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Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 26-33

São Romero da América Latina

Por Emerson Sbardelotti*

O artigo pretende apresentar, reapresentar e homenagear São Romero da América, na comemoração de 45 anos de seu martírio, em San Salvador, capital de El Salvador, em 24 de março de 1980; a força espiritual de sua palavra em defesa da vida, em nome da esperança, da justiça e da libertação.

 

1. MEMÓRIA E COMPROMISSO

“Por que se mata? Mata-se porque atrapalha. Pra mim, são verdadeiros mártires no sentido popular. Naturalmente, não estou entrando no sentido canônico, no qual ser mártir supõe um processo de autoridade suprema da Igreja, que o proclama mártir perante a Igreja universal. Respeito essa lei e nunca direi que os nossos padres assassinados foram martirizados, ainda não canonizados. Mas eles são mártires no sentido popular. São homens que pregaram precisamente esta encarnação da pobreza” (Romero, in Gonzalo, 2022, p. 28).

No dia 24 de março de 2025, comemoram-se 45 anos do martírio de São Romero da América, pastor e mártir nosso! Dom Oscar Arnulfo Romero y Galdámez foi o quarto arcebispo metropolitano de San Salvador, capital de El Salvador. Nasceu em Ciudad Barrios, distrito de San Miguel, em 15 de agosto de 1917, numa família pobre. Em 1930 entrou no seminário de San Miguel. Seus superiores mandaram-no a Roma, para estudar e doutorar-se na Pontifícia Universidade Gregoriana. Foi ordenado padre em 4 de abril de 1942. Em 25 de abril de 1970, foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador e, em 15 de outubro de 1974, bispo de Santiago de Maria. Em 3 de fevereiro de 1977, foi nomeado arcebispo de San Salvador. Escolhido como arcebispo por seu aparente conservadorismo, uma vez nomeado, aderiu aos ideais da não violência, posição que o levou a ser comparado a Mahatma Gandhi e a Martin Luther King.

Com a morte do amigo e padre jesuíta Rutilio Grande, em 12 de março de 1977, D. Oscar Romero passou a denunciar, em suas homilias dominicais, as numerosas violações aos direitos humanos em El Salvador e manifestou publicamente sua solidariedade com as vítimas da violência política, no contexto da guerra civil no país. Defendia a opção pelos pobres. Dom Romero afirmou que foi o exemplo do padre Rutilio Grande e sua morte que o convenceram a ficar firmemente ao lado dos pobres, dos esquecidos, dos perseguidos e dos injustiçados salvadorenhos. Depois da morte do amigo, ele passou a acusar frontalmente os capitalistas, os governantes, os militares e os ricos, responsabilizando-os por todos os males ocorridos no país.

No dia 24 de março de 1980, às 18 horas, o arcebispo de San Salvador celebrava missa na capela do Hospitalito,[1] hospital de religiosas que cuidavam de doentes com câncer. No momento da consagração, o tiro desfechado por um atirador de elite, escondido atrás da porta traseira da capela, atingiu o coração do pastor e matou-o imediatamente. Selou, assim, seu testemunho com sangue, como Jesus e todos os mártires cristãos. Entretanto, sua morte não pode ser desconectada de sua vida: foi o selo coerente desta. Calava-se assim a voz que defendia os pobres no regime cruel e sangrento que dominava El Salvador. E D. Romero passaria a estar vivo, a partir de então, no coração de seu povo, ao qual profetizou que ressuscitaria, se o matassem.

Em 23 de maio de 2015, foi declarado beato. O primeiro papa latino-americano reconheceu Romero como “mártir da Igreja”, pois havia sido assassinado por “ódio à fé”. Em 14 de outubro de 2018, foi canonizado. Sobre São Romero, disse o papa Francisco:

São Oscar Romero soube encarnar, com perfeição, a imagem do Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. Por isso, agora e, sobretudo, desde a sua canonização, vocês podem encontrar nele “exemplo e estímulo” no ministério que lhes foi confiado: exemplo de predileção, para os mais necessitados da misericórdia de Deus; estímulo para testemunhar o amor de Cristo e a solicitude pela Igreja. Que o santo bispo Romero os ajude a ser, para todos, sinais da unidade na pluralidade, que caracteriza o santo povo de Deus.

