se esquecerem das que ficaram no rebanho? Pensar isso seria uma ideia bem mesquinha do carinho de Deus. Se o pai faz festa para o filho pródigo, é porque “aquele que estava morto voltou à vida”, e se não faz nada especial para o outro filho, que sempre está com ele, é porque o “estar sempre com ele” deve ser a mais profunda alegria (Lc 13,31-32). Olhando bem, porém, tem-se a impressão de que o filho mais velho optou por ficar com o pai apenas por comodismo (ou para ficar certo da herança). Se for assim, é ele que deve reconhecer seu afastamento interior e voltar ao pai; quem sabe se, então, o pai oferecerá um bom churrasco também para ele?
Reconhecemos no filho mais velho a figura do fariseu: tem as contas em dia, mas o coração longe de Deus. Não é tal a atitude dos que reclamam porque o padre anda nas favelas em busca de ovelhas perdidas em vez de rezar missas nos oratórios particulares ou ir a reuniões piedosas? Os que falam assim deveriam, felizes por ter Deus sempre diante dos olhos, ser solidários com a Igreja que busca os abandonados, em vez de se sentirem abandonados. Esqueceram quanta atenção receberam? Não perceberam que o próprio fato de se sentirem perto de Deus é sua felicidade? Em vez de criticar a prioridade dada aos excluídos, deveriam ser os primeiros a estimular o reencontro deles, tornando-se “agentes da reconciliação”.
Deus tem razão: quem vai bem, siga à frente (cf. Ap 22,11). Mas aquele que está errado é que necessita de atenção. O médico não vem para os sãos, mas para os doentes (cf. Mc 2,17). Já o pensamento “elitista” diz: ocupa-te com os “bons”, os que rendem. Não percas teu tempo com os que não valem nada, deixa-os se perderem. Deixa-os viver na falta de higiene e na subnutrição. Expulsa o povinho de sua área e o “primitivo” de suas terras...
O pensamento de Deus não é assim. Ele sabe que rejeitar um só homem seria a mesma coisa que rejeitar a todos, pois o princípio é o mesmo. Por isso, deseja ansiosamente a volta de qualquer um, até o mínimo, o mais rebaixado, aquele que conviveu com os porcos (que horror, para os judeus!). Pois esse perdidão é seu filho, mesmo se o próprio já não se acha digno de ser chamado assim. Deus não pode esquecer seu filho (Jr 31,20; Is 49,15). Nós gostamos de resolver os “casos difíceis” pela expulsão, a repressão (e vemos os frutos...). Deus opta pela reconciliação.
2. II leitura (1Tm 1,12-17)
Confirmando essa imagem de Deus, Paulo, na Primeira Carta a Timóteo, proclama que “encontrou misericórdia” (1Tm 1,13.16). Essa carta dirigida a Timóteo, que o acompanhou desde sua “segunda viagem” missionária (cf. At 16,1), é uma espécie de “testamento espiritual”. Inicia-se com o tema da vinda de Jesus ao mundo para salvar os pecadores. Paulo mesmo experimentou isso e, além disso, recebeu missão importante, pelo que exprime sua gratidão.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Opção preferencial pelos pecadores? Certo dia, eu tive de interromper uma palestra ministrada a um grupo de padres porque não aceitavam que os pecadores convertidos serão tão bem-vindos no céu quanto os que se comportaram bem. Será que Deus é generoso demais para com os malandros que se convertem?
São Paulo diz com clareza: “Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro” (2ª leitura). A 1ª leitura de hoje nos ensina que Deus é capaz de mudar de ideia: quando o pecador se arrepende, Deus o reconcilia consigo. O evangelho (texto longo) nos mostra Deus como um pastor procurando a ovelha perdida, ou como um pai que espera a volta de seu filho vagabundo.
Nós achamos estranho Deus dar mais atenção a uma ovelha desgarrada do que a noventa e nove que permanecem no rebanho. Não será melhor que uma se perca do que o rebanho todo? Pois bem, foi exatamente isso que disse o sumo sacerdote Caifás para justificar o assassinato de Jesus. “É melhor que um morra pelo povo todo” (Jo 11,49-51)! Deus, porém, em relação ao pecador, não segue o raciocínio de Caifás. É mais parecido com um motorista que não se preocupa com aquilo que funciona bem, mas fica atento àquilo que parece estar com defeito. Os pensamentos de Deus não ficam parados nos bons; ele está mais preocupado com os extraviados. Faz “opção preferencial” pelos que mais necessitam, os que estão em perigo e, sobretudo, os que já caíram – pois para Deus nenhum mortal está perdido definitivamente. Quem caiu tem de ser recuperado. Essa é a preocupação de Deus. Com os bons, preocupam-se os seus semelhantes; para Deus, todos importam. Por isso ele se preocupa com quem é abandonado por todos. Ele não descansa enquanto uma ovelha estiver fora do rebanho. Ele não quer a morte do pecador, mas sua volta e sua vida (Ez 33,11).
E nós? Nós devemos assumir os interesses de Deus. A Igreja deve voltar-se com preferência para os pecadores, orientá-los com todos os recursos do carinho pastoral e mostrar-lhes o incomparável coração de pai de Deus. Quem se considera justo, como o irmão do filho pródigo, não se deve queixar desse modo de agir de Deus. Pois ser justo é estar em harmonia com Deus, receber dele o bem e a felicidade, estar realizado. Por que então criticar a generosidade de Deus para com o pecador convertido? O “justo” alegre-se com o pecador, aquele que realmente necessitava atenção, o morto que voltou à vida! Mas talvez muitos se comportem como justos, não por amor e alegria em união de coração com Deus, mas por medo... e então, frustrados porque Deus é bom, resmungam, como Jonas quando a cidade de Nínive se converteu (Jn 4,1-11). “Não é a justos que vim chamar, mas a pecadores” (Mc 2,17).
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected].