Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 56-59
11º Domingo do Tempo Comum – 14 de junho
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Da compaixão nasce a missão
I. Introdução geral
Na retomada do Tempo Comum, a liturgia evidencia a proximidade e o cuidado de Deus com a humanidade. É um Deus que ama e sente compaixão, interessado em estar presente no mundo, criando relações e preocupando-se com a situação do povo, a ponto de libertá-lo de todo tipo de opressão. Inicialmente, esse cuidado de Deus se evidencia pela escolha de um povo específico para ser sinal da sua presença no mundo por meio de uma aliança (I leitura). Ele, porém, tem um plano de salvação universal que se realiza por etapas; o seu amor é gratuito e universal (II leitura). Por isso, por intermédio do Filho, ele faz de tudo para recuperar e salvar o que parecia perdido, enviando colaboradores como operários de uma messe (evangelho).
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Ex 19,2-6a
Tirada do livro do Êxodo, a primeira leitura relata o episódio que pode ser chamado de “o nascimento do povo de Deus”, quando os israelitas, recém-libertados da escravidão do Egito, acamparam ao redor do Sinai e o Senhor estabeleceu com eles uma aliança. A propósito, esse texto é chamado também de “prólogo da aliança”. Tinham se passado três meses da saída do Egito, sob a liderança e mediação de Moisés, com quem Deus se comunicava abertamente. É nesse episódio que Deus propõe a aliança com Israel.
A comunicação estabelecida com Moisés já é um sinal muito claro da abertura de Deus e do amor que ele tem à humanidade, representada inicialmente pelo povo de Israel (cf. v. 3). É de Deus que parte a iniciativa, sempre. Com efeito, a própria libertação da escravidão não foi o povo que pediu, mas Deus que viu a situação e teve compaixão (cf. Ex 3,7-17). É ele que quer ser família com o povo, comunicando os seus propósitos. A função de Moisés é comunicar ao povo o que Deus propõe. Antes de tudo, é necessário fazer memória do que já foi feito. O povo não pode esquecer a sua história, pois é nela que Deus se manifesta com seu poder e seu amor, representados no texto pela imagem da águia (cf. v. 4). A águia era reconhecida pela força que possuía e pela proteção incondicional aos seus filhotes, levando-os de um lugar para outro conforme as circunstâncias.
Após a memória do que já fez no passado, Deus propõe continuar fazendo grandes coisas por Israel também no futuro, desde que este guarde a aliança, ou seja, desde que Israel lhe seja fiel e observe o que será proposto como exigências da aliança, cuja síntese é expressa pelo decálogo (cf. Ex 20,1-17). Afinal, toda a terra pertence a Deus; logo, ele poderia escolher qualquer outro povo para ser a sua porção predileta. Escolheu, porém, Israel e é justo que haja correspondência. Não é uma imposição de Deus, mas uma proposta: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança” (v. 5). Israel pode acolher ou rejeitar essa proposta.
Acolhendo o que Deus propõe, Israel conta com a certeza de um privilégio e recebe uma missão: será “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (v. 6a), o que significa um povo voltado totalmente para Deus, alinhado à sua vontade, a ponto de ser a sua própria presença no mundo. Isso não deixa de ser um privilégio, mas é, acima de tudo, uma responsabilidade e uma missão especial: o povo eleito, constituído sacerdote e santo, deve ser sinal da santidade de Deus no mundo, testemunhando com a vida os propósitos de um Deus libertador que quer tornar-se próximo de todos e não tolera injustiças.
2. II leitura: Rm 5,6-11
A carta aos Romanos, da qual é tirada a segunda leitura, é a mais longa das cartas de Paulo e também considerada a mais rica, teologicamente falando. Foi escrita provavelmente em Corinto, entre os anos 57 e 58. O trecho lido nesta liturgia é verdadeiro alento à esperança, pois revela a gratuidade do amor de Deus, que justifica a todos indistintamente. Por sinal, a justificação é um dos principais temas de toda a carta.
Na perspectiva de Paulo, o amor de Deus é tão grande, que não pode ser comparado com nenhuma experiência humana de amor. É próprio do ser humano amar em perspectiva retributiva, observando os méritos do outro (cf. v. 7). Deus, no entanto, ama imensamente e de modo gratuito, indistinto e desinteressado; a maior prova disso é a doação total do seu Filho, Jesus Cristo (cf. vv. 6.8), morto por todos os pecadores. Da gratuidade do amor de Deus, portanto, vem a nossa reconciliação com ele e, consequentemente, a certeza da salvação (cf. vv. 9.10).