São Oscar Romero concebia o sacerdote entre dois grandes abismos: o da infinita misericórdia de Deus e o da infinita miséria dos homens. Queridos irmãos, esforcem-se, sem cessar, para realizar este infinito anseio de Deus de perdoar os homens, que se arrependem de suas misérias, e abrir os corações de seus irmãos à ternura do amor de Deus, também mediante a denúncia profética dos males do mundo.

Ele repetia, com vigor, que todo católico deve ser mártir, porque mártir significa dar testemunho da mensagem de Deus aos homens. Deus quer estar presente em nossas vidas e nos convida a anunciar a sua mensagem de liberdade para toda a humanidade. Somente nele podemos ser livres do pecado, do mal, do ódio em nossos corações; livres para amar e acolher o Senhor e nossos irmãos e irmãs. Esta verdadeira liberdade, aqui na terra, passa pela preocupação com o homem concreto, para despertar em cada coração
a esperança da salvação.

São Oscar Romero dizia que, sem Deus e sem o ministério da Igreja, isso não é possível. Certa vez, referiu-se à crisma como o “sacramento dos mártires”: sem a força do Espírito Santo, os primeiros cristãos não teriam resistido às provações da perseguição, não teriam morrido por Cristo.

A memória de São Oscar Romero é uma oportunidade excepcional para enviar uma mensagem de paz e reconciliação a todos os povos da América Latina (Papa […], 2018).

Para o povo de El Salvador e de toda a América Latina e Caribe, ele já era e é,
há muito tempo, o nosso santo, pastor e mártir.

2. MÁRTIR DA ESPERANÇA, DA JUSTIÇA E DA LIBERTAÇÃO

“Cristo está dizendo para cada um de nós: se você quer que a sua vida e a sua missão sejam produtivas como a minha, faça como eu. Converta-se em uma semente que se deixa ser enterrada. Deixe que o matem. Não tenha medo. Aqueles que evitam o sofrimento permanecerão sozinhos. Ninguém é mais solitário do que a pessoa egoísta. Mas se você der a sua vida por amor aos outros, como eu dou a minha por todos, você obterá uma grande colheita. Você sentirá uma profunda satisfação. Não tema a morte ou ameaças” (Romero, in Wright, 2011, p. 86).

Nosso mártir primeiro é Jesus de Nazaré, e com sangue de mártir não se pode brincar. Mártir é palavra forte, inquieta e inquietante. A palavra grega mártys significa “testemunha”. O/A mártir é a testemunha da fé, que seguiu, por toda sua vida, os passos de Jesus de Nazaré, até as últimas consequências.

Romero sabia que seu comportamento alimentava a esperança de uma vida mais livre, mais humana, e agia assim levado por sua missão de cristão e bispo; sabia que isso poderia conduzi-lo à morte. Pelas virtudes de sua vida, podemos defini-lo como mártir da esperança (Vitali, 2015, p. 10).

Esperança é todo sentimento que leva o ser humano a olhar para o futuro, para o incerto, sabendo que colheu bons frutos do passado, aprendeu com os erros e experimenta, no presente, o amparo nos desafios cotidianos desta vida.

Romero percebia que suas atitudes eram de um profeta comprometido com o cotidiano e a dignidade do povo, com a justiça feita ao povo:

Com a linguagem da justiça, estamos outra vez ante um tema central na Bíblia. Nela, o termo justiça remete à justiça social, ao reconhecimento dos direitos das pessoas, com um acento na condição dos mais pobres.

A linguagem profética tem em conta o dia a dia das injustiças, prosternações, maus-tratos, mortes, lucros, sofrimentos, alegrias que se dão na história. É uma linguagem que denuncia o que vai contra a mensagem do Reino e que anuncia sua presença na história. A respeito disso, e por experiência, Romero rechaçava: “Uma palavra muito espiritualista, sem compromisso com a história, que pode soar em qualquer parte do mundo porque não é de nenhuma parte, não cria problemas, nem conflitos” (Homilia, 10 dez. 1977). Espiritualista, não espiritual. Era consciente de que sua palavra clara, precisa e próxima à situação que atravessava seu povo lhe atrairia dificuldades e hostilidade, mas não pronunciá-la seria trair o Evangelho.

