Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2023 - ano 64 - número 350 - pp.: 43-46

12 de março – 3º domingo da Quaresma

Por Celso Loraschi*

Adoração em espírito e verdade

I. INTRODUÇÃO GERAL

Deus é a fonte de todos os bens. Acompanha com carinho seus filhos e filhas na caminhada desta vida. Fornece-lhes alimento e força a fim de que seu projeto de vida digna para todos se realize no mundo. É preciso caminhar com a certeza de conquistar a terra prometida por Deus, onde a justiça e a paz se abraçam. O povo de Deus não pode cair na tentação de voltar atrás e acomodar-se a sistemas que exploram e matam. Deus caminha com seu povo e o liberta das opressões. Os conflitos e as dificuldades fazem parte do processo de construção de um mundo novo (I leitura). Jesus é “Deus-conosco”, a água viva que sacia nossa sede de plenitude. Ele nos ensina o caminho de superação dos legalismos e nacionalismos que dificultam a aproximação e o diálogo entre pessoas e povos. Proporciona-nos a possibilidade de reconhecer o rosto de Deus nas tradições e culturas diversas e, assim, adorá-lo “em espírito e verdade” (Evangelho). São Paulo, na carta aos Romanos, demonstra que a fé em Deus torna a pessoa justa. Isso acontece por meio de Jesus Cristo, que entregou sua vida por amor a todos nós, pecadores (II leitura). Por ele, caminhamos na esperança que não decepciona, pois ele nos salvou gratuitamente.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ex 17,3-7)

O povo de Israel caminha pelo deserto, em processo de libertação da escravidão do Egito. O tempo passa, as dificuldades aumentam. O entusiasmo dos primeiros momentos do êxodo dá lugar a reclamações. Aparece a tentação do desânimo e do desejo de voltar ao regime anterior. De fato, a água é elemento essencial para a sobrevivência do povo. Como não reclamar numa situação dessas?

O povo põe-se na dependência da liderança. Joga as dificuldades aos pés de Moisés e o condena por tirá-los do Egito. Moisés poderia argumentar que ninguém os obrigou a sair de lá. Porém não os condena e dirige-se a Deus para expor-lhe o problema que os aflige. Deus sempre ouve a oração, quando acompanhada do empenho pelo bem comum. Junto com as demais lideranças (os anciãos), Moisés testemunha a ação gratuita de Deus em favor dos que murmuram. Estes estão em processo de aprendizagem. Ao chegarem à Terra Prometida, organizados em tribos, saberão instituir uma sociedade nova e administrá-la de forma participativa e corresponsável.

A vida itinerante caracteriza-se por inseguranças, perigos, cansaços... A formação do povo de Israel deu-se num processo de caminhada, de tensões entre grupos e de descoberta de princípios orientadores para uma convivência pacífica. A utopia da Terra Prometida conservou-lhe a resistência e o ânimo para caminhar. Isso seria impossível sem a fé na Providência divina.

A rocha representa a impossibilidade radical do ser humano de encontrar, por si só, saídas para suas crises e problemas de toda ordem. É a ilusão de achar que tudo se pode solucionar com os recursos inventados pela lógica humana. Com efeito, somente a fé em Deus possibilita as verdadeiras soluções, que garantem vida a todos os povos. Somente a certeza de sua presença viva faz que a história humana se torne história de libertação. Deus é fonte de vida. É generosamente providente: oferece gratuitamente todos os recursos necessários à vida de seus filhos e filhas.

2. Evangelho (Jo 4,5-42)

Como sabemos, os samaritanos eram considerados inimigos históricos dos judeus. Eram um povo de raça mista e possuíam outra concepção religiosa. Para um judeu, ser chamado de “samaritano” era enorme ofensa. A origem dessa hostilidade remonta ao tempo da invasão assíria no Reino do Norte, em 722 a.C., quando a cidade de Samaria foi destruída e boa parte da população deportada. A região foi povoada por colonos assírios, que se casaram com hebreus. Mais tarde, no período pós-exílico, o sistema religioso do templo de Jerusalém excluiu os samaritanos.

Jesus passa pela região de Samaria, na cidade de Sicar (antiga Siquém), onde fora enterrado Josué, o sucessor de Moisés. Jesus está fatigado e senta-se à beira do poço que havia sido do patriarca Jacó. Na tradição judaica, o poço representa a garantia da água oferecida por Deus ao povo, como a água jorrada da rocha durante o êxodo. O poço é figura do culto e da Lei judaica, cuja autoria era atribuída a Moisés. Da observância da Lei e do culto brotava a água viva da Sabedoria. A ideia dominante era que o poço da água viva era o próprio templo de Jerusalém.

Jesus está em caminhada. Chega ao local do poço à “sexta hora”, o que corresponde ao meio-dia. É a mesma hora em que vai ser condenado à morte (Jo 19,14). É o final de sua caminhada. Com sua morte, Jesus se torna o Caminho para todos os que o seguem. Ao sentar-se no poço, está, na verdade, revelando que ele mesmo é o poço da água viva. Toma o lugar da Lei, do culto, do templo... João vai dizer que Jesus, ao morrer, será traspassado por uma lança e do seu lado sairão sangue e água (Jo 19,34).

A mulher representa o povo samaritano com sua tradição religiosa. Seus “cinco maridos” são uma referência aos cinco deuses cultuados pelos antepassados (2Rs 17,29-32). Jesus oferece à mulher o verdadeiro culto, que é ele próprio. De fato, quem toma a iniciativa do diálogo é o próprio Jesus, que pede água. Corresponde à atitude do próprio Deus da Aliança, que sempre busca seu povo, apesar de suas infidelidades. A samaritana (o povo impuro e marginalizado), não os líderes religiosos de Jerusalém, reconhece Jesus como o Messias, fonte de onde jorra água para a vida eterna.

