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Publicado em maio-junho de 2025 - ano 66 - número 363 - pp. 26-34

PERSPECTIVAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS A PARTIR DA ENCÍCLICA LAUDATO SI’

Por Prof. Eduardo Brasileiro*

O modelo econômico e político constitui o coração da crise que acelera a emergência climática e a devastação da biodiversidade. Laudato Si’ mi Signore (Louvado sejas, meu senhor)! Assim exclama o papa Francisco em sua carta encíclica para toda a humanidade. A humanidade está em deslocamento urgente, caótico, e com ela milhares de seres vivos, animais, florestas e biomas. É urgente a transformação socioambiental mediante um chamado à ecologia integral, a qual consolidará processos de relacionalidade que somente nós poderemos iniciar.

“Não é o tempo do teu julgamento [Senhor], mas do nosso julgamento: o tempo de escolher o que conta e o que passa, de separar o que é necessário do que não é. É hora de redefinir o curso da vida para ti, Senhor, e para os outros. E podemos olhar para muitos companheiros de viagem exemplares, que, com medo, reagiram dando a vida […]. Percebemos que não podemos avançar cada um por si, mas apenas juntos […]. A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa expostas essas falsas e supérfluas seguranças com que construímos as nossas agendas, os nossos projetos, nossos hábitos e prioridades. […] Com a tempestade, desapareceu o truque daqueles estereótipos com os quais mascarávamos os nossos ‘egos’ sempre preocupados com a própria imagem; e mais uma vez foi descoberta aquela (bendita) pertença comum da qual não podemos escapar: a pertença como irmãos.” (Papa Francisco. Meditação durante o momento extraordinário de oração em tempos de epidemia, 27 mar. 2020).

A Carta Encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, é um dos documentos mais importantes a serem estudados neste século e pode-se afirmar com tranquilidade que é o documento mais marcante de seu pontificado. Ao abordar um tema para cuja seriedade ele havia voltado sua atenção fazia poucos anos, o papa Francisco assumiu um protagonismo exemplar em construir um processo incontornável na história da Igreja Católica: a conversão ecológica.

Antes de prosseguir, é essencial reconhecer o contexto histórico em que a sociedade pluralista começou a abraçar os impulsos que culminaram em uma virada ecológica. Essa transformação é inegável, sobretudo se olharmos algumas décadas no passado. A agenda ambiental ganhou relevância global especialmente a partir da década de 1990, com marcos como a Conferência do Clima Rio-92, onde 179 países se comprometeram com a assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Esses tratados não surgiram no vácuo, mas representaram o ponto de convergência de esforços de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e lideranças políticas ao longo das décadas anteriores, que já alertavam para a urgência de enfrentar a crise ambiental global.

1. A virada ecológica e o confronto econômico e político

A urgência do debate ambiental como eixo central na organização da vida coletiva emerge diante do avanço das teorias desenvolvimentistas e dos impressionantes índices de produção industrial das últimas décadas. Esse cenário reflete um modelo econômico profundamente enraizado no neoextrativismo – abrangendo setores como mineração, agronegócio, indústria sucroalcooleira e de papel e celulose, ou até mesmo corporações específicas como a Coca-Cola, a qual recentemente secou nascentes na região de Itabirito em Minas Gerais[1] –, que prioriza a acumulação de capital em detrimento da sustentabilidade ecológica e social. Sob o imperativo do crescimento econômico, a agenda neoliberal consolidou-se por meio de pactos fiscais e consensos globais, aprofundando desigualdades e fragilizando sistematicamente compromissos socioambientais.

O leitor, contudo, poderá questionar: este é um debate político ou econômico? Convenientemente, o neoliberalismo soube introduzir, com o avanço da ciência econômica, uma feição de neutralidade nos debates econômicos, o que quer dizer que existe uma economia sem influência da política. Por exemplo, têm-se intenções, como reduzir a devastação ambiental, mas isso precisa funcionar dentro da regra econômica que envolve a manutenção dos interesses econômicos preestabelecidos. Infelizmente, a cultura produzida dentro do neoliberalismo aponta para um convencimento social de que a economia é uma regra de ouro, não se muda, e se deve aceitar a lógica desigual e de exploração sob a qual o mundo se encontra.

