Publicado em janeiro-fevereiro de 2023 - ano 64 - número 349 - pág.: 54-57
05 de fevereiro – 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Ivonil Parraz*
Com sua vida, o discípulo dá sabor ao mundo e o ilumina!
I. INTRODUÇÃO GERAL
As três leituras deste domingo nos mostram a condição do discipulado de Cristo: encarnar o próprio Jesus e agir em conformidade com ele. Só assim podemos dar sabor ao mundo e iluminá-lo.
Paulo, em sua primeira carta aos cristãos de Corinto, com sua teologia da cruz, sustenta que a salvação provém da gratuidade do Pai. Não há mérito em nós que nos faça merecer a salvação. Diante da cruz de Cristo, toda pretensão humana de julgar conhecer Deus e, mediante esse saber, poder salvar a si mesmo encontra-se destruída. A cruz nos remete à nossa situação de criaturas totalmente dependentes do seu Criador. Permitir que a graça de Deus aja em mim: eis a misericórdia divina operando em mim a salvação!
Na primeira leitura, o profeta Isaías apresenta-nos o jejum que agrada a Deus: atos de misericórdia totalmente voltada ao nosso irmão! Repugna a Deus atos intimistas de um coração carregado de interesses próprios: deixo de comer, mas me alimento todos os outros dias do suor do meu irmão; faço longas orações a Deus, mas, em vez de dialogar com o outro, ordeno; mostro-me totalmente dependente do Criador, mas nego o direito de viver dignamente aos meus semelhantes. O ouvido de Deus volta-se para aqueles que se voltam para os pobres! Não esqueçamos: os pobres que nos procuram fazem isso porque Deus nos recomendou a eles! No Evangelho, Jesus nos compara ao sal e à luz. Os cristãos (discípulos) são “sal da terra” e “luz do mundo” se encarnam Cristo. Isso implica dar continuidade às obras dele! Nossas ações devem expressar as dele!
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Mt 5,13-16)
No Evangelho deste dia, Jesus nos diz o que representam os discípulos para a sociedade: “sal da terra” e “luz do mundo”.
Metáfora do sal: assim como o sal se dissolve no alimento, deixando de manter seu aspecto de substância isolada, também o discípulo deve inserir-se na sociedade e temperá-la com o verdadeiro sabor da vida: o amor. O discípulo do Reino vai se perdendo como o sal e vai se conformando ao próprio Jesus. Essa proposta de Jesus vai na contramão do protagonismo! O discípulo promove o Reino, não a si mesmo. O próprio Jesus já fez a experiência do sal, inserindo-se no meio dos pecadores no batismo.
Metáfora da luz: o discípulo tem de estar no lugar onde sua presença ilumina o máximo possível. Jesus não quer uma comunidade de gueto, facciosa, mas aquela que se apresenta como Boa Notícia no meio da sociedade. Aquele que segue Jesus não tem luz própria! Por conformar-se a Cristo, reflete-o.
- a) Sal da terra
Na cultura antiga, o sal aparece como imagem do que dá sabor e conserva os alimentos.
O discípulo, para ser “sal da terra”, deve se configurar a Cristo. Configurar-se a ele significa encarná-lo. Encarnamos Jesus Cristo quando sua Palavra é norte em nossa vida, em nossa comunidade. Quando seus gestos, atitudes, ternura para com as pessoas são também nossos gestos, atitudes e ternura.
Encarnar Jesus Cristo redunda em conservar nossa vida – assim como o sal conserva os alimentos –, assumindo a vida divina em nós: aquela que o próprio Jesus veio nos trazer.
No Evangelho de João, Jesus sustenta que a vida eterna (vida divina) é esta: “Que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que enviaste” (Jo 17,3). Ora, só conhecemos Deus Pai e seu Filho pelo amor. Ainda no Evangelho de João, em sua oração ao Pai, Jesus pede que sejamos um, como ele e o Pai são um (Jo 17,11). O desejo de Jesus Cristo consiste em que seus discípulos vivam na comunhão da Trindade. Essa comunhão acontece no amor, pois o amor gera comunhão! O amor faz que nossa vida seja boa aventura. Encarnar Jesus Cristo, portanto, consiste em viver no amor!
Além de conservar nossa vida na comunhão trinitária, encarnar Jesus Cristo conserva o Evangelho (Boa Notícia) de Cristo. Se o discípulo não encarna Jesus Cristo, o cristianismo torna-se mera doutrina, sem nenhum sabor. Se a Igreja não encarná-lo, ela simplesmente espelha o mundo. Este passa a ser carne de sua carne (PAGOLA, O caminho aberto por Jesus, Ed. Vozes, p. 72).
- b) O sal sem sabor
“Se o sal perde seu sabor, [...] não servirá para mais nada” (v. 13). O sal sem sabor já não é sal: perde sua própria identidade! Assim, qual é a identidade do discípulo sem Cristo? Como posso seguir alguém se não me identifico com aquele que sigo?
No capítulo 25 do Evangelho de Mateus, Jesus, na parábola do juízo final, separa os “benditos do Pai” dos “malditos do Pai”. Estes reconhecem Jesus como Senhor, mas não fazem o que o Senhor faz. Não se identificam com ele. Aliás, nem o reconhecem: “Quando foi que te vimos...?” Os cristãos que perdem seu sabor correspondem aos malditos do Pai.
Atualmente, fala-se tanto sobre Deus, sobre Jesus. No entanto, talvez nunca se tenha falado tanto mal sobre Deus e Jesus Cristo. Só falam bem de Deus (“ben-dizem” a Deus) aqueles que encarnam Jesus Cristo. Falam mal de Deus (“mal-dizem” a Deus) aqueles que falam de Deus e agem o contrariando. Somos sal da terra quando temperamos a vida da sociedade, quando nos preservamos de toda maldade!
