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Publicado em julho-agosto de 2020 - ano 61 - número 334 - pág.: 32-42

Riobaldo e o roteiro de Deus Grande Sertão: Veredas

Por Faustino Teixeira

Introdução

Tratamos da obra de Guimarães Rosa (1908-1967) Grande sertão: veredas (GSV), uma das mais importantes realizações da literatura brasileira no século XX, com destaque essencial na literatura mundial. Ela foi recentemente reeditada no Brasil pela Companhia das Letras, em sua 22ª edição (ROSA, 2019). Em âmbito internacional, o livro ganhou muitas edições, com destaque para a tradução alemã, com diversas edições sucessivas, e para a reconhecida tradução italiana, com 14 edições publicadas.

Como mostrou Walnice Nogueira Galvão, “Guimarães Rosa é único na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa língua literária alcançou seu mais alto patamar” (GALVÃO, 2000, p. 9). O romancista conseguiu, com sua obra, tocar o “centro da língua”, recorrendo com grande criatividade e ousadia à mais ampla “utilização de virtualidades” da narrativa portuguesa (BOLLE, 2004, p. 400; 442). Há algo de misterioso e místico em GSV, revelando uma parceria singular entre autor e obra, como um “casal de amantes”. Em entrevista a Günter Lorenz, em janeiro de 1965, Rosa dizia que “o bom escritor é um arquiteto da alma” (LORENZ, 2009, p. CLIV). Sem dúvida, sua relação com a linguagem tem um toque místico, de mistério, carregando um jeito peculiar de ruminação da palavra que o mantém em alerta por horas ou dias (LORENZ, 2009, p. XLVIII). Daí a grande dificuldade de traduzi-lo para outras línguas. Algo desse mistério se perde na tecnicidade da versão para outro idioma. Rosa assinala que, quando a dúvida o assoma, busca resposta não entre os doutos professores, mas entre os vaqueiros de Minas Gerais, “que são todos homens atilados” (LORENZ, 2009, p. XLVIII).

1. Uma saga metafísica

Grande sertão: veredas foi publicado em 1956, mas seu primeiro rascunho ficou pronto em julho de 1954. Ao falar sobre o livro no ano seguinte a seu lançamento, no Suplemento da Tribuna da Imprensa, Afonso Arinos de Melo Franco sublinhou:

Grande Sertão é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombra. No princípio, a gente entra e não vê nada. Só contornos confusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas, aos poucos, não é luz nova que chega: é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.

Não é um livro de fácil leitura, há que reconhecer. Isso em razão da peculiaridade da dinâmica da narrativa. Em verdade, um monólogo que retrata a interlocução do velho jagunço Riobaldo Tatarana com um homem da cidade. Nessa conversa, Riobaldo passa em revista seu passado, seus temores, suas crenças e seu mundo. A conversa é realizada mediante um curso de “associações de uma mente atormentada refletindo sobre algo que tende a lhe escapar, mas que aflora nas imagens do demônio, do sertão, do bem e do mal, na menção de bichos e pedras e de plantas, na evocação de acontecimentos corriqueiros ou excepcionais” (ROSENFIELD, 1992, p. 18).

Há que ter disciplina e paciência para a leitura do livro. O seu acesso é complexo, como lembram Mia Couto e Fernando Sabino. Como diz este último autor, “no princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais” (SABINO, 2019, p. 439). Quando se entra na sintonia do livro, o maravilhamento toma o leitor, como no caso de Clarice Lispector: “Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos […]. O livro está me dando uma reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo” (LISPECTOR, 2019, p. 440).

No processo de interlocução com o senhor da cidade, Riobaldo expressa sua dificuldade de narração: “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (p. 136).[1] E a obra vai se desenrolando num marco de ambiguidades que são impactantes: no campo da geografia, dos tipos sociais, das afetividades, das crenças e, sobretudo, da reflexão metafísica. A ambiguidade metafísica revela, talvez, o ponto nevrálgico da obra, como sinaliza Antônio Cândido: “Ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem” (CÂNDIDO, 1971, p. 134-135).

