Roteiros homiléticos

12 de março – 2º Domingo da Quaresma

Por Celso Loraschi

Transfiguração: a vida que triunfa sobre a morte

I. Introdução geral

Seguir a Deus é assumir atitude de permanente êxodo. Abraão, nosso pai na fé, foi chamado por Deus a pôr-se a caminho para a terra prometida. Foi provocado a deixar as seguranças para entrar na dinâmica do plano de amor de Deus, visando uma “terra sem males”, uma sociedade de justiça e paz. Obedecendo ao chamado divino, Abraão e sua família tornaram-se portadores da bênção divina para todo o povo (I leitura). O cristão, continuamente, corre o risco de se equivocar a respeito de Jesus e de sua proposta. Como Pedro no episódio da transfiguração, tende a construir o “ninho” de proteção e de bem-estar, negligenciando as implicâncias do seguimento de Jesus no caminho da cruz e da morte (evangelho). É bom prestar atenção nos conselhos de Paulo a Timóteo: são expressões de amor e de solidariedade a quem passa por situações conflituosas. Timóteo é encorajado a persistir no testemunho de Jesus Cristo, participando de seus sofrimentos pela causa do evangelho (II leitura). Neste tempo propício de penitência e conversão, somos convidados a ouvir o chamado que Deus nos faz para ser santos; é tempo propício para aprofundar a vocação que dele recebemos e discernir o que é essencial do que é ilusório.

II. Comentário dos textos bíblicos

  1. I leitura (Gn 12,1-4a): A fé que se transforma em caminho

A Bíblia nos apresenta a figura de Abraão como o pai do povo de Israel. Sua fé e confiança em Deus tornam-se a principal herança para as futuras gerações. Abraão é representativo de grupos seminômades que, por natureza, não se submetem à dominação do poder político, como o exercido naquela época (em torno de 1500 a.C.) pelas cidades-estado. São caminhantes, sempre em busca de terra fértil que proporcione pastagens para a sobrevivência dos seus rebanhos e, consequentemente, de suas famílias e clãs.

A experiência que Abraão possui de Deus está intimamente ligada ao estilo de vida dos pastores. A garantia da terra e o senso de liberdade são fundamentais. A presença de Deus se dá onde se encontram as famílias. Ele caminha com os pastores, conduz os seus passos e lhes dá a terra de que necessitam. A terra é promessa e dom de Deus, porém é necessário que Abraão esteja disposto a romper com as seguranças que impedem a caminhada na direção que Deus lhe aponta. Confiar no Deus da promessa é ter a certeza de um mundo sem exploração e sem fome. Essa promessa é motivadora para os movimentos populares, especialmente em época de opressão, como aquela exercida pelo Egito e, posteriormente, pela monarquia israelita. Abraão torna-se a “memória perigosa” que desacomoda os oprimidos, proporcionando-lhes inspiração para a resistência e a mobilização em vista de uma nova sociedade.

  1. II leitura (2Tm 1,8b-10): A santa vocação

A segunda carta a Timóteo faz parte das tradicionalmente conhecidas “cartas pastorais” (junto com 1Tm e Tt). São dirigidas aos animadores de Igrejas cristãs, num tom pessoal. Os autores atribuem essas cartas a Paulo. Foram escritas algum tempo depois de sua morte, no intuito de iluminar e fortalecer a missão desses “pastores” junto às comunidades.

Timóteo havia sido um companheiro de Paulo. Participou da segunda e terceira viagens missionárias. Era uma pessoa de confiança e dedicado à evangelização. Paulo podia contar com ele para enviá-lo às comunidades a fim de levar instruções e animar a fé dos cristãos. Após a morte de Paulo, continuou a missão de ministro da Palavra, revelando-se importante liderança. A tradição o venera como bispo de Éfeso. Etimologicamente, Timóteo significa “aquele que honra a Deus”.

O texto da leitura de hoje indica uma situa­ção difícil pela qual está passando Timóteo. O intuito é confortá-lo e animá-lo à perseverança. Timóteo é convidado a participar solidariamente dos sofrimentos pelos quais Paulo também passou por causa do evangelho. Quem assumiu a missão de servir à Palavra não pode sucumbir às dificuldades nem manifestar-se timidamente. A tribulação é inerente ao anúncio do evangelho quando feito com autenticidade. Como aconteceu com Jesus, também acontece com os seus discípulos. Nessa mesma carta, encontramos o alerta: “Todos os que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus serão perseguidos” (3,12).

A confiança plena na graça de Deus deve ser característica da pessoa que evangeliza. Deus nos salvou gratuitamente em Jesus Cristo. Ele nos chama com uma santa vocação para servi-lo e amá-lo. A santidade nos faz andar cotidianamente na intimidade divina, como o fez Jesus. A pessoa santa é portadora da graça e irradiadora da boa notícia de Jesus, o Salvador, que venceu a morte e fez brilhar a vida. A missão de Timóteo e de toda pessoa seguidora de Jesus é anunciar, de modo permanente e corajoso, esse projeto salvador de Deus, concebido desde toda a eternidade e revelado plenamente em Jesus Cristo.