- c) A luz do mundo
Como portadores da luz (Cristo), somos luz do mundo! Todavia, só portamos a luz se nos configuramos (encarnamos) a Cristo. Só podemos ser mensageiros (evangelizadores) da Boa Notícia para o mundo quando esta motiva nosso viver!
Assim como o sal, ao perder seu sabor, deixa de ser sal, a luz não pode ser acesa para ser escondida logo depois (v. 15). Uma luz escondida é luz que não brilha, não afugenta as trevas! A existência do discípulo, na concepção de Jesus, só tem sentido se ela transformar o mundo com seu sabor e sua luz. Contudo, para que o discípulo possa transformar o mundo com sua existência, esta tem de ser transformada pela Boa Notícia anunciada por Jesus.
Quando nossas obras bendizem a Deus, estamos sendo luz para o mundo. Quando, em vez de exigirmos dos outros boas atitudes, passamos a agir bem, estamos afugentando não só as trevas da sociedade, mas também aquelas que persistem em habitar nosso interior. Quando Cristo habitar em cada cristão, iluminaremos o mundo! Quando o povo de Deus (Igreja) encarnar Jesus Cristo, o mal do mundo será tirado e o Reinado de Deus estará no meio de nós!
2. I leitura (Is 58,7-10)
Ao praticar o jejum, o povo de Israel busca atrair sobre si os benefícios divinos: “Por que foi que jejuamos e tu nem olhaste? Nós nos humilhamos totalmente e nem tomaste conhecimento” (Is 58,3). Com o jejum, o povo exige que Deus seja misericordioso, como se Deus agisse com misericórdia mediante as obras de piedade do ser humano. Eles desconhecem totalmente a Deus e a história da salvação. Se conhecessem, veriam que a misericórdia divina age sempre, independentemente das ações humanas. Quanto mais afastado estiver o ser humano, mais Deus vem ao encontro dele.
O jejum do povo não agrada a Deus porque, juntamente com essa prática, se exploram os trabalhadores e não se abre mão de interesses. Agrada a Deus o jejum que consiste em dar de comer a quem tem fome, vestir os nus, hospedar os pobres, não permitir a opressão nem testemunhar falsamente (v. 7.9).
A prática dessas obras de justiça atingirá o coração de Deus! Ele estará sempre pronto para atender a todos os que as põem em ação. Brilhará a luz em todos os que praticarem o verdadeiro jejum: “Teus atos de justiça irão à tua frente, e a glória do Senhor o seguirá” (v. 8). Não só: “A tua luz brilhará nas trevas, teu escuro será igual ao meio-dia”. As obras de justiça são luzes para a humanidade. Quem as pratica revela quem é seu Senhor!
3. II leitura (1Cor 2,1-5)
A questão que se apresenta nesta leitura relaciona-se à fé dos cristãos de Corinto: “para que vossa fé se baseasse no poder de Deus, e não na sabedoria humana” (v. 5).
A salvação do Pai é dom gratuito. Não há mérito humano na salvação. Por mais sábia e entendida que possa ser a pessoa, sua salvação não decorre de sua sabedoria, mas exclusivamente da misericórdia divina. Salvação é graça! Portanto, Deus não leva em conta nenhuma posição privilegiada. Ao contrário, escolhe os simples e humildes para participar de seu Reinado.
Alguns cristãos de Corinto julgavam que, pelo fato de conhecerem Deus e terem uma cultura mais elevada que os demais – ou seja, por possuírem sabedoria humana –, eram “merecedores” da salvação.
À sabedoria humana, Paulo opõe a sabedoria da cruz. A cruz simboliza o plano de salvação de Deus Pai. Ela expressa o poder de Deus: o Pai ressuscita o Filho. O cristão deve depositar total confiança no poder de Deus e jamais confiar em si mesmo. Do mesmo modo, a cruz assinala nossa condição humana: somos criaturas. O poder de nos salvar não está em nós mesmos, mas pertence ao nosso Criador! Com efeito, a cruz nega toda pretensão do ser humano de salvar a si mesmo. Diante da cruz, o orgulho humano é aniquilado!
A cruz de Cristo conduz o ser humano a uma decisão: abandonar-se confiantemente à gratuidade do amor de Deus. Essa graça fulgura na morte e ressurreição de Jesus!
Na visão paulina, a fé do discípulo deve ter como fundamento o poder de Deus. Todas as suas ações devem ser expressão dessa fé, pois somente assim suas obras demonstrarão o “poder do Espírito” (v. 4) agindo nele.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Nossa comunidade possui o sal que preserva os crentes da maldade? Ela é luz para a sociedade de hoje?
Nossas boas obras transformam a vida na sociedade? E quanto às de nossa comunidade: são luzes que apontam para o Deus que seguimos?
Como cristãos, encarnamos Jesus Cristo ou o mundo é carne de nossa carne? E quanto à Igreja: tempera a vida das pessoas ou tornou-se insossa e, portanto, incapaz de dar sabor à vida de alguém?
Ser “sal da terra” consiste em agir com compaixão. Quem age com o coração compassivo introduz compaixão na sociedade. Somente agindo assim, poderemos experimentar uma cultura do coração.
Ivonil Parraz*
*presbítero da diocese de Botucatu, pároco da igreja Santo Antônio de Pádua, Botucatu-SP. Diretor de estudo do Seminário Arquidiocesano São José de Botucatu-SP. Coordenador de pastoral da Região Pastoral 1 da arquidiocese de Botucatu. Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP); graduado em Teologia pela Faje, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]