Karl Polanyi, economista falecido nos anos 1960, autor do clássico A grande transformação, traz o anseio pela libertação da terra, do trabalho e do dinheiro em semelhança com os três “Ts” de Francisco: terra, teto e trabalho. Polanyi apontava que a tentativa de separar a economia da esfera política e tratá-la como um sistema independente, como ocorre no capitalismo de mercado, resulta em crises sociais e ambientais, pois ignora a complexidade das interações humanas e os limites impostos pela natureza.

Ele também destaca que os mercados livres não surgem espontaneamente, mas são estabelecidos por meio de processos políticos, muitas vezes à custa de profundas mudanças sociais, como a desintegração das comunidades tradicionais e a mercantilização de elementos fundamentais da vida. Nesse sentido, Polanyi enfatiza que a economia nunca pode ser verdadeiramente “livre” da política, pois sua organização depende de decisões políticas sobre como os recursos são alocados e como as instituições econômicas são estruturadas. Desse modo, ao empreender essas análises aqui, o fazemos exigindo uma retomada de responsabilidade com a Casa Comum. Diante do exposto, toda economia é política, não se reflete em separado.

Na década de 1980, com o famoso Consenso de Washington, promovido por instituições como o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA, deu-se início à hegemonia neoliberal. Essa agenda impôs medidas de liberalização comercial, privatizações e austeridade fiscal, instrumentalizando o controle sobre países em desenvolvimento, particularmente na América Latina. Posteriormente, o Consenso das Commodities dos anos 2000 operou como um mecanismo de perpetuação das dependências estruturais do Sul Global. Sob o pretexto de crescimento, as exportações de commodities foram moldadas para atender às demandas das potências centrais, reforçando a lógica do neoextrativismo como um modelo econômico explorador e subordinado.

Atualmente, vivemos sob o que pode ser chamado de Consenso da Descarbonização, articulado pela agenda da economia verde. Embora promova tecnologias importantes, como captura de carbono (CCS), biocombustíveis e geoengenharia, essa abordagem frequentemente falha em confrontar as raízes estruturais das mudanças climáticas: o consumo desenfreado e a exploração indiscriminada da natureza. Tecnologias “verdes”, muitas vezes exaltadas como soluções, podem implicar novos impactos ambientais, como maior uso de bens naturais e produção de resíduos tóxicos, perpetuando, assim, a lógica capitalista de externalização dos custos sociais e ecológicos.

O “paradigma tecnocrático” ao qual Francisco se refere longamente na encíclica Laudato Si’ (n. 101-122) parte justamente dessa leitura sobre o sequestro da tecnologia pelas big techs (gigantes da tecnologia), pela concentração de poder que há no mundo hoje. Sabemos, com base em nossa formação, que a ciência é a visão de tudo e a tecnologia é a aplicação. Hoje vemos o inverso, a instrumentalização da ciência para o capital, gerando uma “aliança entre economia e tecnologia (que) acaba por deixar de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos” (LS 54).

Consensos são chaves comuns de interpretação. Por consensos entende-se a abertura de portas de debates travados. Os consensos neoliberais acima expostos se utilizaram de ondas em todos os países por meio da mobilização de interesses comuns aos cidadãos, como é o caso da economia verde. A introdução da sustentabilidade se dá nessa disputa entre uma agenda tímida, como se fosse um tema, e uma agenda de compromissos sociotransformadores para uma real virada ecológica. Para os mercados, diferentemente de um processo que exige a reflexão, a revisão de práticas e o aprofundamento de um plano, a sustentabilidade era um engodo que deveria ser acolhido com o mínimo de esforço possível.

No Brasil, a resistência ao avanço neoliberal ganha força graças à atuação crescente dos movimentos indígenas e sua aliança com setores do movimento ambientalista. Em escala global, a década de 2010 testemunhou o amadurecimento dos movimentos ambientalistas, com o surgimento de figuras atrativas, como é o caso da jovem Greta Thunberg, desafiando lideranças políticas a enfrentar a crise climática de forma concreta.

