Publicado em janeiro-fevereiro de 2025 - ano 66 - número 361 - pp. 22-27
Viver a esperança a partir das chagas dos pobres e da terra
Por Dom Vicente Ferreira*
Esperança! Palavra constitutiva da vida humana. Singelo dom que exige cuidado cotidiano. Para a fé cristã, é uma das virtudes teologais. À luz do Evangelho de Jesus, ela é motivação profética na luta por novos céus e nova terra. A partir das chagas dos pobres e da terra, impulsiona-nos a ser testemunhas do Reino de Deus. Em cada época, ela nos interpela, chamando-nos para produzir frutos de paz e justiça na Igreja e no mundo.
Consideração inicial
Nossa vida humana é cheia de anseios e projetos. Entre alegrias e dores, lutamos por dias melhores. A natureza também tem seus ciclos, com renovações, resiliências, metamorfoses. No coração de tudo que vive e respira, pulsa a esperança. Ela envolve o mais profundo de nossa existência pessoal, nossas relações interpessoais, com a natureza e com Deus. O papa Francisco, na bula sobre o Jubileu da Esperança, Spes non Confundit, diz que, “no coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expectativa do bem, apesar de não se saber o que trará consigo o amanhã” (Francisco, 2024, n. 1). Ademais, em sua reflexão para a 3ª Jornada Mundial dos Pobres, afirma que a esperança dos pobres nunca se frustrará (cf. Sl 9,19). Por isso, é urgente “devolver a esperança perdida por causa da injustiça, do sofrimento e da precariedade da vida” (Francisco, 2019). Então, perguntamo-nos: quais as razões de nossa esperança para o futuro de nossa Igreja e para a sociedade?
1. Biodiversidade, democracia e sinodalidade: a esperança em contextos de tragédias sociais e ambientais
Vivemos uma mudança de época. Se, por um lado, nossa sociedade tem aspectos positivos, como as conquistas científicas e tecnológicas, por outro, cenários como as guerras e a degradação do planeta pela injustiça socioambiental provocam agudos questionamentos sobre o futuro. Nessa travessia civilizatória, em muitos casos, o ser humano sucumbe ao desespero. Os jovens, migrantes, presidiários, idosos, pobres, negros, indígenas, mulheres são os que mais sofrem. São vítimas de um sistema global que privilegia uma minoria rica e faz sofrer a grande maioria da população mundial. No meio de tais cenários, unimo-nos a tantas pessoas, grupos, coletivos que não aceitam a opressão com posturas fatalistas ou alienadas. São os semeadores de esperança. Estima-se que, até 2050, teremos 17 milhões de “migrantes climáticos” na América Latina e 216 milhões no mundo inteiro, em decorrência de escassez de água, diminuição de produção no campo, temperaturas elevadas, aumento do nível do mar, eventos climáticos extremos. A tragédia no Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2024, foi uma das maiores na história do hemisfério sul. Foram 478 municípios atingidos, 2.398.255 pessoas afetadas, 176 óbitos, 806 feridos e mais de 150 paróquias atingidas. Por trás desses números, estão pessoas, famílias, povos, espécies, biomas etc. É possível que muita gente, em situações de desencanto ou desespero, ainda acredite em narrativas negacionistas.
A força transformadora de nosso agir no mundo diminuirá se o que imperar for a passividade ou a alienação. Tais atitudes serviriam a quem? Certamente, a uma minoria que detém poder e domínio, enquanto a grande maioria da população continuaria a padecer as dores das injustiças socioambientais. Nesse sentido, esperar é não aceitar ser massa oprimida, mas ser sujeitos que sonham com uma sociedade verdadeiramente democrática, com um planeta sustentável em sua biodiversidade e com uma Igreja das periferias existenciais e geográficas. Para isso, a esperança deve ser tecida em redes, por coletivos de quem luta por mudanças, como já acontece em tantos grupos de mulheres, indígenas, quilombolas, campesinos, pescadores, ambientalistas que batalham por uma sociedade justa e fraterna.
Esperança passiva, sem luta, seria trágica. Como afirma Paulo Freire: “Enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã” (Freire, 2013, p. 15). Então, apostemos na esperança feita de luta por dias melhores, principalmente para os pobres e para a Casa Comum. Dentre as propostas para o Ano Jubilar de 2025, o papa Francisco destaca na Fratelli Tutti: com o dinheiro usado em armas e em outras despesas militares, constituamos um Fundo Mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem abandonar os seus países à procura de uma vida mais digna (Francisco, 2020, n. 262).
Três sonhos são fundamentais para uma vivência social e eclesial esperançosa em nossos dias. O primeiro é que o cuidado com a Casa Comum se transforme em causa comum. O Brasil tem uma das maiores biodiversidades do mundo. No entanto, a expansão do agronegócio, da mineração, do desmatamento contribui para o aumento da degradação ecológica. Quem mais sofre com tudo isso? As comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, moradores das periferias da cidade, migrantes climáticos etc. Para enfrentar tais situações, é urgente assumir processos de conversão ecológica, fortalecendo a consciência da conexão profunda entre todos os organismos vivos do planeta. Com efeito, proteger a biodiversidade é pilar imprescindível para que esperemos um futuro de bem viver no planeta.
