A vida do meu povo, eis o que vos peço
I. Introdução geral
A liturgia de hoje enfatiza a luta travada entre o bem e o mal. Do lado do bem está a mulher, que, tanto na época de Ester quanto na de Maria, tinha pouco espaço de ação na sociedade. Parece uma luta perdida, as forças das trevas e da morte estão em proporções gigantescas. Mas a mulher sai vencedora porque luta pela vida, e o Deus da vida está com ela.
Outro aspecto considerado pela liturgia é a intercessão. A mulher recorre àquele que pode socorrer o povo em momentos de aflição. No Antigo Testamento, é a vida do povo de Israel que está ameaçada. No Evangelho, Maria pede o vinho da nova aliança, que dá a vida em plenitude. No Apocalipse, a humanidade ou nova Eva finalmente é libertada por Deus das insídias do antigo inimigo.
Esses aspectos estão presentes na devoção a Nossa Senhora Aparecida, como intercessora dos pequeninos que têm a vida e a dignidade ameaçadas. Maria é o grande sinal de que a vida sairá vitoriosa sobre qualquer tentativa de impedir seu avanço à plenitude de Cristo.
II. Comentário aos textos bíblicos
- Evangelho (Jo 2,1-11): Eles não têm vinho
O texto de hoje começa com a expressão “no terceiro dia”, cujo significado nos remete ao dia da intervenção divina a favor do justo. Nesse caso, o acontecimento divino é o “início dos sinais” – ou seja, a manifestação da salvação de Deus já começou. E Maria é aquela que intercede a Cristo. Ela pede o vinho da nova aliança, que significa ter vida em plenitude. E, para experimentarmos o vinho novo, é preciso fazer tudo o que Cristo nos disser (cf. v. 5). Maria é aquela que nos aponta o Filho. Seu desejo maternal para conosco é que sejamos verdadeiros seguidores de Jesus.
A certeza com que Maria se dirige a Jesus, apesar de não ser ainda a hora, reflete seu verdadeiro discipulado, porque ela acreditou muito antes de ver o sinal. Por isso, Maria é verdadeira intercessora da Igreja. Ela acredita e confia na ação de Deus em favor de seu povo. Ela pede o que é mais importante para nós, cristãos: a plenitude da vida. E, se seguirmos realmente sua indicação e fizermos tudo o que Cristo nos disser, jamais nos faltará o “vinho bom”, pois o teremos em abundância. Se aprendermos isso, certamente viveremos com maior profundidade nossa devoção a Nossa Senhora Aparecida.
- I leitura (Est 5,1b-2; 7,2b-3): Tudo o que pedires eu te darei
O versículo 1 do capítulo 5 do livro de Ester começa com a expressão “no terceiro dia” (o texto da liturgia suprimiu essa referência). Trata-se do terceiro dia do jejum, mas a expressão significa muito mais que isso. Os sábios judeus, ao interpretarem Oseias 6,2, afirmam que a expressão “terceiro dia” ou “três dias” significa o tempo da salvação. Até dois dias, o Senhor poderá deixar o justo sofrer, mas no terceiro o salvará.
Ester corria o risco de ser executada, mesmo sendo rainha, pois a lei daquele país (a Pérsia) proibia a qualquer um apresentar-se perante o rei sem que por ele tivesse sido chamado. Mas Ester arriscou a própria vida para interceder pela vida do povo. Sua vida foi preservada porque o rei estendeu o cetro para que Ester o tocasse e, segundo a lei, fosse poupada da morte.
Percebendo ter ganhado o favor do rei, Ester faz o pedido: “concede-me a vida, pela qual suplico, e a vida do meu povo, pelo qual te peço” (7,3). O rei havia oferecido a Ester até metade do reino, mas ela pediu um bem mais precioso, a vida para si mesma e para seu povo.
- II leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a): Um grande sinal no céu
No texto do Apocalipse, aparece a mulher que luta com o dragão, representante das forças das trevas e da morte. É uma mulher coroada, mas sua realeza provém exclusivamente da realeza do Filho, que “governa todas as nações com cetro de ferro” (versículo 5a).
O Filho é “levado para junto de Deus e do seu trono” (v. 5b), alusão à ascensão de Cristo ao céu. Isso significa que o Filho é vencedor contra as forças representadas pelo dragão. E, para usufruir dessa vitória, é necessário que cada cristão sustente a luta. No combate contra as forças do mal, o ser humano é sustentado pela fé e pela graça. Sustenta-o também a materna proteção de Maria, que não cessa de interceder a seu Filho para que a humanidade alcance a vida em plenitude.
III. Pistas para reflexão
A liturgia de hoje invoca Maria sob o título de Aparecida. Virgem negra, retirada das águas pelas redes de pescadores humildes. A homilia, mais que exaltar a realeza de Maria, deve enfatizar sua missão entre nós: estar no meio do povo, das pessoas simples, dos que não têm a vida e a dignidade defendidas. Semelhante à nossa gente pobre, Maria é mulher do povo. É bom convidar a assembleia para refletir sobre essa mulher, cuja abertura para Deus e para o outro se nos apresenta como modelo dinâmico de quem quer amar, servir e encarnar Cristo Palavra.
A imagem aparecida nas águas diz muita coisa. Em Maria, todo sofredor se sente acolhido e restaurado, apesar da dor, e reanimado na esperança. Maria é sinal de que Deus é fiel e jamais abandona seus filhos. Maria é sinal de que o amor de Deus é muito maior que o amor de mãe (Is 48,15).
Aíla Luzia Pinheiro Andrade
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]