A encíclica Laudato Si’ oferece um marco importante nesse debate. Surgindo em 2015, reflete um novo compromisso da Igreja Católica com o acolhimento e o diálogo com setores importantes da sociedade. O papa Francisco põe para dialogar com ele nessa encíclica a indiana Vandana Shiva, o ecoteólogo Leonardo Boff, inspirado na Carta da Terra, lideranças de movimentos populares e indígenas e outros cientistas, enfatizando que a luta pelos pobres e pela terra é inseparável, consolidando uma postura crítica ao modelo econômico hegemônico (Boff, 2012, p. 79).

2. A conversão ecológica e a conversão da Igreja aos pobres e à terra

O significado principal buscado na encíclica LS ou nos desdobramentos dela é compreender os caminhos para construir uma ecologia integral. O cardeal Parolin, em um discurso sobre ecologia integral, refletindo sobre as palavras do papa Francisco, afirma que ela “deve ser entendida como um poliedro através do qual se pode adotar uma nova visão do mundo e analisar as diferentes questões que questionam a humanidade” (Parolin, 2020). O poliedro está na compreensão multidimensional da crise e das oportunidades. A crise ecológica não pode ser dissociada da crise social: “Não se pode sustentar um desenvolvimento autêntico e integral se não há a percepção de que a nossa vida está entrelaçada com a vida de todas as outras criaturas” (LS 137). Francisco critica um modelo econômico que exclui os mais vulneráveis e explora a natureza sem considerar seus limites.  A “cultura do descarte”, denunciada pelo papa, não se reduz apenas à dimensão do consumo, vai muito mais além, aponta para os humanos descartados e, com eles, todos os outros seres vivos (LS 22).

Em vista disso, a conversão ecológica demanda não apenas mudanças práticas, mas também profunda revisão de paradigma: trata-se da conversão da natureza de objeto a sujeito de direito, assim como o humano (Carvalho; Magalhães, 2024). Esse reconhecimento implica reestruturar relações socioeconômicas e culturais, colocando a dignidade da Terra e dos ecossistemas no centro das decisões políticas e econômicas, rompendo com a lógica de exploração e consumo que os reduz a meros recursos.

Sob a lógica da natureza não mercantilizada, Francisco alerta para a perda de biodiversidade como um dos sintomas mais alarmantes de um sistema econômico predatório, afirmando: “Os recursos da terra estão sendo depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia e a atividade comercial e produtiva” (LS 32). A prática do neoextrativismo, muitas vezes incentivada em nome do desenvolvimento, é duramente criticada, por seus impactos irreversíveis.

Para enfrentar as desigualdades, o pontífice sublinha a necessidade de justiça distributiva, defendendo um modelo econômico que priorize a inclusão social. Ele aponta: “A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano” (LS 109). Aqui, ele sugere que o lucro desmedido deva ser substituído por uma economia orientada para o bem comum, capaz de equilibrar as necessidades humanas e a preservação ambiental. No livro Vamos sonhar juntos (2020, p. 143), Francisco afirma: “A renda básica universal poderia redefinir as relações no mercado laboral, garantindo às pessoas a dignidade de rejeitar condições de trabalho que as aprisionam na pobreza”.

A LS apresenta uma crítica profunda às dinâmicas econômicas e políticas do nosso tempo, chamando a atenção para as interconexões entre a crise ambiental e a desigualdade social. No âmbito político-­econômico, denuncia a exploração predatória dos recursos naturais, impulsionada por uma lógica imediatista de mercado que prioriza o lucro em detrimento da preservação da biodiversidade e do bem-estar das gerações futuras (LS 32). Aponta a fraqueza das reações políticas globais frente à crise, destacando a subordinação da política aos interesses econômicos e tecnológicos, que frequentemente põem o bem comum em segundo plano (LS 54). O documento também critica o paradigma tecnocrático que domina as relações econômicas, enfatizando que o crescimento tecnológico, desvinculado de valores éticos e da inclusão social, agrava as desigualdades e a destruição ambiental (LS 105; 109). Além disso, condena a “cultura do relativismo” que sustenta práticas de exploração humana e ambiental, propondo que uma mudança cultural e ética é essencial para transformar a economia e a política (LS 123).

