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Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 18-25

Ver, julgar e agir por uma ecologia integral: a dimensão prática da CF-2025

Por Pe. Jean Poul Hansen*

Ver a realidade e identificar nela a presença do pecado ecológico só é possível se a olharmos sob a luz da Palavra de Deus. Essa mesma luz, que ilumina a realidade, ilumina-nos interiormente para agir, mudando atos e atitudes pessoais, comunitários e sociais em vista de uma ecologia integral que garanta a continuidade da vida na Terra, nossa Casa Comum.

 

Neste ano em que celebramos os 2.025 anos da encarnação, isto é, do fato inédito de um Deus que assume nossa condição de criaturas, fazendo-se gente como a gente, no ventre da jovem Maria de Nazaré, nascendo entre nós envolto em faixas e deitado num coxo, “entre o boi e o burro” (1Cel 84), “porque não havia lugar para eles no andar dos hóspedes” (Lc 2,7), e submetendo-se assim às contingências da nossa história, a Campanha da Fraternidade (CF) nos convida, mais uma vez, a ver, julgar e agir por uma ecologia integral, com o tema: “Fraternidade e ecologia integral”.

O lema ilumina e dá o tom do olhar e da ação: “Deus viu que tudo era muito bom!” (Gn 1,31).

Entre as diversas motivações apresentadas pela Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração, propositora desta CF junto ao Conselho Episcopal de Pastoral (Consep) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), estão:

os 800 anos do “Cântico das criaturas”, de São Francisco de Assis, poema do ser humano plenamente reconciliado consigo mesmo – não obstante suas próprias misérias –, com todas as criaturas, desde as visíveis às invisíveis, e com Deus;

os 10 anos da publicação da Encíclica Laudato Si’, primeira expressão do magistério pontifício dedicada exclusivamente ao tema ecológico, tão caro ao papa Francisco e tão importante para o seu projeto de um novo humanismo integral e solidário, do qual são bases a amizade social (CF-2024), a educação (CF-2022 e Pacto Educativo Global), o diálogo (CF-2021) e a misericórdia ou compaixão (CF-2020). Não podemos nos esquecer da necessidade de “realmar a economia”, proposta da economia de Francisco e Clara;

a recente publicação da Exortação Apostólica Laudate Deum, na qual o papa Francisco admite que a LS ainda não foi ouvida, recebida e praticada, e talvez não tenhamos mais tempo para fazê-lo.

Estamos no decênio decisivo para o planeta! Ou mudamos, convertemo-nos, ou provocaremos, com nossas atitudes individuais e coletivas, um colapso planetário. Já estamos experimentando seu prenúncio nas grandes catástrofes que assolam o nosso país. E não existe planeta reserva! Só temos este! E, embora ele viva sem nós, nós não vivemos sem ele. Ainda há tempo, mas o tempo é agora! (Texto-base da CF-2025, n. 8).[1]

a realização da COP 30 no Brasil, em Belém-PA, em novembro de 2025, e a necessária mobilização das Igrejas, como entes da sociedade civil organizada, em vista da sua preparação e realização.

Assim, nosso olhar quer ser, ao mesmo tempo, contemplativo, cheio de louvor e ação de graças, e urgentemente comprometido com a conversão integral, que inclui a conversão ecológica, sem excluir nenhuma outra dimensão dessa realidade tão importante para a Quaresma e para nossa vida cristã, que caracteriza também a CF.

A CF, desde sua origem, é uma proposta concreta de conversão, uma “tentativa de deixar-se transformar pelo Evangelho, que deve modificar os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade” (cf. Puebla, n. 338; 1239; EN 18-20) (TB CF-2025, n. 1). Conversão que ultrapassa o nível pessoal/individual, chega ao âmbito comunitário/eclesial e transborda numa conversão social, capaz de mudar a vida das pessoas e suas relações, em vista de um mundo mais parecido com o desejado Reino de Deus.