Por isso, somos plenos de esperança e podemos nos gloriar em Deus, porque, sem mérito algum, fomos reconciliados com ele graças ao seu amor gratuito, derramado abundantemente sobre toda a humanidade por meio de seu Filho, Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
3. Evangelho: Mt 9,36-10,8
O evangelho deste dia é um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. A alternância entre narrativa e discurso é uma das principais características literárias do Evangelho de Mateus. O texto compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao “discurso da montanha” e a introdução do novo discurso, chamado de “discurso missionário”. Por sinal, os discursos de Jesus partem sempre de situações concretas. Ao ver uma realidade, ele dá opiniões e toma iniciativas transformadoras. O evangelho desta liturgia retrata bem isso.
O evangelista começa dizendo que Jesus se compadeceu das multidões, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor (cf. 9,36), ou seja, abandonadas. Temos aí a constatação de uma realidade que gera em Jesus um sentimento e uma tomada de atitude. Na verdade, a compaixão não é apenas um sentimento: seu significado literal é “contorcer-se nas entranhas”, sendo esta o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforme a mentalidade hebraica; mais profundo até do que o coração. É a expressão máxima da misericórdia de Deus, o que o leva, consequentemente, a uma atitude transformadora. A situação de abandono das multidões denuncia a corrupção e a hipocrisia dos líderes, principalmente dos religiosos, como já tinha denunciado o profeta Ezequiel (cf. Ez 34); pastor é a imagem clássica do dirigente em Israel, e ovelha, a imagem do povo, recorda a necessidade de proteção. Quase sempre o motivo do sofrimento do povo é a corrupção dos dirigentes; isso vale para todas as épocas.
A primeira atitude de Jesus, motivado pela compaixão, é reforçar a confiança no Pai, empregando uma imagem também bastante conhecida na época: a messe (cf. 9,37-38), o que indica a urgência da missão. A messe é a lavoura pronta para ser colhida e pode perder-se, caso se atrase a colheita. A oração, que significa a intimidade com o Pai, é necessidade vital para a comunidade, sobretudo quando as situações são difíceis. Diante da situação deplorável em que se encontrava o povo, Jesus toma uma atitude libertadora, estendendo aos discípulos as mesmas prerrogativas que recebeu do Pai (cf. 10,1). Não se trata de poderes extraordinários para operar milagres. Dar poder ou autoridade aos discípulos significa autorizá-los a fazer o mesmo que Jesus fazia. “Expulsar os espíritos maus, curar doença e enfermidade” é apenas uma figura de linguagem que evoca a responsabilidade da comunidade cristã: restituir a vida e a dignidade às pessoas espoliadas pelo sistema dominante político e religioso, principalmente.
Os doze, cujos nomes o evangelista cita um por um (cf. 10,2-4), são enviados com algumas recomendações, como a prioridade “às ovelhas perdidas da casa de Israel” (10,5-6). Essa prioridade, aqui, não significa um privilégio, mas uma necessidade. “As nações pagãs e as cidades dos samaritanos” (10,5) não são excluídas nem colocadas em segundo plano por Jesus. De todas as formas de dominação, a pior é a religiosa, e é isso o que justifica a prioridade de Israel no anúncio do Reino por Jesus e seus discípulos; foram os seus dirigentes que se tornaram maus pastores, explorando o povo em nome de Deus. Se o povo estava abandonado, a culpa principal era da religião, devido aos abusos e omissões daqueles que deveriam agir como pastores.
O conteúdo do anúncio é apenas o advento do “Reino dos céus” (10,7). De fato, o Reino dos céus se manifesta como vida em plenitude, com justiça, solidariedade, amor e inclusão. Esse Reino não pode ser imaginado como um evento futuro, porque é no presente que as multidões são mutiladas e maltratadas, exploradas e privadas de vida e dignidade. Os discípulos são enviados na gratuidade e no amor (cf. 10,8) para recuperar a vida ameaçada e explorada. Por isso, devem ser promotores da libertação, como pede Jesus. Não cumprindo gestos mágicos ou fantasiosos, mas sendo sinais de vida, com atuação profética e cristã.
III. Pistas para reflexão
O amor gratuito de Deus pela humanidade é o tema que une as três leituras. O envio dos discípulos por Jesus foi motivado pela sua compaixão pelo povo abandonado. Ilustrar a reflexão com questões concretas: como a comunidade ou paróquia lida com as pessoas abandonadas ao seu redor? Como a missão de Jesus está sendo continuada nos dias atuais?
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).