A encíclica defende uma economia diversificada e inclusiva, que valorize o trabalho humano como caminho para a dignidade e promova sistemas produtivos sustentáveis, em contraponto ao modelo de larga escala que marginaliza pequenos produtores e concentra riquezas (LS 128-129), e então prossegue: “a solução dos problemas estruturais do planeta não pode ser realizada por meio de um mero ajuste técnico ou econômico”, mas exige uma mudança cultural e espiritual profunda (LS 9).

O pacto global por outra economia proposto por Francisco em 1º de maio de 2019, a Economia de Francisco, busca costurar essa trama, com o interesse de que jovens no mundo inteiro se empenhem em formular outras experiências produtivas, colaborativas, de gestão das comunidades e de cooperação entre Estado e empresas. No Brasil, em alguns países da América Latina e até em Portugal, a Economia de Francisco e Clara (Brasileiro, 2023) aponta uma série de ações a serem assumidas por comunidades, paróquias, dioceses e pelo conjunto da sociedade civil, como já publicado nesta Vida Pastoral.[2]

A LS é um convite para a conversão ecológica aos católicos e cristãos, para o cultivo de elementos que foram centrais em sua tradição e se perderam com o passar do segundo milênio: o cultivo da Casa Comum, a defesa dos mais pobres e a acolhida a toda e qualquer diversidade. Como um ecossistema, é também a busca por uma economia e uma política de interdependências e ecodependências.

O papa Francisco adota a perspectiva franciscana ao propor uma “ecologia integral” que reconhece a interdependência entre todos os seres e convida à conversão ecológica, unindo cuidado ambiental, justiça social e espiritualidade. Essa visão dialoga com outros documentos do magistério da Igreja, como a encíclica Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI, que destacou a relação entre o desenvolvimento humano integral e o respeito pela criação, e Pacem in Terris (1963), de São João XXIII, que já apontava a necessidade de ações globais para enfrentar desafios que transcendem fronteiras. Também a Sollicitudo Rei Socialis (1987), de São João Paulo II, advertiu sobre os perigos do consumismo e do impacto ambiental das práticas econômicas injustas, antecipando questões aprofundadas na Laudato Si’. Esses documentos reforçam a tradição da Igreja de associar a ética do cuidado com a criação ao compromisso com a dignidade humana e a justiça.

Ao ressaltar o papel da Igreja na promoção dessa transformação com base no Evangelho (Aquino Júnior, 2016), a LS inova a partir da pedagogia dos compromissos e da aliança com o magistério presente na Doutrina Social da Igreja. Francisco convoca a humanidade para outro pacto civilizatório, ancorado no cuidado com a Casa Comum e no compromisso com os pobres, afirmando que a justiça social e a ambiental são inseparáveis. A crítica dirige-se ao paradigma tecnocrático e à lógica mercantilista, alinhando-se à tradição latino-americana de uma teologia que articula fé e compromisso com a transformação social (Brighenti, 2019).

Francisco traz para o centro de sua reflexão na LS os pobres em uma sociedade carregada não só pelas desigualdades, mas também pelas bolhas da sociedade de consumo que criam impressões de que o número de pobres é menor do que se fala e que a classe média não é pobre. Essa problemática social é confrontada, entre tantas manifestações e ações, por um papa que reinsere os pobres no calendário da Igreja (Dia Mundial dos Pobres) e que faz um corpo eclesial altamente aburguesado com o passar de décadas (tendo em vista somente o pontificado de São João Paulo II) começar a se mover entre incômodos e suspeitas. A radicalidade e o paradigma franciscanos são trazidos à baila e experimentam importante retomada na trilha da Igreja.

A pobreza não é apenas uma questão econômica, mas também uma condição política e existencial, intrinsecamente ligada a um sistema que exclui aqueles que não se ajustam à lógica do mercado. A pobreza está atrelada à redução da vida humana e à negação de uma vida digna, sendo, portanto, uma questão que transcende as condições materiais e adentra o campo da ética e da política. Nesse contexto, o modelo econômico atual, com seu foco na maximização do lucro, contribui para a marginalização e exploração de vastas camadas da população e, ao mesmo tempo, para a destruição do meio ambiente. Giorgio Agamben (2014), em seus estudos sobre o franciscanismo, em que reflete sobre a relação entre pobreza e vida monástica, tece uma crítica ao sistema econômico atual, refletindo sobre como a pobreza se articula não apenas com a exclusão social, mas também com uma vida ética e comunitária (LS 180).

