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Publicado em setembro – outubro de 2018 - ano 59 - número 323

“Vamos oprimir o pobre e o justo” – Uma leitura do livro da Sabedoria 1,16-2,20

Por Centro Bíblico Verbo

Introdução

O relatório preliminar do ano de 2017 da Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica que, naquele ano, 65 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo. Por exemplo, em Colniza, no Mato Grosso, em abril, nove posseiros e agricultores foram executados. Em Pau D’Arco, no Pará, em maio, foram assassinados dez trabalhadores rurais. Em Vilhena, Rondônia, três trabalhadores rurais foram mortos. E já em 2018, no dia 24 de janeiro, um líder do MST foi assassinado em Iramaia, na Chapada Diamantina, interior da Bahia.

Aqueles que reivindicam seus direitos continuam sendo ameaçados e eliminados. Mas isso é divulgado somente pela imprensa local e não chega ao conhecimento da maioria da população brasileira. O pior é que alguns insultam e caluniam as pessoas assassinadas, tachando-as de bandalheiras e insurgentes.

O Antigo Testamento também registra acusações, calúnias, perseguições e violências contra os justos. Por exemplo, o livro da Sabedoria, escrito em Alexandria por volta do ano 30 a.C., apresenta o pensamento e a ação dos ímpios (injustos) que oprimem e perseguem os justos: “Vamos oprimir o pobre e o justo e não poupar as viúvas ou respeitar os cabelos brancos do ancião. Nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco é inútil, não há dúvida” (Sb 1,10-11).

Os ímpios usam de violência para matar os justos: “Vamos submeter o justo a insultos e torturas, para sabermos de sua serenidade e avaliarmos sua resistência. Vamos condená-lo a morte humilhante, pois, segundo suas palavras, haverá quem olhe por ele” (Sb 2,19-20). Quem são os ímpios? Diante da realidade sofrida do Brasil, na qual muitos “justos” continuam sendo brutalmente assassinados, podemos nos perguntar: qual o pensamento e a ação do ímpio de ontem e de hoje?

  1. O ímpio, o justo e o pobre

Na literatura sapiencial, o termo ímpio ocorre com maior frequência e aparece em oposição ao justo e ao pobre:

– “O ímpio faz intriga contra o justo, e contra ele range os dentes. […] Os ímpios desembainham a espada, preparam o arco para fazer cair o pobre e o indigente, para assassinar o homem reto em seu caminho” (Sl 37,12-13);

– “Os ímpios diziam a Deus: ‘Afasta-te de nós. O que poderia fazer-nos Shadai?’ Mas Deus tinha enchido a casa deles de bens. Que o conselho dos ímpios se afaste de mim. Os justos verão e se alegrarão, o inocente zombará deles” (Jó 22,17-19);

– “O caminho dos justos brilha como a aurora, e sua luz vai ficando mais forte até o nascer do dia. O caminho dos ímpios é escuro. Eles não sabem no que irão tropeçar” (Pr 4,18-19).

Nesses provérbios, o ímpio está em oposição ao justo e ao pobre e os explora e oprime. Ele pratica o mal e está longe de Deus: “O orgulho do ímpio se acende contra o humilhado. Mas que sejam apanhados nas intrigas que planejaram. Por que o ímpio se orgulha da ambição de sua alma, e o homem ambicioso blasfema contra Javé? O ímpio é arrogante de rosto e incapaz de refletir: Deus não existe! Tudo não passa de devaneios” (Sl 10,2-4).

Na realidade, apesar de viver longe de Deus, o projeto do ímpio vai bem e ele vive melhor do que os outros. Ele mesmo declara: “Jamais vacilarei. De geração em geração, nunca sofrerei calamidade” (Sl 10,6). Pratica tranquilamente a falsidade e a perversidade contra o justo e o pobre: “Eis que sua boca está cheia de enganos e fraudes, sua língua esconde maldade e opressão. Ele fica de tocaia no curral, em lugares secretos, para matar o inocente” (Sl 10,7-8).

Diante dessa realidade, o justo e o pobre têm até inveja: “Quanto a mim, por pouco meus pés tropeçavam, quase dei um passo em falso, porque senti inveja dos arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios. Pois para eles não existem sofrimentos, até ao morrer seus corpos são robustos e sadios. A fadiga dos mortais não os atinge, nem conhecem a aflição dos outros homens. Por isso seu colar é o orgulho, e se cobrem com as vestes da violência” (Sl 73,2-6; cf. Jó 21,1-13).