Juntamente com esse sonho, é urgente lutar em prol da fraternidade universal. Em sua encíclica Fratelli Tutti, o papa Francisco aborda problemas como a fragilidade das relações interpessoais, as guerras “em pedaços”, as rivalidades, o descarte, a falta de projetos coletivos, a injustiça social, a informação fragmentada, elementos que sinalizam “as sombras de um mundo fechado”. Em contraposição a isso, ele nos convida a viver a mística do bom samaritano (Lc 10,25-37), com o objetivo de cultivar “um coração aberto ao mundo inteiro” (Francisco, 2020, n. 128-133), disposto ao diálogo e à construção da amizade. Se nossa globalização permanecer excludente, fortalecendo discursos de ódio e de criminalização dos mais pobres, o que nos espera é a barbárie. Então, que a democracia continue a ser o antídoto para nos livrar de tal abismo.
O terceiro sonho toca à nossa Igreja. Somos provocados a nova experiência missionária, que favoreça a purificação das pretensões colonialistas. Ainda estamos muito envolvidos com fragmentos de uma cristandade atrelada ao poder, com estruturas eclesiais distantes das propostas do Reino de Deus, das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Reforçar discursos clericalistas, ultraconservadores, retrógrados não favorece o que se espera de uma Igreja samaritana e dialogal. Para isso, a mudança de narrativa deve ser acompanhada pela presença corpórea nas periferias. Por mais que as redes sociais sejam lugar de evangelização, sabemos que não há cristianismo sem corpo, sem vivência comunitária. Ser sinodal não é só caminhar juntos, mas também discernir por quais caminhos nossa Igreja deve andar. Ser sinodal é ele- mento estruturante para a esperança de uma Igreja testemunha do Reinado de Deus. Por conseguinte, exige que caminhemos rumo aos mais pobres e em defesa da terra. Motivados por esses sonhos, vejamos o que os fundamentam em nossa caminhada cristã.
2. Fé, esperança e caridade: virtudes teologais para nosso esperançar eclesial e social
As virtudes teologais são o endereço genuíno para um cristão refletir sua vocação no mundo. Elas exprimem mais claramente a consciência de ser “nova criação em Cristo” (2Cor 5,17). Estão interconectadas pelo chamado a fazer que a amizade com Deus se torne prática iluminada pela pessoa de Jesus, que disse: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas a sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25). Pela ação do Espírito Santo, o discípulo configura sua existência ao projeto do Reino de Deus que Jesus inaugurou. Em cada época, somos chamados a dar razões dessa esperança (1Pd 3,15). Para isso, ao manifestar a adesão a quem nos amou primeiro (1Jo 4,10), somos impulsionados por esse amor divino a produzir frutos de justiça e paz.
Então, podemos dizer que a esperança é fruto do agir do Espírito em nós, para transformarmos tudo que é opressão em liberdade. Ao reconhecer as maravilhas de Deus na história da salvação, somos envolvidos na busca pela libertação de toda a criação (cf. Rm 8,20). Grande contradição, muito presente em nossos dias, é a dicotomia entre fé e vida, culto e compromisso social, Igreja e política. Este equívoco precisa ser combatido: o da separação entre alma e corpo, entre as vivências cotidianas e a vida eterna. Fé, esperança e caridade são fruto da obra de Deus em nós, cujo coroamento eterno depende de nossa resposta positiva no aqui e agora.
Levar a sério a condição da humanidade nova inaugurada por Jesus Cristo exige participação, discernimento. Em nossos dias, sabemos, por exemplo, quão complexa e plural é a sociedade globalizada à qual pertencemos. A vida cristã deve perpassar todas as esferas da realidade. Com efeito, “programar um estilo de vida teologal para o hoje do povo de Deus é interpretar e concretizar as exigências da dimensão cósmica da recapitulação de toda a realidade em Deus e valorizar as valências contemplativas e celebrativas da vida cristã” (Compagnoni et al., 1992, p. 1.902). Viver no Espírito, que renova a história, é reconhecer os germes de vida nova e apoiá-los. É também combater tudo aquilo que existe de desumano e que destrói nossa Casa Comum.
“Assim, vossa fé e vossa esperança estão fixas em Deus” (1Pd 1,21). A vida cristã alicerça-se na comunhão amorosa com Deus Trindade, desenvolve-se com a experiência litúrgica, sobretudo dos sacramentos, e, quanto mais se aprofunda, mais faz crescer o desejo de amar o próximo e cuidar de toda a criação. É de Deus Trindade que aprendemos a fazer da vida uma consolação, porque ele mesmo é quem nos consola. Por isso, felizes são aqueles que chegam a ser perseguidos por darem tal testemunho (cf. Mt 5). Nesse sentido, “cultiva a esperança quem vive de misericórdia, se inclina sobre o ser humano e o sustenta no caminhar pela senda através da qual a história e a realidade se convertem em epifania de salvação” (Compagnoni et al., 1992, p. 1.913).