Esse raciocínio encontra ecos nas críticas da LS, que também desafia a economia de mercado e o modelo de crescimento ilimitado. A encíclica denuncia a exploração sistêmica da produção neoliberal, seja pelo neoextrativismo, seja pela ideologia fiscal, que formulou uma amarra nos orçamentos dos países, inviabilizando transformações reais na vida dos pobres. A LS propõe uma reconexão com formas de vida mais simples e com um respeito profundo pela criação. Ao valorar a simplicidade, não nega a crítica ao empobrecimento causado pelas implicações desse modelo na vida cotidiana, como o endividamento, a precarização do trabalho e uma série de medidas que aprofundaram as desigualdades globais atuais, mas, sobretudo, elabora uma regra de vida que não se submete à lógica de mercado e abre um campo de reflexão que pode ser útil para aprofundar as bases de uma ecologia integral, em que a mais fiel conversão exige a vivência de uma ecologia da vida.

3. A ecologia integral em busca da sobriedade feliz e de uma multilateralidade dos debaixo

A encíclica Laudato Si’ oferece uma reflexão que vai além da denúncia de práticas destrutivas e promove profunda reorientação cultural, espiritual e econômica, em busca de uma “sobriedade feliz”. Esse conceito é expresso como a capacidade de viver com menos, mas de forma mais plena, realçando que “a sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora” (LS 223). Sobriedade feliz implica reconhecer que o consumismo e o crescimento econômico ilimitado não são compatíveis com a preservação do planeta e com o bem-estar humano, propondo, em seu lugar, uma vida mais simples e voltada para valores comunitários e ecológicos.

A crise do multilateralismo global, evidenciada pela incapacidade de grandes instituições internacionais de oferecer respostas concretas e urgentes à crise climática, destaca a necessidade de uma reconfiguração do papel das comunidades. Na LS, Francisco enfatiza que “as soluções não podem vir apenas de um único modo de interpretar e transformar a realidade” (LS 63), mas exigem uma articulação de saberes e práticas locais. Desse apontamento começaram a surgir muitas comunidades Laudato Si’, mas tais comunidades têm se limitado a locais de vivências da Casa Comum, sem se articular com redes de justiça socioambiental. Nesse sentido, a proposta de um “multilateralismo dos debaixo” surge como um caminho, onde comunidades, povos originários, territórios organizados devem propor nova forma de governança socioambiental, submetendo a governança econômica ao cuidado dos biomas, à defesa de toda a biodiversidade. Comunidades no Brasil e em várias partes do mundo já se organizam nesse sentido: são os movimentos populares, que, no acúmulo de suas lutas, exigem a governança dos bairros e territórios, sobretudo diante da transição energética e de outros modelos que envolvem grandes empreendimentos do capital, de cujos impactos as comunidades não estão imunes. Essas comunidades têm sido historicamente as guardiãs dos territórios mais ameaçados e possuem saberes ancestrais que, combinados com soluções tecnológicas, podem apontar caminhos mais sustentáveis.

Na prática, essa multilateralidade dos debaixo é construída com base no fortalecimento de redes de solidariedade e na resistência local e global. Comunidades indígenas, movimentos sociais e organizações populares demonstram como a ação coletiva pode confrontar as lógicas predatórias do capitalismo e propor modelos alternativos de convivência com o planeta. A Laudato Si’ reconhece explicitamente essa força transformadora: “A partir do nível local, é possível criar uma pressão sobre as instituições públicas, inclusive internacionais, para que elas considerem sempre o meio ambiente e os pobres” (LS 179).

A busca por uma ecologia integral e por uma economia que respeite a vida passa pela superação das hierarquias impostas pelo Antropoceno. Como destaca a encíclica, é imprescindível que as ações políticas e econômicas sejam orientadas pela ética da interdependência e da solidariedade universal (LS 158). Nessa perspectiva, a inclusão dos povos indígenas, das mulheres e das comunidades marginalizadas no processo decisório não é apenas necessária, mas também uma exigência ética para reverter os impactos da crise climática.

