Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 53-55

12 de outubro – SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA APARECIDA

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

Somos todos filhos de Maria

I. INTRODUÇÃO GERAL
  Hoje celebramos a solene festa de Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil, e também o dia das crianças. Suplicamos a Deus seus favores e copiosas bênçãos para nossas crianças, futuros homens e mulheres que continuarão neste mundo a missão de edificar o Reino de justiça, amor e paz. Na primeira leitura, do livro de Ester, somos exortados a nos transformarmos todos em intercessores de uns pelos outros. Nossa fé não deve ser um amuleto, mas um instrumento de comunhão e desejo de bem para os outros. Também isso pode ser evidenciado no Evangelho, que nos insere na cena de Caná, das bodas com o noivo Jesus. Ele vem nos conceder o vinho novo da alegria. Quem intercede por nós em nossas carências é sua Mãe, exemplo de intercessora fiel. A segunda leitura traz a imagem de uma mulher que se levanta para destruir o dragão, símbolo do mal. Essa mulher combate as forças perversas que desejam fazer a humanidade sucumbir e é símbolo da Igreja, a qual deve ser mãe e mestra a cuidar de nós e nos guiar.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
 
1. I leitura (Est 5,1b-2; 7,2b-7)
  Ester, importante personagem bíblica, no livro que carrega seu nome, surge para justificar a origem da importante festa judaica de Purim, ou festa da Sorte – “tirar a sorte”, em tradução do hebraico. O cenário desse livro situa-se no período persa (aproximadamente 350 a.C.). Contudo, muitos estudiosos situam a redação do livro no período conturbado de Antíoco IV Epífanes, por volta do ano 170 a.C. O livro de Ester narra a trajetória de uma personagem homônima, uma judia que é levada para o reino de Assuero. Ela tem um inimigo dentro do reino, chamado Amã, mas conta com a ajuda de seu primo Mardoqueu. O rei Assuero se encanta com Ester e a torna sua esposa. Ela, no momento certo – o qual se descortina na narrativa desta primeira leitura –, ao entrar nos aposentos do rei, faz-lhe um pedido: que ele conserve sua vida e a vida de seu povo (Est 7,3). A trama se desenrola sob o clima de traição dos servidores do rei, e este conta com a fidelidade de Ester e de seu primo Mardoqueu. Amã, que havia conseguido deturpar a ideia do rei sobre a influência dos judeus naquelas terras, faz que Assuero decrete o Purim, o dia da sorte, para ver o dia da matança dos israelitas. Ester pede que o rei volte atrás em tal decreto, mas ele não pode reeditá-lo. Contudo, ela convencerá o rei a escrever outro decreto, permitindo que seu povo lute duramente, na resistência ao exército persa e medo (da Média). Os judeus, antes do ataque medo-persa, exterminam inúmeros persas e não são mortos, segundo havia decretado anteriormente o rei Assuero. A trama narrada nesta solenidade começa com a afirmação de que Ester tocou na ponta do cetro real, símbolo de poder. Como Ester tem íntima proximidade com o poder do rei, ela o convence a não deixar o povo judeu perecer pela oposição de Amã e de todo o exército persa.
2. II leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a)
  O capítulo 12 do Apocalipse de São João pode ser considerado o coração desse livro. Nele, a humanidade e a desumanidade contracenam num combate apocalíptico. A mulher é símbolo do que humaniza, do que traz o Homem-Deus ao mundo, irradiando a todos o poder salvífico. O dragão, em contrapartida, representa tudo o que desumaniza e destrói a humanidade. Personificação do mal, ele é derrotado pela mulher, a qual simboliza também a Igreja, que dá à luz o Cristo no mundo. No céu aparece um grande sinal: uma mulher vestida de sol – a cor dourada simboliza Deus. Tem a lua debaixo dos pés, simbolizando o mistério daquilo que a ilumina, e, sobre a cabeça, doze estrelas que a coroam, símbolo dos apóstolos que adornam a Igreja, a esposa de Cristo. Ela dá à luz um filho – o próprio Cristo; o dragão, símbolo do mal, quer devorá-lo (v. 5). O filho é um varão com cetro de ferro, lembrando o Messias, o Senhor que vai governar o mundo. O dragão persegue essa mulher. Ele é símbolo do Império Romano, que, no final do século I, sob o domínio do imperador Domiciano, quer destruir a mulher, a Igreja. A mulher está sempre relacionada a Cristo (v. 15). Ela está ligada ao menino, o qual havia sido dado à luz. Toda a cena confere ao dragão um poder dominador e destrutivo, que, no entanto, não causa danos ou males à mulher. Dela a terra vem em socorro, abrindo a boca e engolindo o rio que o dragão havia vomitado (v. 16). Embora muitas vezes seduzida por aquilo que o dragão é capaz de lhe oferecer, nesse momento a terra se sente responsável por se solidarizar com a mulher, figura que denota fragilidade, mas também vitalidade, pois trouxe seu filho à vida. O filho que tal mulher apresenta ao mundo é Cristo Jesus, aquele e somente aquele que pode salvar a humanidade.  