Há um fato, porém: “O salário do justo conduz para a vida, mas o ganho do ímpio leva ao pecado” (Pr 10,16); “É boa a riqueza em que não há pecado; mas, na opinião do ímpio, a pobreza é má” (Eclo 13,24). A injustiça social, a violência e o ganho ilícito da riqueza, praticados pelos ímpios, tanto no campo como na cidade, são testemunhados pelos livros proféticos e sapienciais.

No livro de Jó, por exemplo, lemos: “Os ímpios mudam os marcos das divisas, roubam os rebanhos e os levam a pastar. Levam embora o jumento que pertence ao órfão e penhoram o boi que é da viúva. Eles desviam os indigentes para fora do caminho, e todos os pobres da terra têm de se esconder. Como asnos selvagens no deserto, eles saem para o trabalho; desde o amanhecer vão em busca de alimento, e a estepe dá pão para seus filhos. Fazem a colheita no campo e recolhem as sobras na vinha do ímpio” (Jó 24,2-6). É a dura realidade de injustiça social e violência no campo e na cidade!

É nesse contexto que se entende a insistência da literatura sapiencial: Deus premia o justo e julga e castiga o ímpio! Essa forma de pensar está em continuidade com a tradição profética do “dia de Javé” (Am 5,18):

– “Veja: Deus é poderoso e não despreza o poder do coração. Ele não deixa o ímpio viver e faz justiça aos pobres. Ele não tira seus olhos dos justos, mas os faz sentar para sempre no trono dos reis, e são exaltados” (Jó 36,5-7);

– “Tesouros injustos não trazem proveito, mas a justiça livra da morte. Javé não deixa o justo passar fome, mas reprime a ambição dos ímpios” (Pr 10,2-3);

– “Vi o ímpio triunfante espalhar-se como árvore nativa e frondosa. Mas passou, e eis que já não existe; procurei-o, e não mais o encontrei. Observe o íntegro, veja o homem direito, porque existe uma descendência para o homem pacífico. Quanto aos culpados, serão destruídos todos juntos, e a descendência dos ímpios será cortada” (Sl 37,35-38);

– “Humilhe-se profundamente, porque o castigo do ímpio é fogo e vermes”; “Não se alegre com a felicidade dos ímpios. Lembre-se de que eles não ficarão impunes antes de chegarem à morada dos mortos”; “O próprio Altíssimo detesta os pecadores e inflige aos ímpios o castigo merecido” (Eclo 7,17; 9,12; 12,6).

Tudo isso está muito presente no livro da Sabedoria, escrito em Alexandria, no Egito, importante centro do judaísmo helenístico. O tema do ímpio (injusto) contra o justo e o pobre já aparece no primeiro discurso dos ímpios (cf. Sb 1,16-2,20): “Vamos oprimir o pobre e o justo e não poupar as viúvas ou respeitar os cabelos brancos do ancião. Nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco é inútil, não há dúvida” (Sb 2,10-11).

A opressão e a perseguição do ímpio contra o justo são tão grandes, que provocam a morte prematura deste: “O justo, porém, ainda que morra cedo, terá descanso” (Sb 4,7). O autor do livro, porém, afirma que a morte prematura do justo não é desejada por Deus (cf. Sb 4,10-11), mas é causada pela perseguição, tortura e violência aplicadas pelos ímpios (cf. Sb 2,10-20).

E a morte prematura do justo torna-se até julgamento condenatório dos injustos: “O justo que morre condena os ímpios que vivem, e a juventude que logo se aperfeiçoou condena a velhice do injusto. Os injustos verão o fim do sábio e não entenderão o que o Senhor queria dele nem por que o deixou na segurança. Verão e desprezarão, mas o Senhor rirá deles. E, depois disso, serão para sempre cadáveres desonrados e infâmia entre os mortos, porque Deus os derrubará de cabeça para baixo, sem que possam dizer palavra alguma, e serão arrancados de seus alicerces” (Sb 4,16-19). O dito sapiencial se repete: Deus premia o justo e julga e castiga o ímpio (cf. Sb 4,20-5,23).

