Roteiros homiléticos

10 de agosto – 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Johan Konings, sj

O DEUS DA BRISA MANSA

I. INTRODUÇÃO GERAL

As leituras de hoje falam de tempestade e escuridão. Elias, desanimado, procura Deus no monte no qual este se havia manifestado a Moisés. Deus lhe promete uma “entrevista”. Elias o espera, no vento, no terremoto, no fogo, mas é na brisa mansa que Deus lhe fala... No evangelho, lemos que, depois da multiplicação dos pães, Jesus manda os discípulos atravessar o mar sozinhos. Ele mesmo fica na montanha, para orar. No meio da noite, enquanto os discípulos lutam contra a tempestade, ele vai até eles, andando sobre o mar. Incute-lhes confiança: “Não tenhais medo”. Pedro se entusiasma, quer ir até ele sobre as ondas, mas duvida... Quais tempestades angustiam e enfraquecem nossa fé hoje? A Igreja passa por momentos difíceis. É tempo de recordar as palavras paradoxais do Pe. Arrupe, superior-geral dos jesuítas no tempo do Concílio Vaticano II: nunca o Senhor esteve tão perto de nós, porque nunca estivemos tão inseguros...

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (1Rs 19,9a.11-13a)

No seu zelo pelo único Senhor e sofrendo a perseguição da rainha Jezabel, adoradora das divindades pagãs, o profeta Elias (c. 850 a.C.) invocou o fogo do céu sobre os sacerdotes de Baal, no monte Carmelo. Mas Deus o fez experimentar que o zelo não é sempre vitorioso e que sua vocação não é a violência, mas o serviço paciente. Elias, perseguido, fica sem força e foge até o Horeb, a montanha no deserto do Sinai onde anteriormente Deus tinha mostrado a sua grandeza a Moisés e ao povo de Israel durante o êxodo do Egito. Elias quase que deseja provocar Deus a mostrar novamente sua força e a esmagar aqueles que passaram os seus profetas a fio de espada (cf. 1Rs 19,9-10). E aí Deus lhe fala, porém não nos elementos violentos. Deus o manda esperar no cume da montanha. Passa um vento violento, mas Deus não está no vento violento; há um terremoto, mas Deus não está no terremoto; flameja o fogo, mas Deus não está no fogo. Depois, ouve-se o murmúrio de uma brisa ligeira... Então, Elias cobre o rosto e escuta a voz de Deus.

2. Evangelho (Mt 14,22-33)

Também no evangelho de hoje vemos os sinais de Deus superando a violência da natureza: a história de Jesus que anda sobre as águas e dá paz e segurança aos seus discípulos.

Na tradição sobre Jesus que Mateus acolhe no seu evangelho, a multiplicação dos pães (que mostra a participação dos discípulos na obra de Cristo) vinha seguida de uma cena em que os discípulos se encontram em dificuldades, no mar. Jesus, andando sobre as ondas, como Deus (cf. Jó 9,8; 38,16; Sl 77[76],17-19; Is 43,16) ou como a sabedoria de Deus (Eclo 24,8[5]!), vem-lhes prestar ajuda. Ao assumir as duas narrações dessa tradição (que se encontra em forma mais primitiva em Mc 6,35-52), Mateus modifica um pouco o sentido da marcha de Jesus sobre as águas, acentuando a figura de Pedro, fraco na fé. Assim fazendo, Mateus transforma a história numa lição de fé.

Deus não está necessariamente nas coisas grandiosas ou violentas. Apesar da violência humana, Deus é de paz e serenidade. A religiosidade mágica facilmente acredita que Deus se manifesta na tempestade. Mas ele se manifesta acalmando a tempestade. Na primeira leitura vimos que Deus falou depois da brisa mansa, para confiar a Elias nova missão. De modo semelhante, ele se manifestou em Cristo, diante dos apóstolos, que estavam lutando contra o vento no barco no lago de Genesaré.

Depois da multiplicação dos pães (cf. domingo passado), Jesus tinha feito seus discípulos atravessar sozinhos o lago de Genesaré. Ei-los agora confrontados com forças da natureza, às quais eles atribuíam uma origem maligna. Por trás dessa narração está um mundo de mitologia. O mar era visto como domínio de Leviatã, o monstro marinho, primitivamente considerado como divindade e mais tarde degradado até anjo ou diabo. A tempestade era a força do Inimigo, acreditavam os supersticiosos pescadores galileus. Então, Jesus lhes aparece andando sobre as ondas. Simão Pedro (só o Evangelho de Mateus conta este detalhe) sente-se logo animado e quer ir ao encontro de Jesus por sobre as ondas. Mas, de repente, vê novamente diante de si o vento e as águas e perde a confiança em si, mas não em Jesus, pois grita: “Senhor, salva-me” (cf. também o salmo responsorial). E Jesus o salva, mas não sem lhe censurar a falta de fé. E então, com um gesto que revela toda sua majestade, Jesus acalma as ondas. Agora, os discípulos reconhecem-no como o Senhor, o Filho de Deus, e adoram-no.