Um dos maiores clássicos na abordagem de GSV é Manuel Cavalcanti Proença, que escreveu o livro Trilhas no grande sertão em 1958 (PROENÇA, 1958). Ele distingue duas linhas paralelas na obra assinalada: uma objetiva, que aborda o itinerário de andanças e combates, e outra subjetiva, que sinaliza as “marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo” (PROENÇA, 1958, p. 6).

No presente artigo, vamos nos fixar nessa dimensão subjetiva, buscando sobretudo captar o traço espiritual de Riobaldo Tatarana em suas andanças pelo sertão. É um dado também presente no autor da obra, Guimarães Rosa. Ele dizia ao seu tradutor italiano, Eduardo Bizzarri, que era “profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estrito das fileiras de qualquer confissão e seita: antes, talvez como Riobaldo do Grande sertão: veredas, pertença eu a todas”. Guimarães se reconhece como um “místico” e, no seu ato de escrever, era capaz de descobrir “sempre um novo pedaço de infinito” (ROSA, 2009, p. XLI e XLVII).

Seu personagem, Riobaldo Tatarana, vai expressar essa religiosidade em diversas passagens do Grande sertão: veredas. Uma delas logo no início do livro:

O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo-é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião, para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue […]. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca (p. 19).

2. O eixo central do livro

O tema central de Grande sertão: veredas está enredado numa dimensão metafísica. Com base em Antônio Cândido, podemos sinalizar que o sertão, na verdade, representa o mundo, e os jagunços, cada um dos seres humanos. As preocupações que estão no livro são aquelas que todo ser humano lança ao longo de sua vida: são conflitos e enredos existenciais universais, “que ultrapassam as barreiras de uma região geográfica específica” (COUTINHO, 1993, p. 25). O livro toca o eixo, a “matéria vertente” (p. 77) que desvela o segredo do medo e da coragem. O que sabiamente Rosa aponta em suas obras é a “saga de um povo e os seus percalços na busca da contenção e superação da violência” (RONCARI, 2004, p. 296). O caminho que se desvela é o do amor. É ele que dribla o ódio: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura” (p. 226).

[1]  As páginas do livro Grande sertão: veredas, citadas neste artigo, serão sempre da obra ROSA, 2019.

Entre os passos que mais encantam o leitor ao deparar-se com Grande sertão: veredas, está a presença viva da natureza, nos seus miúdos detalhes: os buritis, os ventos, o mar, os pássaros e bichos, os rios. O São Francisco, por exemplo, vem mencionado mais de 50 vezes. O que Rosa amava nos rios era sua eternidade. Na sua visão, o rio era “uma palavra mágica para conjugar eternidade” (ROSA, 2009, p. XLI). Em entrevista a Günter Lorenz, assinalou que gostaria de ser um crocodilo vivendo no São Francisco. Esse animal é para ele o “magister da metafísica”, pois identifica no rio um “mar de sabedoria”. Seu desejo de ser um crocodilo vem assim explicado:

Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade (ROSA, 2009, p. XLI).

A grande questão disposta no livro é aquela que acompanha o itinerário de Riobaldo: existe ou não o demo? Para o narrador, a interrogação decisiva “é a existência dele: existe ou não? Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma” (CÂNDIDO, 2009, p. CLVI). Na conversa com o interlocutor, Riobaldo esclarece: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (p. 15). Esses conflitos de Riobaldo no plano subjetivo correspondem nitidamente aos conflitos universais pelos quais passa todo ser humano. Não há quem não tenha essa ambiguidade dentro de si. Faz parte do drama de estar situado no mundo, da busca do “sentido da vida” (BOLLE, 1973, p. 21). São dramas humanos com os quais a arte de Guimarães Rosa consegue sensibilizar o leitor.

3. Riobaldo peregrino

Desde que encontrou Reinaldo, aquele menino que estava “encostado numa árvore”, nas cercanias do porto do de-Janeiro, Riobaldo foi tomado por uma gana de viver, um toque de coragem para seguir em frente, com alegria. Movido por aqueles “olhos aos-grandes verdes” (p. 79) e pelo carinho de suas mãos, conheceu os mistérios da coragem para lidar com a vida e enfrentar suas mazelas. Foi ali, no “vacilo da canoa”, que sentiu o incentivo maior: “carece de ter coragem” (p. 82). Ao falar disso com seu interlocutor, diz Riobaldo:

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza (p. 230).