Quem são os ímpios do livro da Sabedoria? O autor não fornece informação concreta para identificar esses ímpios. Podem ser os governantes gregos? Os romanos? Os egípcios? Os judeus apóstatas? Relendo, contudo, os livros escritos no período grego, sobretudo no tempo mais próximo ao livro da Sabedoria, pode-se verificar o uso do termo “ímpio” para se referir àquele que promove a implantação da cultura greco-romana – o helenismo (cf. 1Mc 3,8.16; 7,5; 2Mc 4,13; 8,2; 10,10).

O livro da Sabedoria também aplica o termo ao grupo que oprime e persegue os judeus fiéis a Javé por meio da implantação da cultura greco-romana. De forma bastante clara e concreta, são apresentados o espírito, a filosofia e a prática desse grupo em Sb 1,16-2,20. É o ímpio que explora e oprime os pobres e os justos para viver no ócio e no prazer.

  1. Busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra

O primeiro discurso dos ímpios (cf. Sb 1,16-2,20) se abre com uma frase introdutória e, ao mesmo tempo, temática: “Os ímpios, porém, com ações e palavras, invocam a morte. Julgaram que ela seria amiga e, tendo feito aliança com ela, a desejaram intensamente. São mesmo dignos de lhe pertencer” (Sb 1,16). Os ímpios são apresentados como aqueles que fazem pacto com a morte (cf. Is 28,15). Suas palavras e ações promovem a perseguição, destruição e morte dos justos e dos pobres, que são “amigos” de Deus, o qual “não fez a morte nem se alegra com a destruição dos seres vivos” (Sb 1,13).

O amigo da morte versus o amigo de Deus. No discurso, o tema do conflito ímpios (injustos) versus justos já está bem presente no pensamento e na prática do dia a dia. Com o julgamento condenatório do autor (“Pensando de forma incorreta”), o discurso apresenta o pensamento “incorreto” do ímpio, influenciado pelas correntes da filosofia grega: “Nossa vida é breve e triste” (Sb 2,1). Não há esperança na vida futura. Por quê? Simplesmente porque os ímpios acreditam não existir vida após a morte!

Prova disso é que anunciam: “nada se sabe de alguém que tenha voltado do mundo dos mortos” (Sb 2,1) ou: “Nosso tempo é a passagem de uma sombra, e não há retorno após nossa morte, porque o tempo estará selado e ninguém retornará” (Sb 2,5). É afirmação contrária à fé do justo: “Deus há de resgatar da morada dos mortos a minha vida” (Sl 49,16); “O rei do mundo nos fará ressuscitar para uma ressurreição eterna de vida” (2Mc 7,9). Uma das principais diferenças entre o ímpio e o justo centra-se na perspectiva sobre a vida após a morte.

Para reforçar seu argumento (“vida triste e breve”), os ímpios discorrem sobre a casualidade da vida: “Porque nascemos do acaso e depois seremos como se não tivéssemos existido: o sopro de nossas narinas é fumaça, e o pensamento é uma faísca do pulsar de nossos corações. Quando ela se extingue, o corpo se transformará em cinza e o espírito se dissolverá como ar sem consistência” (Sb 2,2-3). “Fumaça”, “faísca”, “cinza”, “ar sem consistência”… A vida é passageira!

O argumento dos ímpios atinge até a memória da vida humana: “com o tempo, nosso nome será esquecido e ninguém se recordará de nossas obras. Nossa vida desaparecerá como nuvem passageira, e se dissipará como neblina expulsa pelos raios do sol e dissolvida por seu calor” (Sb 2,4). O nome da pessoa representa sua lembrança, existência, história: nascimento, família, trabalho, laços, fraternidade, justiça etc. A vida é “breve, triste” e fugaz, passa depressa como também a sua memória.

Essa concepção sobre a casualidade e fugacidade da vida faz aumentar ainda mais o conflito entre o ímpio e o justo, que acredita que o universo é criatura de Deus e o contempla como tal. No universo, a humanidade, feita à imagem e semelhança do Criador, deve trabalhar, governar e desfrutar da vida plena com fraternidade e justiça (cf. Gn 1-3). A vida tem sentido, memória e história! Não é “acaso”. Se não pensar assim, o que fazer na vida?