Finalmente, a ideia de sobriedade feliz e de aliança (multilateralidade) dos debaixo nos convida a abandonar o paradigma competitivo e predatório que rege as relações internacionais e a economia global. Como destaca a encíclica, “os limites impostos por uma visão fragmentada da realidade impedem de captar o entrelaçamento das relações que existem entre as coisas” (LS 138). A integração de saberes, culturas e práticas comunitárias pode ser a chave para uma governança planetária que esteja à altura dos desafios do nosso tempo.

A partir da perspectiva dos povos originários, questiona-se a separação entre natureza e cultura e promovem-se alternativas éticas e políticas alinhadas à ecologia da vida. Ou seja, a experiência de uma ecologia integral está em articular cosmologias indígenas, saberes periféricos, ancestralidades, pisar no chão firme da fé inculturada e pôr-se a serviço dos irmãos. Abrir caminhos para imaginar futuros que respeitem a interdependência e a ecodependência entre todos os seres.

4. Como dizer “Louvado sejas, meu Senhor” hoje?

A chave para essa porta é comunitária. Muitos agrupamentos de pessoas em torno dos compromissos da Laudato Si’ têm assumido a construção do louvor à Casa Comum. Espaços e agrupamentos têm-se esforçado em dizer “Louvado sejas, meu Senhor” a partir do empenho gerador dessa encíclica. Bebem de sua esperança movimentos eclesiais, sociais e ambientalistas, unidos porque tudo está interligado (LS 16). Essas iniciativas, surgidas sob a inspiração da Laudato Si’, são expressões concretas de uma Igreja que tem aprendido e precisa aprender mais a ser guardiã da criação e aliada dos pobres, buscando traduzir a espiritualidade ecológica em ações transformadoras no mundo.

“Os pobres e a terra estão bradando:

Senhor, tomai-nos

sob o vosso poder e a vossa luz,

para proteger cada vida,

para preparar um futuro melhor,

para que venha o vosso Reino

de justiça, paz, amor e beleza.

Louvado sejas!

Amém.”

(Papa Francisco, Laudato Si’, trecho final da oração pela nossa terra)

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. Altíssima pobreza: meditações sobre a condição do pobre. São Paulo: Boitempo, 2014.

AQUINO JÚNIOR, F. de. Ecologia integral: por uma teologia a partir da “Laudato Si’”. São Paulo: Paulinas, 2016.

BOFF, L. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis: Vozes, 2012.

BRASILEIRO, E. (org.). Realmar a economia: a Economia de Francisco e Clara. São Paulo: Paulus, 2023.

BRIGHENTI, A. A Igreja e a ecologia integral: desafios e perspectivas à luz da “Laudato Si’”. São Paulo: Paulus, 2019.

CARVALHO, F.  A.; MAGALHÃES, J. L. Q. Ecologia jurídica: repensando as bases do direito para a proteção da vida. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2024.

FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum. Vaticano, 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html. Acesso em: 11 dez. 2024.

FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Tradução: Austen Ivereigh. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

PAROLIN, Cardeal P. Os marcos da ecologia integral para uma economia humana. Conferência Internacional da Fundação Centesimus Annus Pro Pontífice, 2020. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/parolin/2020/documents/rc_seg-st_20201023_parolin-integral-ecology_it.html#_ftn2. Acesso em: 11 dez. 2024.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.

[1] A Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA) afirma que os poços artesanais implantados pela concessionária de abastecimento de Itabirito para a unidade da Coca-Cola (apelidada de “Fábrica da Felicidade”) estão secando nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/biologos-acusam-coca-cola-de-secar-nascentes-em-minas-gerais.ghtml. Acesso em: 11 dez. 2024.

[2] Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/edicao/economia-de-francisco-e-clara-no-chao-da-realidade-praticas-pastorais-educacao-ecologica-e-incidencia-territorial/. Acesso em: 11 dez. 2024.

Prof. Eduardo Brasileiro*

*Educador e sociólogo, graduado em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), doutorando e mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) na área de sociologia econômica, democracia e participação social. Atua na Pró-Reitoria de Extensão, no Laboratório de Extensão Pesquisa, Publicação e Internacionalização, e na Pastoral Universitária, ambas da PUC Minas. É membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e consultor da plataforma Economias do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM). E-mail: [email protected]