Em toda a epopeia de Tatarana, a coragem retorna, com todo o seu profundo significado. Foi também no encontro com o menino que ele despertou para a beleza da natureza: “Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim” (p. 26). Ensinou o carinho com o mato da beira, as muitas flores, os pássaros, o ar do tempo, a intensidade das águas (p. 80). E, depois, o pássaro-mistério, “manuelzinho-da-crôa”, símbolo maior da união. Nunca tinha ouvido falar dele antes ou parado para poder apreciá-lo. Era apenas mais um pássaro “para se pegar a espingarda e caçar”. Mediado pelo olhar singelo de Reinaldo, Riobaldo ampliou seu olhar para perceber a singularidade desse pássaro, que anda “sempre em casal” (p. 108). Dizia Reinaldo: “É preciso olhar para esses com um todo carinho” (p. 108).

Riobaldo foi tomado de amor por Reinaldo, aquele menino “diferente” (p. 84) que tinha sido educado para ser homem. E foi por ele que Riobaldo se encantou. Ele indaga ao seu interlocutor: “Por que foi que eu conheci aquele Menino? […]. O senhor pense outra vez, repense bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio defronte com o Menino?” (p. 84). A questão amorosa com Reinaldo (Diadorim) e as dúvidas que a acompanham vão estar sempre presentes no itinerário de Riobaldo.

A travessia metafísica de Riobaldo vai ser pontuada pela dúvida, uma caminhada em deriva, “mais largado nas mãos da sorte do que propriamente decidindo, sempre hesitante, e não só quanto ao caminho a seguir, mas também ao amor a se apegar, entre Otacília e Diadorim, que o leva a se perguntar: ‘Eu era dois diversos?’” (RONCARI, 2018, p. 107). Riobaldo oscilava sempre “entre o impulso e o projeto, a emoção e a razão, sabendo que nem se tratava de uma escolha entre o bem e o mal, o certo e o errado” (RONCARI, 2018, p. 107). Ele se dava conta de que “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza” (p. 300).

No caso do amor a Diadorim, o que se evidenciava era o traço de obscuridade e instabilidade. Não tinha a clareza do sentimento que o habitava diante de um amor que era mais “neblina” (p. 25). E não encontrava respaldo explícito em Diadorim, que guardava celibato, dando um clima singular a todo o romance: “Enquanto atrai pelo conjunto dos dons pessoais, pelo sortilégio das qualidades, principalmente pela feminilidade, repele pela energia moral acumulada desde sempre pelo voto da castidade” (GARBUGLIO, 1972, p. 72). Diadorim tinha nascido “para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor” (p. 432).

Por todo o romance, irrompe o carinho enorme de Riobaldo por Diadorim, e vice-versa. Era, contudo, um amor inalcançável: “Mas dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por detrás de tantos brios e armas […]. E tudo impossível” (p. 413). Diadorim era tomado substancialmente pela vontade da guerra (p. 22). Nas ocasiões em que se favorecia alguma aproximação mais íntima, ele, Diadorim, recuava com obstinação. Queria preservar apenas a amizade: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!…” (p. 212). Ou como em outra ocasião: “Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu…” (p. 308).

Na caminhada de Riobaldo, o objetivo mais forte era mostrar a força do amor contra a presença do ódio. No trajeto, a presença contínua das tentações, da maldade implícita da dinâmica do humano: “Eu tinha medo de homem humano” (p. 293). Riobaldo tinha consciência disso. Reconhecia que a maldade se encarnava nas pessoas, e o exemplo do demo em Hermógenes era o traço mais vivo. Tomou-se de espanto ao perceber que o ódio não tem razão, podendo aparecer em qualquer um e em qualquer momento (p.  284). Sabia igualmente que o caminho é “resvaloso”, mas com coragem enfrentava as adversidades: “Mas também cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!” (p.  226).