1. VER O PECADO PRESENTE NA NOSSA REALIDADE

Para realizar a conversão integral e ecológica desejada, precisamos partir de um ponto: a realidade. O Sínodo para a Amazônia afirma existir um pecado ecológico, isto é, o pecado que

consiste no desrespeito ao Criador e sua obra que é a Casa Comum. São ações ou omissões contra Deus, contra o próximo e contra o meio ambiente. É uma cegueira e perda de sensibilidade com o mundo ao nosso redor, tratando as pessoas e os seres vivos como objetos, esvaziando a dimensão transcendente de toda a criação, destruindo de maneira irresponsável a natureza, explorando sem limites os recursos da Terra e deixando para as gerações futuras um planeta fragmentado e insustentável (Documento final do Sínodo para a Amazônia, n. 82) (TB CF-2025, n. 51).

Nossa realidade mais concreta e palpável testemunha a abundante presença do pecado entre nós, também na sua dimensão ecológica. Vivemos uma crise socioambiental que não passa nem perto daquilo que Deus sonhou para sua obra, ao criá-la. Uma crise de muitas faces, envolvendo uma conjunção de fatores históricos, sociais, econômicos e políticos, calcada sobre o modelo

de desenvolvimento capitalista, baseado na exploração dos patrimônios naturais, na queima de combustíveis fósseis, como os derivados do petróleo, na expansão desenfreada do consumo e na relação mercantilista com a natureza, [que] tem contribuído para uma série de problemas ambientais, como a degradação do solo, o desmatamento, o extrativismo predatório, a poluição, a escassez de água, o comprometimento da biodiversidade com a extinção de algumas espécies e as mudanças climáticas (TB CF-2025, n. 26).

É preciso um novo olhar sobre o mundo, com os olhos de Deus. Essa é a contribuição específica do cristianismo às sociedades contemporâneas.

Contrariamente a este paradigma tecnocrático, afirmamos que o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites. Nem sequer podemos considerar a natureza como uma mera “moldura” onde desenvolvemos a nossa vida e os nossos projetos, porque “estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos” (LS 903), de tal modo que se contempla “o mundo não como alguém que está fora dele, mas dentro” (LS 934).

2. ILUMINAR AS TREVAS DO PECADO
COM A LUZ DA PALAVRA DE DEUS

Grave risco corremos de nos propormos itinerários de conversão que nos façam voltar aos nossos interesses, aos nossos pontos de vista já consolidados, enfim, a nós mesmos. Por isso, a luz da Palavra de Deus, e sempre ela, é que define o caminho do discernimento entre a triste realidade do pecado e a ação concreta que nos conduz à vida nova.

A palavra escolhida para esta CF é do livro do Gênesis (1,1-2,4a), o primeiro relato da criação. Segundo ele, todas as criaturas gozam de uma dignidade inegável por causa de sua origem divina.

No entanto, “anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer” (LS 33) (TB CF-2025, n. 64).

A missão do ser humano é “cultivar e guardar” (Gn 2,15) o jardim da criação e jamais exterminar sua existência, seja de forma total ou mesmo parcial. “Eis também a tarefa deixada ao ser humano: descobrir a beleza, a bondade, a singularidade, a diversidade e a agradabilidade de todos os seres. Sendo assim, qualquer tipo de destruição da obra criacional torna-se algo contrário à ótica bíblica da criação” (TB CF-2025, n. 68).

Também o Novo Testamento ilumina nossa relação com o meio ambiente ao nos revelar a plena harmonia entre Jesus e a criação.

Jesus, um camponês galileu, integrado com a criação, observa atentamente a sociedade e o ambiente ao seu redor. Paisagens (rios, mares, montanhas, desertos, campos), fenômenos climáticos (o sol ardente, o vento tempestuoso), plantas e animais contemplados com admiração tornam-se fonte importante para sua compreensão da realidade, sua atuação e seu ensino. A Boa-nova do Reino de Deus traz consigo várias conotações socioambientais (TB CF-2025, n. 79).