O Deus que se manifesta em Jesus Cristo não é de tempestade, não é um Leviatã, mas um Deus rico em bondade e fidelidade (cf. aquela outra manifestação na montanha, Ex 34,5-6), o que não quer dizer um Deus de moleza – pois ele tem mais força que a tempestade. Mas ele quer que não tenhamos medo. Não é um Deus que reina na base do medo, mas da confiança, da fé. Ora – e esta é a segunda consideração –, a fé deve ser mais do que um momento passageiro de entusiasmo. Se for só isso, logo de novo vamos, assim como Pedro, ver surgir Leviatãs de todos os lados. Fé semelhante a fogo de palha é pouca fé, para Cristo. Foi o que aconteceu com Pedro. “Se és tu, manda-me vir”... (a frase condicional mostra que ele ainda duvidava se era Jesus, manifestando-se como Filho de Deus, ou se era um fantasma, algum Leviatã; cf. v. 26).

3. II leitura (Rm 9,1-5)

Paulo, apesar de pregar a salvação universal para lá dos limites do judaísmo, está muito preocupado com a salvação dos judeus, seus parentes. O evangelho salva todo o que crê: primeiro o judeu, depois o grego (Rm 1,16). Antes da chegada de Cristo como Messias, os judeus tinham sido privilegiados (cf. Rm 3,1; 9,4). Eles têm até o Messias, o Cristo, pelo menos em termos de pertença natural e sociológica. Contudo, parece que não têm a salvação, pois não têm a fé no evangelho de Cristo. É sobre esse problema que Paulo reflete na segunda grande parte da carta aos Romanos (cap. 9-11); o trecho que ouvimos hojeé o início dessa parte. Paulo confessa sua paixão pelo povo de Israel, do qual é membro – embora tenha de combater o legalismo farisaico. Ele mesmo gostaria de ser condenado se, com isso, os seus irmãos judeus tivessem a salvação (v. 3). Palavra forte, mas não mero exagero: Paulo sabia que era impossível que os judeus estivessem pura e simplesmente perdidos. O plano de salvação, mesmo aberto aos gentios, vale também para os judeus. Como? Veremos isso nos próximos domingos. De toda maneira, tanta confiança tem Paulo no plano de Deus, que pode dizer: se Israel for totalmente rejeitado, então eu também (v. 3)!

III. PISTAS PARA REFLEXÃO: Cristo abandonou a Igreja?

Deus é precedido pela tempestade, mas domina-a. É na calmaria que ele dirige a palavra a Elias. Jesus domina as ondas do lago e dissipa o pânico dos discípulos. Sua manifestação é um convite a ter fé nele. Os doze, o barco, o porta-voz Pedro: tudo isso evoca a Igreja, abalada pelas tempestades da história, enquanto Cristo parece estar demorando a chegar – pois os primeiros cristãos esperavam vivamente e para breve a nova vinda de Cristo, a parusia, que sempre mais parecia tardar a realizar-se. A mensagem da narrativa parece ser que a Igreja deve acreditar na presença confortadora de seu Senhor. Mas nessa fé podem aparecer falhas, como no caso de Pedro...

Que tempestades e escuridão angustiam a Igreja hoje? Cristo nos parece estar longe, não percebemos sua presença...

A Igreja como poderosa instituição está sendo atingida pelo desmantelamento da força política que durante muito tempo lhe serviu de sustentáculo: o Ocidente e suas extensões coloniais. “Morreu a cristandade”, o regime no qual Igreja e Sociedade se identificavam. Sociologicamente falando, a Igreja aparece sempre mais como o que era no início: mera comunidade de fiéis, sem maior peso civil que as sociedades culturais, círculos literários e clubes de futebol (e olhe lá!). Quem ainda não acostumou os olhos a essa redução de poder e destaque sociológico tem dificuldade de enxergar a presença de Cristo.

As dificuldades que a Igreja enfrenta hoje devem nos fazer enxergar melhor a presença de Cristo em novos setores da Igreja, sobretudo na população empobrecida e excluída da sociedade do bem-estar globalizado. De repente, Jesus se manifesta como calmaria no ambiente tempestuoso das “periferias” do mundo, na simplicidade das comunidades nascidas da fé do povo. Temos coragem para ir até ele ou duvidamos ainda, deixando-nos “levar pela onda”?

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), Evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”.