Para alcançar seu objetivo, cercou-se de todas as proteções e de todas as rezas. Esse recurso da oração estará sempre presente: a oração que ele faz e a oração que pede aos outros para fazerem. O importante era resguardar um espaço garantido de proteção. Seu caminho é captado como um “roteiro de Deus nas serras dos Gerais” (p. 222-223). Este é um traço de sua presença no tempo: o recurso às orações. Junto a ele as rezadeiras (p. 19), as rezas fortes (p. 162) das presenças amigas. A todo tempo volta-se para o cantinho interior e faz suas orações: “Me subi para fora do real; rezei!” (p. 247); “A reza reganhei, com um fervor (p. 283); “O existir da alma é a reza… Quando estou rezando, estou fora da sujidade, à parte de toda loucura” (p. 432); “Tudo o que não é oração, é maluqueira” (p. 348). Tinha também a seu favor todas as Nossas Senhoras sertanejas, particularmente Nossa Senhora da Abadia, senhora de todas as forças e proteções: “Ah, só Ela me vale; mas vale por um mar sem fim” (p. 219). Precisava, e como, ter “todos os pastos demarcados” (p. 162), mantendo sempre aceso o nomos significador. Seu sonho era ver “uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão” (p. 347).

Dizia, com rigor de alma, que todo jagunço quer o céu, e não o inferno. Nos seus sonhos, vislumbrava “o fim das fomes” (p. 313). Nesse sentido, buscava agarrar-se ao Deus sertanejo, astuto e atento: “O diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza” (p. 24).

Riobaldo percebia, e isso era sua salvação, a presença de uma vozinha interior, que agia como um anjo da guarda, uma vozinha que era “forte demais”, brotada de um “fundo onde o demônio não conseguiria entrar” (RONCARI, 2018, p. 105). Buscava agarrar-se a essa voz, ainda que a outra, igualmente potente, atentasse sua vontade e razão. Era a voz do demo, que trazia consigo “o inferno feio deste mundo” (p. 281). O demônio age nas gretas, nos intervalos, aproveitando espertamente os vacilos na caminhada. Como diz Walnice Galvão:

O Diabo ganha pequenas paradas, rápidas e logo concluídas dentro do grande fluir de tudo que existe e que é Deus; mas nessas pequenas paradas pode se danar um homem. O Diabo implica na certeza dessas pequenas paradas que se ganha ou se tenta ganhar, dentro da incerteza geral que é o fluir, onde tudo se transforma, onde uma coisa sai de outra, e desta outra vai sair outra, e assim sucessivamente (GALVÃO, 2019, p. CCXIII).

Esse demo atormenta Riobaldo todo o tempo, firmando a ambiguidade que marca sua trajetória, a fim de cessar o fluir do movimento. Daí Riobaldo ser compreendido muitas vezes como o homem dos “avessos”. A todo momento mantinha acesa sua atenção para não deixar o demo “botar cela” ou governar sua decisão. Em circunstâncias fundamentais, sova sua intimidade, visando a um caminho alternativo.

O inferno estava ali, sempre à disposição, mas as rezas fortes contrapunham seus desígnios. Havia um caminho mais importante a seguir: de “recondução das coisas a si próprias”. Daí a importância da coragem recorrente: “O espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte vai não vendo o que é bonito e bom” (p. 138).

Para alcançar seu objetivo, quase impossível, Riobaldo acaba fazendo o pacto com o demo. Este surge como “o acicate permanente, estímulo para viver além do bem e do mal” (CÂNDIDO, 1971, p. 137). Aliás, este é o problema nuclear de todo o romance: existe ou não o demo? Diante da implacável presença de Hermógenes, inimigo maior, que também tinha feito o pacto, Riobaldo busca um caminho semelhante, embora não acreditasse muito nele “mercês a Deus”. Resolve, então, partir para a empreitada, visitando antes seu mundo interior: “Deixa a aguinha das grotas gruguejar sozinha” (p. 301). E parte carregando a alegria, pois tinha ciência de que “somente com alegria é que a gente realiza bem – mesmo as tristes ações” (p. 301).