Essas conotações socioambientais aparecerão também nas alegorias típicas dos Padres da Igreja (séculos I-V).

É certo, porém, que, à luz da Palavra de Deus, da qual eles foram incansáveis e zelosos comentadores, eles deixaram para nós afirmações que demonstram não somente um respeito profundo pela natureza, quanto uma consciência de interdependência entre os seres humanos e as demais criaturas de Deus (TB CF-2025, n. 94).

É, no entanto, na Doutrina Social da Igreja (DSI) que encontramos as luzes mais atuais do magistério no que tange à crise socioambiental que vivemos. Desde a Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, até a Laudate Deum (2023), do papa Francisco, passando por Mater et Magistra (1961), Pacem in Terris (1963), Populorum Progressio (1967), Octogesima Adveniens (1971), Redemptor Hominis (1979), Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987), Centesimus Annus (1991), Caritas in Veritate (2009) e, sobretudo, Laudato Si’ (2015), todos os pontífices romanos manifestaram sua preocupação e não se negaram a ensinar ao povo cristão e a todas as pessoas de boa vontade que o cuidado da criação é tarefa irrenunciável do ser humano e que essa tarefa exige conversão constante de sua parte, seja nas suas concepções pessoais, seja nas suas mais variadas formas de organização social, política, econômica e eclesial.

O princípio da destinação universal dos bens da terra, o desenvolvimento dos povos, os perigos da exploração e da crescente ruptura entre sociedade e natureza, os princípios da ética ambiental, a urgência de educar para a responsabilidade ecológica, a interligação entre o zelo pelo ser humano e o zelo pela natureza, tudo isso é expressão de ampla tarefa eclesial que decorre da fé.

3. AGIR À LUZ DA PALAVRA PARA TRANSFORMAR
A REALIDADE DO PECADO NA VIDA NOVA DA GRAÇA PASCAL

Não existe verdadeira conversão sem ação, sem mudança concreta de vida, dos atos e atitudes da pessoa, da comunidade e da sociedade que se dispõe docilmente a moldar-se segundo a vontade ou o projeto de Deus, expresso no Evangelho do Reino. O êxito da ação, no entanto, depende, em grande parte, da capacidade de ver/ouvir e de refletir/discernir.

O exercício de ver e ouvir a realidade com o olhar contemplativo mobiliza diversas possibilidades de ação e de tomada de posicionamento diante dos desafios que se apresentam. De modo especial, o agir é consequência de processos de discernimento espiritual, debate coletivo, planejamento comunitário e decisões conjuntas que fazem parte de instâncias maiores de participação e transformação social (TB CF-2025, n. 132).

Bastaria isso para que cada pessoa, comunidade ou expressão da sociedade civil imersa nesse processo concluísse suas próprias ações, suas necessidades de mudança e conversão na relação com a Casa Comum e com todos os seus habitantes.

Essas ações, porém, devem ser expressões concretas de uma mudança de mentalidade, de estilo de vida, que permaneça doravante. Por isso, o Texto-base da CF-2025, no n. 138, apela a todos nós:

Conclamamos todas as pessoas de boa vontade a considerarem também a urgente necessidade de diminuirmos a marcha, de desacelerar nosso modelo desenvolvimentista. “Quando se colocam estas questões, alguns reagem acusando os outros de pretender parar irracionalmente o progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de nos convencer de que reduzir um determinado ritmo de produção e consumo pode dar lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento” (LS 191). […] É preciso rever nosso modelo de progresso, redescobrir a dimensão transcendente da vida, a capacidade humana de contemplação e reafirmar a dimensão profunda do repouso (LS 237). Por conseguinte, precisamos considerar formas menos produtivistas de organização do trabalho e do tempo de trabalho, salvaguardando uma remuneração digna e justa e condições laborais e previdenciárias cada vez mais humanizadas aos trabalhadores. O aumento da carga horária mundial de trabalho é nocivo para a Casa Comum, assim como “o princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceitual da economia” (LS 195). Como, porém, fazer isso concretamente?