[…] A linguagem da gratuidade dá horizonte à justiça, coloca-a no marco do amor gratuito de Deus, do Deus amor. Deus não é amor porque ama, mas, sim, ama porque é amor. Não é justo porque faz justiça, mas, sim, faz justiça porque é justo. Por sua vez, a linguagem da justiça dá concreção histórica à da gratuidade e contemplativa e contribui para inseri-la na história de pessoas e povos (Gutierrez, in Bingemer, 2012, p. 49-50).

Justiça é uma virtude moral que inspira o respeito e o cumprimento dos direitos e deveres do ser humano, representando uma maneira de amenizar e erradicar os efeitos das desigualdades sociais na sociedade em que se vive.

Romero entendia que a libertação é fruto da união de todo o povo de Deus. Entendia que a libertação engloba toda a natureza:

A libertação que a Igreja espera é uma libertação cósmica. A Igreja sente, em si mesma, que é toda a natureza que está gemendo sob o jugo do pecado. Que belos cafezais, que belos riachos, que lindas plantações de algodão, que fazendas, que terras que Deus nos tem dado! Que natureza bela! Entretanto, quando a vemos gemer sob a opressão, sob a iniquidade, sob a injustiça, sob a agressão, isso faz a Igreja sofrer e a faz esperar uma libertação. Libertação que não seja só o bem-estar material, mas que seja o poder de um Deus que livrará das mãos pecadoras dos seres humanos uma natureza que, com a humanidade redimida, vá cantar a felicidade no Deus libertador (Romero, in Richard, 2005, p. 15-16).

Libertação é a ação de pôr-se em liberdade ou de conceder a liberdade a alguém. Implica o ser humano desenvolver uma ação segundo a sua própria vontade. A liberdade está relacionada com outras virtudes, como a justiça, a fraternidade e a igualdade.

Romero era uma pessoa simples, aberta, perspicaz, de grande sensibilidade para com as crianças, de gestos proféticos e compromisso. Soube acolher as pessoas com amor e atenção, conseguiu manter viva a esperança fiel do povo salvadorenho, soube sentir o cheiro das ovelhas. Em sintonia com o Evangelho, fez da sua Igreja local uma Igreja em saída, como pede o papa Francisco (Xavier; Sbardelotti, 2022, p. 180).

3. FORA DOS POBRES NÃO HÁ SALVAÇÃO!

A situação de nosso país é muito difícil, mas a figura de Cristo transfigurado, em plena Quaresma, está nos mostrando o caminho a seguir. O caminho da transformação de nosso povo não está longe. É o caminho que a Palavra de Deus nos aponta hoje: o caminho da cruz, do sacrifício, do sangue e da dor, mas com o olhar cheio de esperança na glória de Cristo, que é o Filho eleito pelo Pai para salvar o mundo. Ouçamos a voz de Cristo! Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso (Romero, in Souza; Boff; Casaldáliga, 1980, p. 179).

Jon Sobrino nos diz que a fórmula extra pauperes nulla salus (“fora dos pobres não há salvação”) é uma novidade, um escândalo e, certamente, algo contracultural. Trata-se de sacudida para levar absolutamente a sério a prostração de nosso mundo e o que há de salvação debaixo da história, que tantas vezes se ignora, não se compreende e se despreza (Sobrino, 2008, p. 14).

O teólogo espanhol relembra uma frase dita a ele por Romero: “Gloria Dei vivens pauper” (“A glória de Deus é o pobre que vive”). É a partir dos pobres que se reformula o mistério de Deus. Os pobres deste mundo são o lugar teológico (locus theologicus) do encontro com o Deus da vida, com o Deus libertador. Desse lugar teológico provém a salvação:

O camponês entendeu bem a opção de Monsenhor Romero pelos pobres: “Ele nos defendeu como pobres”. Monsenhor defendeu os pobres e oprimidos do país. Ele não optou apenas por eles. Esta defesa significou promover a organização popular e a assistência jurídica para defender os camponeses e as vítimas daqueles que os oprimiram e reprimiram. […] E certamente, semana após semana, ele defendeu os pobres e as vítimas com a verdade que proclamava publicamente nas suas homilias. Fica claro, então, que Monsenhor defendeu os oprimidos.