  1. Evangelho (Mt 17,1-9): A transfiguração de Jesus

A narrativa da transfiguração de Jesus está permeada de elementos simbólicos teologicamente muito significativos. Vemos Jesus subindo à montanha com Pedro, Tiago e João. Todos participam de uma experiência mística inédita. Moisés e Elias também se fazem presentes e dialogam com Jesus.

Lembremos, especialmente, que a comunidade de Mateus é formada de judeus que vivem a fé cristã. Portanto, é importante que a tradição judaica seja respeitada e aprofundada agora em novo contexto. Assim, a montanha tem um significado especial de manifestação de Deus. Basta lembrar o dom da Lei de Deus a Moisés no monte Sinai. Assim também a expressão “seis dias depois”, bem como a presença da nuvem. Lemos em Ex 24,16: “Quando Moisés subiu ao monte, a nuvem cobriu o monte. A glória do Senhor pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu durante seis dias”. Como vemos, há íntima relação entre a transfiguração de Jesus e a experiência religiosa de Moisés. É um momento extraordinário de manifestação divina. Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas, caminho que aponta para o Messias. Jesus é o cumprimento da promessa do Pai revelada na Sagrada Escritura.

Podemos considerar como centro dessa narrativa a declaração de Deus: “Este é meu Filho amado, nele está meu pleno agrado: escutai-o!”. Essa voz que vem do céu declarando a filiação divina de Jesus também se fez ouvir no seu batismo (Mt 3,17). É, sem dúvida, a confissão de fé da comunidade cristã, representada nesse momento por Pedro, Tiago e João. De fato, os discípulos, no barco, reconhecem Jesus caminhando sobre as águas e salvando Pedro de sua fraqueza de fé: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (14,33). Na ocasião em que Jesus pergunta o que dizem dele, Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (16,16). É no momento da morte de Jesus que o centurião e os guardas declaram: “De fato, esse era Filho de Deus” (27,54). O anúncio da verdade sobre Jesus não foi feito aos que detinham o poder político ou religioso. Também não foi feito em algum centro ou instituição importante. Dirigiu-se, sim, a um grupo de gente simples, num lugar social periférico.

O imperativo “escutai-o” enfatiza a perfeita relação entre a profissão de fé em Jesus como “Filho de Deus” e a atenção cuidadosa ao seu ensinamento. O elemento fundamental do ensino de Jesus é que ele terá de passar pelo sofrimento e pela morte, na perspectiva do “Servo sofredor” anunciado pelo profeta Isaías (cf. 42,1-9). Não é por acaso que Mateus insere o relato da transfiguração logo após o primeiro anúncio de sua paixão e morte e o convite ao discipulado: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (16,24). Portanto, os discípulos deverão compreender que o caminho para o seguimento de Jesus, Servo de Deus, implica “descer da montanha” e assumir as consequências, conforme o testemunho do Mestre. Porém esse não é um caminho derrotista. A vida triunfa sobre a morte. A glória de Deus se manifestará plenamente na ressurreição. A transfiguração é um sinal antecipado da realidade da Páscoa.

III. Pistas para reflexão

Pôr-se à disposição de Deus. As leituras deste domingo nos apontam a dinâmica do projeto libertador de Deus: deixar as seguranças que nos engessam para nos pormos a caminho da terra que Deus deseja para a humanidade. A exemplo de Abraão e sua família, nós também podemos assumir a fé e a total confiança em Deus, que sustenta e guia os nossos passos na verdade, na justiça e no amor. Essa é a melhor herança que podemos deixar às futuras gerações.

— Assumir a missão de evangelizar. Timóteo, “aquele que honra a Deus”, assumiu a missão de anunciar o evangelho de forma corajosa e perseverante mesmo nas situações difíceis; também nós podemos ser anunciadores da Boa Notícia de Jesus em nossas famílias, na comunidade e na sociedade. Isso acontece pela coerência entre fé e vida, pelo testemunho de doação alegre, também pela constância no testemunho de diálogo e de fraternidade. Assim, estaremos respondendo à “santa vocação” a que fomos chamados pela bondade de Deus.

— A vida é um permanente caminhar. Jesus foi a grande manifestação de Deus para a humanidade. Pedro, Tiago e João foram agraciados com uma experiência maravilhosa, participando da transfiguração de Jesus. Também em nossa vida, Deus nos concede momentos de muita luz, consolo e força. Tendemos, porém, a buscar e a nos acomodar ao que nos garante bem-estar, prazeres, sensações agradáveis... Não podemos esquecer que seguir Jesus implica “descer da montanha” do egoísmo e da acomodação. Seguir Jesus é entregar-se pela causa da vida digna sem exclusão, alicerçada na justiça e na igualdade.

 

Celso Loraschi

*Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc). E-mail: [email protected]