Após ter apresentado sua visão sobre a vida “breve e triste”, os ímpios declaram: “Vamos então desfrutar dos bens existentes e usar das criaturas com ardor juvenil. Vamos embriagar-nos com o melhor vinho e com perfumes e não deixar que passe a flor da primavera. Vamos coroar-nos com botões de rosa, antes que murchem. Ninguém de nós fique fora de nossas orgias. Vamos deixar em toda parte sinais de alegria, porque este é o nosso destino e a nossa parte” (Sb 2,6-9). “Criaturas com ardor juvenil”, “o melhor vinho e perfume”, “a flor da primavera”, “orgias”… Aproveitar ao máximo os bens existentes, porque não há outra vida!

Os sábios do livro de Eclesiastes também concordam com o viver intensamente a vida: “Vá, coma seu pão com alegria e beba contente seu vinho, porque Deus já aceitou suas obras. Use sempre roupas brancas e nunca falte o perfume em sua cabeça. Desfrute a vida com a mulher que você ama, enquanto durar essa sua vida de ilusão” (Ecl 9,7-9a). Comer, beber, vestir, amar, alegrar-se… São atividades básicas de todo ser humano que devem ser desfrutadas e festejadas. Aproveite a vida para a felicidade.

 No entanto há uma observação: “Porque essa é a sua porção na vida e no trabalho com que você se cansa debaixo do sol” (Ecl 9,9b). Trabalhar e usufruir! O trabalho é necessário para viver bem. Todo o mundo deve usufruir do fruto do seu trabalho para a felicidade. Deve usufruir de “sua” porção, e não da porção de outros: “Se Deus concede a um homem riqueza e bens e a capacidade de comer deles, de receber sua porção e de desfrutar os seus trabalhos, isso é um dom de Deus” (Ecl 5,18; cf. Ecl 2,24; 3,12-13). Isso elimina qualquer ideia de acúmulo, exploração e opressão para criar uma situação injusta. O livro de Eclesiastes recomenda ainda a solidariedade e união do povo no trabalho em busca da felicidade (cf. Ecl 4,9-12).

Ao contrário, os ímpios insistem em “nosso destino e nossa porção”. Nela, não entra o justo, não entra o pobre, não entram as viúvas, não entra o ancião, como também não entra o Deus dos pobres: “Vamos oprimir o pobre e o justo e não poupar as viúvas ou respeitar os cabelos brancos do ancião. Nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco é inútil, não há dúvida” (Sb 2,11). Para aproveitar ao máximo a vida presente, os ímpios oprimem os fracos e o justo, aplicando até mesmo a “força” e a violência segundo a “lei do mais forte”, chamada no texto de “a lei da justiça”.

Qual é o motivo da opressão contra os fracos? A resposta dos ímpios resume-se a uma palavra: inútil. No cerne da espiritualidade do helenismo, impulsionado pelos governantes e poderosos no mundo greco-romano, está a busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra! Quem não produz bens materiais é considerado “inútil”, até impede os ímpios de aproveitar ao máximo a existência. “A lei da justiça” dos ímpios é contrária à lei da vida, é perseguir e eliminar os fracos. É a lei do mais forte!

Ou seja, a justiça dos ímpios consiste em “aproveitar” os bens materiais com “orgia” sem limites, eliminando os obstáculos – “os fracos e justos” –, fazendo “aliança com a morte”. Opostamente, na cosmovisão dos judeus justos, é por meio da justiça que Deus manifesta sua vontade de promover a vida, sobretudo a dos fracos. Ele é o Deus da vida! Com ele, o justo faz aliança para defender os fracos!

Os ímpios mesmos confirmam isso, deixando bem claro que o justo deve ser perseguido: “Vamos preparar ciladas para o justo, pois ele nos incomoda e se opõe a nossas ações. Censura nossas transgressões contra a Lei e denuncia nossas faltas contra a educação que recebemos. Ele proclama ter conhecimento de Deus e afirma ser filho do Senhor” (Sb 2,13). Fazendo aliança com o Deus da vida na “educação” da tradição judaica, o justo censura e critica as injustiças praticadas contra os fracos, à semelhança dos profetas no passado: “Escutem bem, chefes de Jacó, governantes da casa de Israel! Por acaso, não é obrigação de vocês conhecer o direito? Inimigos do bem e amantes do mal, vocês arrancam a pele das pessoas e a carne de seus ossos” (Mq 3,1-2). Os ímpios, amigos da morte e amantes do mal (cf. Sb 1,16), são criticados pelo “filho do Senhor”, que invoca Deus como “Senhor, pai” (cf. Eclo 23,1-3). Eles não suportam aqueles “filhos de Deus” que praticam a justiça para libertar a todos para a vida.

