Carta do editor

Novembro-Dezembro de 2023

Rastros do Sagrado na Literatura de Clarice Lispector

Prezadas irmãs, prezados irmãos, graça e paz!

Os filósofos antigos ensinam que a sabedoria nasce do espanto, da capacidade do encanto diante dos fenômenos mais ínfimos. As coisas, as pessoas e os fatos escondem sempre algo mais, além do senso comum e do que nossos sentidos conseguem alcançar. Desde o canto de um passarinho ao vaga-lume, com sua pequena luz atravessando a noite escura; ao vento que sopra nas árvores e as faz dançar; às vozes da natureza; aos tumultos das grandes cidades e seus concretos.

O mesmo se pode dizer da experiência do sagrado ou da mística. O ser humano não é capaz de tudo. Há um “mistério” que o envolve no começo, no meio e no fim da vida. Há uma força que ele não pode domar. Receba isso o nome de sorte ou destino; em essência, é uma “força sobrenatural” que move a existência, não somente humana, mas de todo o universo.

Sobrenatural, aqui, entendido como a capacidade de imaginação religiosa do ser humano, por meio da qual ele enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa, misteriosa, temerosa e pauta a vida por esses significados.

A escritora Clarice Lispector (1920-1977) é uma das figuras extraordinárias movidas pelo espanto diante da existência. Uma das mais renomadas escritoras brasileiras do século XX, abordou os mais variados aspectos da condição humana e sua necessidade de estar conectada aos seres da natureza, uma vez que o humano é também matéria da natureza, porque pó (Gn 3,19). Mas, ao mesmo tempo, esse ser carrega em seu bojo o desejo de transcender o tempo e o espaço, de superar o meramente material:  “E soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (Gn 2,7). O sopro divino plantou em nós uma centelha do sagrado, do eterno.

A obra de Clarice Lispector carrega os rastros do sagrado e está permeada de espiritualidade. Frequentemente aborda a natureza transcendental da existência humana. Em suas narrativas, explora a experiência interior dos personagens, suas dúvidas, medos e anseios, sugerindo a presença de algo além da realidade material. Os temas existenciais são recorrentes, como a busca pelo sentido da vida, a solidão, a identidade e a angústia.

Além disso, Lispector também adentra o sagrado na simplicidade do cotidiano. Suas narrativas muitas vezes se passam em ambientes domésticos e exploram os detalhes aparentemente banais da vida diária. No entanto, por meio de sua prosa lírica e introspectiva, expressa a profundidade e a complexidade desses momentos aparentemente comuns, aventando que o sagrado pode estar presente nas coisas mais simples e ordinárias.

Em A paixão segundo G.H., por exemplo, a personagem principal vive uma experiência mística ao se confrontar com uma barata em seu apartamento, o que a leva a buscar uma compreensão mais profunda de sua própria existência. Em A hora da estrela, a personagem Macabéa é retratada quase como uma figura sagrada, apesar de sua vida simples e sem destaque, mostrando que o divino pode estar presente em todos nós, independentemente de posição social, econômica ou credo.

O livro Água viva também é fortemente espiritual, apresentando uma voz narrativa que reflete sobre a experiência humana em relação ao tempo e à conexão com o mistério divino.

Outras obras, como Um sopro de vida, A maçã no escuro e Laços de família, também trazem elementos espirituais e filosóficos, revelando uma busca constante pela compreensão da vida e do sagrado.

A linguagem poética, a espiritualidade e a teologia nas entrelinhas da obra de Clarice Lispector sejam inspiração para nossa pastoral e incentivo para a criatividade e sensibilidade em nossa missão, que possibilite a experiência com o transcendente e a conexão com o divino, de modo que, nas contradições próprias da história presente, ninguém seja impedido de viver o céu desde agora.

Boa leitura!

Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
Editor