3. O Reinado de Deus: “O que esperamos são novos céus e uma nova terra, onde a justiça habitará” (2Pd 3,13)
Sem Reino de Deus, a esperança cristã corre o risco de se desconectar dos problemas reais da vida ou de ser uma esperança para poucos e não produzir os frutos esperados. No contexto da crise socioambiental global, que futuro esperamos? Nossa esperança cristã é o esperançar do Reino de Deus. Sabemos que ele “já” está presente em todo amor que floresce, mas “ainda não” é completo, porque seu crescimento se dá no meio das contradições e pecados humanos. Ele nos chega como convite, interpelação, e não se desenvolve sem nossa participação.
Jesus usou muitas parábolas para falar do Reino: “O Reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem, pegando dele, semeou no seu campo; o qual é realmente a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu e se aninham nos seus ramos” (Mt 13,31-35). Na dinâmica do Reino de Deus, os pobres têm lugar privilegiado. Aliás, eles é que julgam se somos do Reino de Deus ou do império do egoísmo. É verdade inegociável de nossa fé que o próprio Deus, na história da salvação, sempre esteve do lado dos pobres. Jesus se identificou com eles e disse: “Cada vez que o fizeram a um destes meus pequeninos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25,40). “Fugir dessa identificação equivale a falsificar o Evangelho e atenuar a revelação. O Deus que Jesus quis revelar é este: um Pai generoso, misericordioso, inesgotável em sua bondade e graça, que oferece esperança sobretudo aos que estão desiludidos e privados de futuro” (Francisco, 2019, p. 104).
As bem-aventuranças revelam a perspectiva da felicidade divina. Foi com elas que Jesus iniciou a pregação do Reino de Deus: “Bem-aventurados os pobres” (Lc 6,20). Atualmente, lidamos com as situações graves de pessoas excluídas ou até mesmo descartadas pela sociedade. Trata-se de drama que parece não ter fim, chegando ao absurdo de surgir, em nossas cidades, praças e espaços públicos, uma arquitetura hostil, com o in- tuito de não ter a presença desses “corpos indesejados”, que perambulam pelas ruas à espera de trabalho, de um pedaço de pão, de algum afeto. “Não é fácil ser testemunha da esperança cristã no contexto de uma cultura consumista e de descarte, orientada a acrescentar o bem-estar superficial e efêmero. Requer-se uma mudança de mentalidade para redescobrir o essencial e dar corpo e efetividade ao anúncio do Reino de Deus” (Francisco, 2019, p. 106).
Pensamento final
Optar por uma Igreja e sociedade que tornem visível o Reino de Deus na história é o maior fruto de nossa esperança cristã. Trata-se de nobre missão profética, pois denuncia as estruturas injustas e anuncia a vida plena de Jesus. É poética, pois nossa inquieta esperança nos faz artífices da festa do Reino do amor, da justiça e da paz, e é também política, pois lutamos pelos direitos dos mais pobres e para sanar as injustiças ambientais. O contrário da esperança é o desespero de uma existência egoísta ou a conivência com quem gasta a vida explorando os outros e destruindo a terra. Não deixar apagar em nós a sagrada vocação de transformar o mundo, para que todos tenham vida e vida em abundância, é o melhor de nossa esperança.
Referências bibliográficas
COMPAGNONI, F. et al. Virtudes teologales. In: COMPAGNONI, F. et al. Nuevo diccionario de teología moral. Madrid: San Pablo, 1992.
FERREIRA, Dom V. Crepúsculo: profecias de um tempo novo. Aparecida: Ideias e Letras, 2023. FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: Carta encíclica sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo, Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Laudate Deum: Exortação Apostólica a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática. São Paulo: Paulus, 2023.
FRANCISCO, Papa. Mensagem para o 3º Dia Mundial dos Pobres: a esperança dos pobres jamais se frustrará. [Vaticano]: Libreria Editrice Vaticana, 2019.
FRANCISCO, Papa. Spes Non Confundit: Bula de proclamação do jubileu ordinário do ano 2025. São Paulo: Paulus, 2024.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
RIVA, Giuliano. Regno di Dio. In: RIVA, Giuliano. Dizionario teologico. Brescia: Queriniana, 1968.
Dom Vicente Ferreira*
*é bispo da diocese de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia, e presidente da Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da CNBB. Autor de obras como Crepúsculo: profecias de um tempo novo, pela Editora Ideais e Letras, é defensor dos direitos humanos e da natureza, psicanalista, poeta, compositor e escritor. E-mail: [email protected]