Os ímpios continuam manifestando seus sentimentos de reprovação e hostilidade contra o justo: “Tornou-se uma reprovação para nossas intenções. Vê-lo é desagradável para nós, porque a vida dele é diferente da vida dos outros, e seus caminhos são contrários. Somos considerados por ele como coisa falsa; ele se afasta de nossos caminhos como de impurezas; declara que o destino dos justos é feliz e se alegra em ter Deus como pai” (Sb 2,14-16). Os justos têm “caminhos contrários”, consideram os ímpios como “coisa falsa” e “impurezas”.

Mais uma vez, a que o pensamento dos ímpios se refere ao falar em “nossas intenções”? A aproveitar ao máximo a vida presente, eliminando os “obstáculos”. É o caminho contrário da tradição judaica do justo, filho do Senhor: “Senhor, pai e Deus da minha vida, não deixes que meu olhar seja arrogante. Afasta de mim os maus desejos. Que a sensualidade e a luxúria não me dominem. Não me entregues ao desejo vergonhoso” (Eclo 23,4-6). São orientações opostas à busca desenfreada dos ímpios por bens, prazer, poder…

Finalmente, os ímpios, como tiranos de ontem e de hoje, partem para a tortura e a morte do justo, a fim de executar a eliminação decisiva: “Vejamos se as palavras dele são verdadeiras, vamos verificar como será o seu fim. […] Vamos submetê-lo a insultos e torturas, para sabermos de sua serenidade e avaliarmos sua resistência. Vamos condená-lo a morte humilhante, pois, segundo suas palavras, haverá quem olhe por ele” (Sb 2,17.19-20).

“Insultos”, “torturas”, “morte humilhante” para tantos mártires. São atos perversos que se repetem ao longo da história. Assim aconteceu com Jesus de Nazaré e com seguidoras e seguidores seus de ontem e de hoje. Quantos agricultores e sindicalistas que lutaram por um pedaço de terra foram imolados aqui no Brasil? Quantos serão no futuro? A sociedade baseada na intolerância, na injustiça e no mal não suporta a existência de “justos” que a critiquem e resistam. Os ímpios contra os justos!

Na releitura da comunidade lucana, Jesus é chamado de “justo”: “Vendo o que tinha acontecido, o centurião glorificou a Deus, dizendo: ‘Realmente, este homem é justo’” (Lc 23,47). Quem é Jesus “justo”? Por que ele foi brutalmente assassinado? Em que consistiam seu pensamento e sua ação, que criticavam e incomodavam os ímpios do seu tempo? Qual a sua sabedoria – o caminho da justiça e da vida? É o caminho de seus seguidores e seguidoras de hoje…

  1. “Que sabedoria é essa que lhe foi dada?”

Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos ouvintes ficavam admirados, dizendo: “De onde lhe vem tudo isso? E que sabedoria é essa que lhe foi dada? […] Este não é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E suas irmãs não vivem aqui entre nós?” E se escandalizavam por causa dele (Mc 6,2-3).

Os ouvintes, que conheciam Jesus, porque ele era um do seu povo, escandalizaram-se por causa dele. Não compreendiam como alguém de origem tão humilde, que não frequentou a escola dos rabinos (cf. Jo 7,14-18), pudesse falar como ele falava. Pensavam que a sabedoria só podia ser produzida e transmitida por “sábios, entendidos e letrados”, pessoas estudadas e “cultas”, com muitos conhecimentos e técnicas. Então, de onde vem a sabedoria de Jesus? “De onde lhe vem tudo isso?”

 A resposta está no próprio dito sapiencial de Jesus: “Nessa mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado’” (Lc 10,21).

Jesus de Nazaré viveu no meio dos “pequenos” do povo da Galileia, que lutavam pela vida. Nas rodas dos familiares e dos amigos, havia o costume de partilhar a experiência do dia a dia em favor da vida em meio à realidade dura e sofrida. Partilhava-se e transmitia-se a sabedoria acumulada ao longo da história do camponês israelita: as “leis” que regem a natureza e a vida. A sabedoria a serviço da sobrevivência!