3. Evangelho (Jo 2,1-11)
  As bodas de Caná, como é conhecido este Evangelho, correspondem à metáfora da fé inaugural dos discípulos em Jesus. Ela vai da falta ao excesso, do mistério desconhecido ao conhecido, daquilo que não tem sabor ao vinho melhor. As bodas de Caná simbolizam o cuidado da mãe, que se sensibiliza com seus filhos e filhas. Trata-se de uma metáfora de Maria, que diz: “Eles não têm mais vinho”, exprimindo sua preocupação com a falta de alegria – o significado do vinho. Essa narrativa se encontra na primeira seção do quarto Evangelho e traz o primeiro dos sete sinais narrados pelo grande teólogo João. Em Caná estavam, como convidados, Jesus, sua mãe e seus discípulos. A mãe de Jesus parece ter proximidade com os “noivos”, que muito pouco aparecem na trama. O noivo, teologicamente dizendo, é o Filho, Jesus. A noiva é a Igreja – e, portanto, também todos nós, que vamos, desde o início do Evangelho de João, buscar descobrir quem é Jesus, para com ele celebrarmos as núpcias, uma relação de proximidade, comunhão e perfeita alegria. Há um problema na festa: o vinho veio a faltar. O vinho, numa festa, simbolizava a alegria, a comunhão e a festividade de momentos únicos, como um casamento. Era o terceiro dia, a terça- feira, seguindo o costume judaico de se casar e de se dar em casamento. A mãe de Jesus dirige-se a seu Filho, dizendo-lhe: “Eles não têm mais vinho”. O vinho, como os quitutes do casamento, deveria ser calculado, a fim de que não viesse a faltar durante os sete dias de celebração. Jesus, por sua vez, diz: “Senhora, o que tenho a ver com isso? Minha hora ainda não chegou”. A hora é uma temática teológica importante para o quarto Evangelho, traduzindo o momento da doxa, a glória de Jesus, que será sua morte e ressurreição, momento verdadeiro de transformação. A mãe de Jesus pede aos serventes que façam o que seu Filho disser. Jesus, de sua parte, diz: “Enchei as talhas de água”. As talhas, como explica João possivelmente a leitores não judeus nem piedosos, serviam para as abluções – purificações feitas pelos judeus com o mikvah, uma jarra com duas alças usada para tirar a água de uma talha e lavar as mãos até ficarem limpas. Jesus, assim, ao transformar água em vinho, traz-nos um sinal revelador de exuberância e mistério. Seis talhas simbolizam os dias da criação, que se deixam transformar em dias de alegria, rumo ao sétimo dia, o dia da plenitude. Os convivas, os noivos e o mestre de cerimônia devem provar desse novo vinho, que os conduzirá à alegria perfeita. Por isso, o mestre de cerimônia prova do vinho – que é a perfeita comunhão com o noivo. Este – que, na verdade, é Jesus – ouve: “Todo mundo serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom, mas você guardou o vinho melhor até agora”. Esse vinho novo é o próprio Cristo, que, ao ser experimentado por nós, seus discípulos e discípulas, nos enche de fé. Isso é não apenas um milagre, que fala por si, mas é também um sinal, que indica as realidades que virão: a comunhão perfeita e a alegria, das quais Jesus nos convida a participar.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
  Somos chamados a compreender o significado libertador das atitudes das mulheres nas leituras. Ester (primeira leitura), a mulher, símbolo da Igreja (segunda leitura), e a mãe de Jesus (Evangelho) demonstram força e cuidado. Elas se preocupam com a vida da humanidade, com o bem-estar social e com a realização de cada ser humano. A força das mulheres na sociedade e na Igreja deve ser mais valorizada. Elas devem ter maior espaço, voz e direitos nas esferas de decisão, de organização e nas frentes de trabalho. A mulher exerce no mundo uma força criativa exuberante. Cabe-nos perceber que a humanidade pode conviver harmoniosamente se todos cooperarmos para assegurar justiça e direitos a cada pessoa.

Junior Vasconcelos do Amaral*

*Pe. Junior Vasconcelos do Amaral é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG. Doutor em Teologia
Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte), realizou parte de seu doutorado
na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Bélgica). É
professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e publicou vários artigos sobre o Evangelho de Marcos
e a paixão de Jesus em perspectiva narratológica. E-mail: [email protected]