Nas Veredas-Mortas fez a experiência da presença do demo. Não uma presença física, mas um “clima” amedrontador. Com a noite, a sensação de um “friúme” desestruturador. Do mais fundo de seu tremor, conseguiu tirar as “espantosas palavras” que convocavam a presença do “Pai da Mentira”. Foi tomado pelo “ror de nada”, pelo horror do nada. O demo não apareceu, somente um vento diverso no chão da encruzilhada. Naquele derradeiro momento, Riobaldo se viu inteiramente desarmado e narra ao seu interlocutor o ocorrido: “Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!” (p. 303). Pôde então perceber que “ser forte é parar quieto; permanecer” (p. 303). Ao narrar o ocorrido, Riobaldo não se deu conta do tempo atravessado: “O não sei quanto tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança” (p. 305).

Aos poucos, com a passagem do tempo e o anúncio da manhã, Riobaldo foi tomado por nova sensação. Não conseguiu fugir à “evidência da própria mudança, após a noite em que desejou vê-lo; depois dela é que foi capaz de realizar coisas prodigiosas, inclusive a referida travessia do Sussuarão” (CÂNDIDO, 1971, p. 136). Junto com o amanhecer, o sentimento de um orvalhar: “Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão” (p. 305).

Era como num rito de iniciação, no qual Riobaldo se transforma em Urutu Branco e ganha energias singulares para atravessar o Liso do Sussuarão e enfrentar as batalhas seguintes, culminadas no embate final do Tamanduá-Tão, quando morrem Hermógenes e Diadorim. Como indica Walnice Galvão:

na hora do combate final, o Diabo está na rua no meio do redemoinho, mas também está ao lado de Riobaldo e dentro dele. Ao cabo, Riobaldo consegue cumprir sua missão de acabar com o Hermógenes. Mas o Diabo cumpre o prometido com as tramoias que a tradição lhe atribui, ou seja, da maneira mais dolorosa e mais inesperada para aquele que lhe vendeu a alma: Riobaldo acaba com o Hermógenes, mas no mesmo ato Diadorim morre (GALVÃO, 2019, p. CCXV).

O romance, que tinha começado com a expressão “Nonada”, termina com a expressão “Travessia”. E termina mantendo aceso o paradoxo que angustiou toda a epopeia de Tatarana: existe ou não o demo? O narrador, ao final, sublinha: “Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano.[2] Travessia” (p. 435).

Depois da última batalha, Riobaldo resolve largar a jagunçagem, dirigindo-se para a grande cidade. Por recomendação de Zé Bebelo, o chefe jagunço e amigo, vai se encontrar com o compadre Quelemém, pessoa de grande rareza, de espiritualidade plural e acolhedora: “perto dele todo-o-mundo para sossegado, e sorridente, bondoso” (p. 434). O encontro vai ser confortador, dando novo significado à vida. Termina sua história como fazendeiro, junto com a amada Otacília, numa das duas fazendas herdadas de seu padrinho Selorico Mendes, e é ali que faz a narração de toda a sua trajetória. Ao final, uma réstia de esperança: “Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do céu” (p. 426).

Referências bibliográficas

BOLLE, Willi. Fórmula e fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973.

______. Grande sertão.br. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.

CÂNDIDO, Antônio. Tese e antítese. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

______. O homem dos avessos. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

COUTINHO, Eduardo. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas. Bahia: Fundação Casa Jorge Amado, 1993.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000.

______. O certo no incerto: o pactário. In: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

GARBUGLIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972.

LISPECTOR, Clarice. Cartas. In: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

PROENÇA, M. Cavalcante. Trilhas no grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1958.

RONCARI, Luiz. O Brasil de Rosa: o amor e o poder. São Paulo: Unesp/Fapesp, 2004.

ROSA, João Guimarães. Ficção completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

______. Grande sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Grande sertão: veredas: roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1992.

SABINO, Fernando. Cartas. In: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[1]  As páginas do livro Grande sertão: veredas, citadas neste artigo, serão sempre da obra ROSA, 2019.

[2]  Ver a respeito: COUTINHO, Eduardo F. Grande sertão: veredas. Travessias. São Paulo: Realizações, 2013, p. 98.

Faustino Teixeira

é professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). É pesquisador do CNPq. Dentre suas linhas de pesquisa, destacam-se: teologia das religiões, diálogo inter-religioso e mística comparada das religiões. É autor de vários livros, entre os quais Buscadores cristãos no diálogo com o islã, publicado pela Paulus. E-mail: [email protected]