No tempo de Jesus, com a implantação sistemática da helenização, agravou-se a realidade dos camponeses. Os romanos nomearam os idumeus, inimigos dos judeus, para reger a Palestina: Herodes Magno e seus filhos (Arquelau, Antipas e Filipe), cujos reinados foram marcados pela exploração, tirania e brutalidade, espalhando pobreza, doença e desespero no meio do povo: “Ao cair da tarde, quando o sol se pôs, levaram a Jesus todos os que estavam doentes e os endemoninhados” (Mc 1,32).

Os reis herodianos promoveram a ostentação do luxo, segundo o estilo greco-romano, construindo palácios em cidades como Cesareia, Séforis, Tiberíades, Jodefá etc. Aumentaram os tributos, assim como intensificaram a exploração, a opressão e a violência contra os camponeses, que constituíam cerca de 95% ou mais da população da Palestina. Era comum presenciar famílias inteiras sendo vendidas como escravos por causa de dívidas: “Quando Jesus desceu da barca, viu uma grande multidão e se encheu de compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34).

É nesse caldeirão de sofrimento, de luta pela sobrevivência e de grito dos camponeses por justiça que o movimento de Jesus nasceu, cresceu e anunciou os ditos sapienciais de exortação e orientação. A “bem-aventurança” é um deles: “Elevando os olhos para seus discípulos, Jesus dizia: ‘Felizes vocês, os pobres, porque de vocês é o Reino de Deus. Felizes vocês, que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes vocês, que agora choram, porque hão de sorrir’” (Lc 6,20-21).

A bem-aventurança dos pobres (cf. Mt 5,1-12) – que não significa a exaltação de sua condição precária e sofrida, mas sua libertação – está inserida no Evangelho Q, também chamado de “Evangelho da Galileia”, um conjunto de materiais comuns a Lucas e Mateus e ausentes em Marcos. Possivelmente, é um evangelho composto durante a década de 40 d.C., na região ao redor do lago de Genesaré ou da Galileia. As pequenas cidades dessa região, como Cafarnaum, Betsaida e Corazin, são mencionadas nesse evangelho.

Os temas predominantes do Evangelho Q são o julgamento escatológico (sobre o “Reino de Deus” e o “Filho do homem”) e a instrução ética para a vida cotidiana, bem presente na tradição sapiencial judaica. Eram instruções sapienciais e exortações decorrentes das preocupações e angústias cotidianas dos pobres camponeses da Galileia sob o domínio do império romano.

Seguindo a tradição judaica presente nos Salmos 22, 31, 73 etc., a bem-aventurança, por exemplo, é uma instrução e exortação sapiencial: Deus está ao lado dos pobres, aflitos e famintos, e o Reino de Deus é deles. Os ditos sapienciais do Evangelho Q, assim, teriam surgido da realidade sofrida do povo das margens do mar da Galileia. Além das críticas contra a sociedade escravagista do império, eles apresentam as possíveis orientações sapienciais para construir uma sociedade fraterna e solidária, o Reino de Deus:

Mas eu digo a vocês, que estão me escutando: amem seus inimigos, façam o bem a quem odeia vocês. Falem bem de quem fala mal de vocês. Rezem por aqueles que os caluniam. Quando alguém lhe bater numa face, ofereça também a outra. Se alguém tirar de você o manto, deixe que leve também a túnica. Dê a todo aquele que lhe pedir, e se alguém pegar o que é seu, não peça de volta. Tratem as pessoas como vocês gostariam que elas tratassem vocês (Lc 6,27-31).

“Amem seus inimigos” é orientação que se opõe diretamente ao princípio das autoridades da época: “olho por olho, dente por dente”. Rompe o círculo vicioso (espiral) da violência e vingança que provoca, justifica e alimenta segregação, extorsão, exploração, guerra etc. Quebra a sucessão de confrontos entre vencedores e vencidos. Assim, o amor aos inimigos é resistência e crítica contra a sabedoria dos grandes e, ao mesmo tempo, exige da vida dos camponeses sofridos a convivência fraterna e solidária, baseada na misericórdia e no perdão.

“Pai, santificado seja teu nome; venha teu Reino; o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia; perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair na tentação” (Lc 10,2-4). O amor ao próximo não é uma ideia nem mero discurso: é um modo concreto de viver a gratuidade e a partilha. Na realidade dos camponeses, uma das causas de endividamento é o empréstimo com juros abusivos, sobretudo para o pagamento de impostos. Ao contrário da economia de ganho, o dito sapiencial de Jesus propõe a economia da partilha e da solidariedade (cf. Lc 11,2-4).