A alternativa mais econômica e eficaz consiste em reduzir em curto prazo as emissões de dióxido de carbono (CO2) e de metano (CH4), fazendo a transição energética e apoiando a substituição da energia proveniente de combustíveis fósseis pela energia solar e eólica, entre outras. Isso pode trazer benefícios significativos, em termos de sustentabilidade e desenvolvimento econômico: é fundamental que seja feito de maneira justa e respeite os direitos das comunidades locais, incluindo a consulta e o consentimento prévio, livre e informado. Isso significa envolver as comunidades, desde o início do processo de planejamento, e garantir que elas tenham voz nas decisões que afetam suas terras e meios de subsistência. Também é importante considerar os impactos ambientais negativos das fazendas eólicas e implementar medidas para minimizar seus efeitos, protegendo comunidades rurais, ecossistemas sensíveis e biodiversidades locais.

Outras ações possíveis são:

a redução do desmatamento e da degradação das florestas e a restauração ecológica;

o tratamento do lixo;

o combate ao desperdício de alimentos;

a valorização de modelos alternativos de produção;

o combate ao consumismo;

o investimento no saneamento básico;

as políticas públicas de prevenção na saúde e de enfrentamento das mudanças climáticas;

o investimento na educação ecológica e ambiental nas comunidades, escolas e universidades; etc.

Para nos inspirar à ação, o Texto-base apresenta boas práticas que estão sendo desenvolvidas pela Igreja e por organizações da sociedade civil em todas as regiões do Brasil (n. 139-153).

Pessoa, comunidade – e, nela, a escola católica – e sociedade, também os operadores das artes, da cultura e da mídia, são desafiados a encontrar seus caminhos próprios para a ação em defesa da Casa Comum.

Tempos especiais de mobilização, por iniciativa local ou mundial, são oportunidades para prolongar por todo o ano a reflexão da CF, em vista da conversão das atitudes e da consequente mudança do modo de vida no planeta:

Semana Laudato Si’, de 18 a 25 de maio;

Junho Verde;

Tempo da criação, de 1º de setembro a 4 de outubro;

As celebrações dos 800 anos do “Cântico das criaturas”;

Todo o processo de preparação e realização da COP 30 em Belém-PA.

Concluímos nossa reflexão com o mesmo espírito que a iniciamos: de contemplação agradecida e de disposição para a conversão. Com São Francisco, queremos dizer repetidamente: “Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas!” No entanto, com o papa Francisco, queremos também reconhecer a urgência de empreender um “percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e […] enriquecê-lo com o próprio contributo, pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores” (LD 69).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASILEIRO, E. (org.). Realmar a economia: a economia de Francisco e Clara. São Paulo: Paulus, 2023.

CNBB. Campanha da Fraternidade 2025: Texto-base. Brasília, DF: CNBB, 2024.

FRANCISCO, Papa. Laudate Deum: Exortação Apostólica sobre a crise climática. Brasília, DF: CNBB, 2023. (Documentos Pontifícios, 59).

FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum. Brasília, DF: CNBB, 2016. (Documentos Pontifícios, 22).

[1]  Doravante citado como TB CF-2025.

Pe. Jean Poul Hansen*

*pertence ao clero da diocese da Campanha-MG, onde já foi pároco, assessor diocesano da catequese, professor nos seminários e coordenador diocesano da ação pastoral. É mestre em Teologia Dogmática pela Universidad Pontificia de Salamanca (2014) e especialista em Origens do Cristianismo pelo Instituto Agostiniano de Valladolid (2013), ambos na Espanha. É também especialista em Doutrina Social da Igreja pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2024) e docente licenciado da Faculdade Católica de Pouso Alegre-MG. Atualmente exerce a missão de secretário executivo de Campanhas na CNBB. E-mail: [email protected]