Mas você também precisa entender o que significa defender. Defender significa enfrentar e, quando necessário, lutar contra aqueles que atacam, empobrecem, perseguem, oprimem e reprimem. Para defender os pobres, Monsenhor confrontou aqueles que mentem e assassinam, sejam pessoas, instituições ou estruturas – e aceitou o preço a pagar. E a sua defesa foi primária, que foi muito além do que se convencionou entender por “defender um caso” com o objetivo, ainda, de “ganhar um caso”, como frequentemente aparece nos programas de televisão. Ganhar um caso nunca foi a perspectiva do Monsenhor, obviamente. Trabalhou e lutou para que a realidade maltratada, a justiça e a verdade vencessem. Mais a fundo, trabalhou e lutou para que algum dia os habituais não perdessem.

Monsenhor foi um defensor dos pobres com tudo o que era e tinha (Sobrino, in Xavier; Sbardelotti, 2022, p. 36).

Romero concebia e fazia questão de orientar, em sua atuação pastoral e profética, uma volta ao mundo dos pobres, um mundo real e concreto, assumindo quatro pontos importantes: 1) encarnação no mundo dos pobres; 2) anúncio da Boa-nova aos pobres; 3) compromisso com a defesa dos pobres; 4) Igreja perseguida por servir os pobres.

Encarnação no mundo dos pobres. A aproximação com o mundo dos pobres, entendida como encarnação e conversão para fora da Igreja.

O anúncio da Boa-nova aos pobres. O encontro com os pobres revelou a verdade central do Evangelho:  “Felizes os pobres no Espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). À luz da Palavra de Deus, a esperança e a ação segundo os valores do Reino.

Compromisso com a defesa dos pobres. A Igreja deve pôr-se sempre ao lado dos pobres e assumir, sem dúvida, a sua defesa.

Igreja perseguida por servir os pobres. A perseguição faz a Igreja testemunhar com maior garra a opção feita por Jesus de Nazaré em defesa dos pobres. A perseguição e ataques sempre estão e estarão ligados à defesa dos pobres.

Em sintonia com o pensamento de Romero e pedindo sua ajuda na caminhada, com alegria e esperança, cantemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BINGEMER, M. C. (org.). Dom Oscar Romero: mártir da libertação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Aparecida: Santuário, 2012.

GONZALO, L. A. São Romero dos direitos humanos: lições éticas, desafio educacional. São Paulo: Paulus, 2022.

IRMANDADE DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA. Celebrações martiriais: tríduo e celebração da festa de São Romero da América, pastor e mártir nosso! Goiânia: América, 2015.

NOVA Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2018.

PAPA: São Oscar Romero, exemplo e estímulo para os povos da América Latina. Vatican News, Vaticano, 15 out. 2018. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-10/papa-francisco-canonizacao-monsenhor-romero.html. Acesso em: 3 out. 2024.

RICHARD, P. A força espiritual da palavra de Dom Romero. São Paulo: Paulinas, 2005.

SOBRINO, J. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo: Paulinas, 2008.

SOUZA, L. A. G. de. BOFF, L.; CASALDÁLIGA, P. (org.). D. Oscar Romero, bispo e mártir: homilias. Petrópolis: Vozes, 1980.

VITALI, A. Oscar Romero: mártir da esperança. São Paulo: Paulinas, 2015.

WRIGHT, S. Oscar Romero e a comunhão dos santos. São Paulo: Paulus, 2011.

XAVIER, D. J.; SBARDELOTTI, E. (org.). San Romero de América: martirio, esperanza, liberación. Montevideo: Ameríndia, 2022.

[1]  Nome carinhoso como era conhecido o Hospital da Divina Providência pelo povo salvadorenho.

Emerson Sbardelotti*

*é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de pastoral leigo da paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Cobilândia, Vila Velha, arquidiocese de Vitória-ES. Membro do Grupo de Pesquisa Literatura, Religião e Teologia (Lerte). Membro da equipe de formação do Cebi-ES. Membro da equipe de formação do CNLB Regional Leste 3. E-mail: [email protected]