“Nenhum servo pode servir a dois senhores. Porque, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13). O dito “servir ao dinheiro” reflete a realidade sofrida do povo da Palestina, sob domínio da política de helenização promovida pelo império, a qual se caracterizava pela busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra e se traduzia em aumento de latifúndios e no desenvolvimento das cidades prósperas (Decápolis), beneficiando a elite privilegiada com “dinheiro” (riqueza acumulada) originado da injustiça (fruto do tributo e do comércio abusivo). “Servir a Deus”, portanto, representa a luta pela partilha dos bens e da terra. No mundo do mercado global da atualidade, os seguidores da idolatria do dinheiro continuam gerando a morte pela fome e pela guerra.

“Grandes multidões acompanhavam Jesus. Ele se voltou e lhes disse: ‘Quem vem a mim e não deixa em segundo plano seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega sua própria cruz e não vem após mim, não pode ser meu discípulo’” (Lc 14,25-27). O trecho “não deixa em segundo plano seu próprio pai e mãe…”, ou, em outra tradução, “não odeia seu próprio pai e mãe…”, provoca, no mínimo, uma estranheza. Mas, levando em consideração a realidade da Palestina no tempo de Jesus, onde uma multidão endividada, sem terra e sem casa, perambula sem rumo (cf. Lc 6,17-19; Mc 3,7-12), esse dito sapiencial desperta no povo sofrido a capacidade de enfrentar por si os problemas de abandono, isolamento, violência, fome e doença. Na prática, o movimento de Jesus propõe a formação de nova família e novo lar, baseados na acolhida, na partilha e na solidariedade: “Eis minha mãe e meus irmãos. Pois quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,34b-35).

“Observem os lírios, como crescem. Não fiam nem tecem. E eu lhes digo: nem Salomão, com todo o seu esplendor, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é jogada no forno, quanto mais não fará por vocês, tão fracos na fé” (Lc 12,27-28). A fé no Deus criador implica um modo novo de viver a gratuidade e a partilha. A preocupação excessiva com os bens materiais, como no caso do império e dos herodianos, coloca o ser humano até no lugar de Deus, explorando os outros. É preciso agir e viver a existência humana segundo os valores do Reino de Deus: justiça, comunhão e fraternidade (cf. Lc 12,30-32).

Amar os inimigos, perdoar aos devedores, não servir ao dinheiro, deixar o pai e mãe em segundo lugar, ter fé em Deus, tudo isso promove os marginalizados e excluídos da sociedade e lhes devolve a vida. São ditos sapienciais que apontam o caminho para o povo sobreviver e defender a vida, construindo o Reino de Deus no cotidiano: “Com que eu poderia comparar o Reino de Deus? É como o fermento que uma mulher pegou e misturou em três medidas de farinha, até tudo ficar fermentado” (Lc 13,20-21).

Uma palavra final

 O que se pode dizer acerca da construção do reino da vida em nossa realidade de hoje, na qual os ímpios, com seus “pensamentos perversos”, continuam provocando exploração, destruição e morte? No Brasil, em cinco anos, ocorreram ao menos 194 eliminações de políticos e ativistas sociais, em decorrência de sua defesa da justiça e da vida. Por exemplo, o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco, ativista dos direitos humanos, no dia 14 de março deste ano, no Rio, ficará registrado na história como retrato da ação contínua dos “ímpios” contra os “justos”.

Pela leitura da Bíblia, detendo-nos especialmente na busca dos sábios, como o autor do livro da Sabedoria, podemos perceber que a justiça é o caminho da sabedoria e da vida. A solução é abrir-nos a Deus e aos outros, lutando pela justiça para libertar a todos para a vida: “Deus não fez a morte nem se alegra com a destruição dos seres vivos. Ele tudo criou para que exista. O mundo dos mortos não reina sobre a terra. Porque a justiça é imortal” (Sb 1,13-15). “Nunca é tarde demais para se converter, mas é urgente, é agora! Comecemos hoje!” (papa Francisco).

Centro Bíblico Verbo

O Centro Bíblico Verbo está a serviço do povo de Deus, desenvolvendo uma leitura exegética comunitária, ecumênica e popular dos textos bíblicos desde 1987 e oferecendo diversos cursos sobre a Bíblia.