A grande novidade de Jesus é a proposta de total mudança de mentalidade com relação a Deus: ele o chama de Pai. E, como Pai de todos, não necessita de um lugar determinado para ser cultuado: nem em Samaria, nem em Jerusalém. A mudança de mentalidade também significa entrar numa nova relação com o próximo, a qual derrubará as barreiras entre judeus e samaritanos. Ambos os povos poderão adorar a Deus já não com rituais fixados pela rigidez legalista, mas “em espírito e verdade”.

Sendo a fonte de todo amor e de toda vida, Pai de todos os povos, Deus deseja ser adorado de modo verdadeiro, em todos os lugares. Ele busca pessoas que o adorem com lealdade. Jesus, o Filho, viveu o amor desta maneira: na fidelidade ao Pai, deixou-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Do coração de todos os que seguem Jesus brotam rios de água viva, pois saberão amar como ele amou.

3. II leitura (Rm 5,1-2.5-8)

Paulo, nos capítulos anteriores ao texto da liturgia deste domingo, procurou convencer os judeus de que a justificação se dá pela fé, sem a necessidade das obras da Lei. Percebe-se que, mesmo no interior da comunidade cristã, há pessoas de origem judaica apegadas à tradição legalista e com dificuldades de aceitar a doutrina da graça divina.

A partir do capítulo 5, vemos Paulo debruçado sobre os traços que caracterizam uma pessoa que, pela fé em Jesus Cristo salvador, passou a ser nova criatura. Ele parte da certeza de que fomos justificados pela fé, de forma definitiva. Aceitar essa verdade é entrar numa nova condição humana, conferida pela graça de Deus. O primeiro efeito desta é a paz com Deus. Podemos viver agora permanentemente sob abundantes bênçãos divinas. É um estado de bem-estar e alegria. A graça nos confere inteireza pessoal e capacidade de relacionamento fraterno com o próximo.

A paz que provém da fé e é graça de Deus, concedida plenamente em Jesus Cristo, também nos liberta do medo da condenação. Aproxima-nos de Deus de tal modo, que podemos amá-lo e glorificá-lo em tudo o que somos e fazemos. Portanto, o estado de graça nos conserva na harmonia com nós mesmos, com os outros, com a natureza e com Deus. O ser humano, assim, está revestido de imortalidade já nesta vida mortal.

O pecado já não tem poder sobre a graça. A inimizade com Deus foi definitivamente derrubada pela reconciliação que Jesus, mediante sua morte, trouxe à humanidade pecadora. Essa regeneração do gênero humano o torna capaz de viver na vontade divina, na certeza da realização plena. Vivemos, então, na esperança que não decepciona. Ela firma nossos passos e não nos deixa na confusão, nem na dispersão, nem na timidez, nem no desapontamento. Ela se alicerça na certeza do amor sem limites de Deus, derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, e não por meritocracia. Tanto judeus como gentios recebem o dom da reconciliação e da paz. O amor de Deus derramado sobre todos os povos é força ativa, capaz de mudar o mundo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

– Deus liberta o povo da escravidão do Egito. Caminha com ele pelo deserto. Mesmo quando o povo se queixa e duvida da presença de Deus, este não o condena nem o abandona. Ouve a oração de Moisés e das outras lideranças e faz nascer água da rocha. Sacia a sede do povo para que este não desanime na caminhada para a Terra Prometida. Essa caminhada de quarenta anos é lembrada pela Igreja, de modo especial, neste tempo da Quaresma. É preciso caminhar com perseverança, confiando na presença de Deus. Ele ouve nossas preces, perdoa-nos e nos acompanha na caminhada de nossa vida. É tempo de superar os queixumes e arregaçar as mangas para que a terra que Deus nos deu seja realmente a casa de todos, conforme nos interpela a Campanha da Fraternidade, sem que ninguém passe fome ou viva situações de insegurança alimentar.

– Jesus tomou a iniciativa de ir ao encontro dos samaritanos, inimigos dos judeus. Estabelece um diálogo com a mulher, representante do povo da região de Samaria. Do diálogo nasce a mútua compreensão. Por meio do diálogo, Jesus se revela: ele é a fonte de água viva. Para manter a intimidade com Jesus, bebemos de sua Palavra e nos alimentamos de seu corpo na Eucaristia. Além de nos saciar, tornamo-nos fonte de água viva. Como fez a samaritana, tornamo-nos discípulos missionários, portadores da Boa Notícia da salvação de Deus para todos.

– Uma vez reconciliados com Deus, é impossível não irradiar seu amor. Assim fez São Paulo, a ponto de entregar-se totalmente como ministro da reconciliação. Muitos caminhos que o mundo moderno nos oferece dificultam a compreensão e a acolhida da graça divina e a paz entre pessoas e povos. Vivemos dispersos, divididos, confusos, inseguros, apegados aos bens materiais, à fama, ao que nos satisfaz momentaneamente... Somente a paz que vem do amor de Deus é capaz de construir a família humana e nos realizar verdadeiramente. Para isso, precisamos resgatar o valor do silêncio, da meditação da Palavra de Deus, da oração pessoal, familiar e comunitária, da contemplação, do cuidado e da promoção dos direitos comuns.

Celso Loraschi*

*é mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos.