Publicado em setembro-outubro de 2015 - ano 56 - número 305
“Permanecei no meu amor para dar muitos frutos” (Jo 15,8-9): introdução ao Evangelho de João
Por Centro Bíblico Verbo
Diante do contexto de perseguição e sofrimento, a comunidade joanina precisou manter viva a fé. Permanecer fiel ao projeto da vida plena – traduzida em casa, comida, saúde, integração social e laços fraternos alicerçados no amor e na solidariedade – só foi possível por manterem viva a memória da vida e da prática de Jesus. Eles reforçaram a sua fé em Jesus como a ressurreição e a vida no tempo presente.
Há alguns anos, um padre missionário em outro país recebeu a notícia de que seu pai estava com câncer. A doença já estava num estágio muito avançado. Não havia mais recursos. O padre viajou e ficou ao lado do pai. Este viveu por mais seis meses. Nesse tempo, o filho, que estava ao lado dele, sentia-se totalmente impotente e muitas vezes reclamava com Deus, que parecia ausente e distante. Era muito duro ver o pai sofrendo daquele jeito, sem poder fazer nada. Mas, alguns momentos antes de morrer, o pai virou-se e com um sorriso lhe disse: “Padre José, muito obrigado! Sem a sua presença eu não aguentaria”. Nesse instante, o padre ficou surpreso e compreendeu o mistério do sagrado: o estar junto, o cuidado amoroso com o outro, mesmo não compreendendo.
“Amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, que vocês se amem uns aos outros!” (Jo 13,34). A comunidade do Discípulo Amado é chamada a assumir o amor até as últimas consequências. A vivência do amor como sinal do discipulado de Jesus é a principal herança que o Evangelho de João transmite à sua comunidade e que chega até os nossos dias: da mesma forma que padre José deixou tudo para estar com seu pai, cada pessoa da comunidade é chamada a viver esse cuidado amoroso para com as irmãs e os irmãos. E diríamos mais: um amor extensivo a todas as pessoas, independentemente de etnia, classe, religião e sexo.
Só o amor é capaz de ultrapassar as diversas formas de preconceito que impedem o relacionamento entre as pessoas. Essa comunidade era constituída por pessoas de diferentes grupos, culturas e mentalidades: judeus, discípulos de João Batista, galileus, samaritanos, estrangeiros, doentes, pobres, ricos. Pessoas chamadas a viver a nova aliança, baseada no amor e na solidariedade universal.
Perseguição do império romano, das autoridades judaicas, divergências com outras correntes filosóficas e religiosas faziam parte do cotidiano da comunidade: “Vão excluir vocês das sinagogas. E vai chegar a hora quando alguém, matando vocês, julgará estar prestando culto a Deus” (Jo 16,2). “Se o mundo odeia vocês, saiba que primeiro odiou a mim” (Jo 15,18). Diante do contexto de perseguição e sofrimento, a comunidade reforçou a necessidade de desenvolver profundos laços fraternos de amor e de solidariedade.
Perante as incertezas, é preciso apostar e ir em frente. A comunidade joanina precisou manter viva a fé. Permanecer fiel ao projeto da vida plena – traduzida em casa, comida, saúde, integração social – só foi possível por causa dos vínculos entre seus membros e por manterem viva a memória da vida e da prática de Jesus. Essas pessoas reforçaram a sua fé em Jesus como a ressurreição e a vida no tempo presente (cf. Jo 11,25). É um grupo que acreditou e vivenciou a experiência de que o Verbo se fez carne e vive no seu meio (Jo 1,14). Dessa comunidade recebemos como herança o seu Evangelho, cujo objetivo o autor deixou por escrito: “para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditando, vocês tenham vida no nome dele” (Jo 20,31).
O Evangelho de João levou mais ou menos 60 anos para ser escrito. Provavelmente, foi sendo elaborado em vários lugares: no norte da Galileia, na Síria e na Ásia Menor. A última redação do livro teria acontecido em Éfeso, na Ásia Menor, por volta do ano 95, com alguns acréscimos posteriores. É um escrito que deve ser lido como interpretação e vivência da comunidade, com o objetivo claro de aprofundar a fé em Jesus como divino e humano: o Verbo encarnado.
Enfim, o Evangelho de João é fruto de uma caminhada comunitária, representada no texto pela figura do Discípulo Amado (Jo 1,35-42; 13,23-25; 18,15; 20,2-10). Quem era esse discípulo? Ele é anônimo; embora possa ter existido um discípulo que tenha sido reconhecido dessa forma, pode também representar todas as pessoas cristãs que viveram o amor mútuo e assumiram a prática da justiça. É o evangelho do Discípulo Amado! Para entender melhor esse texto, vamos olhar a história e colocar nossos pés no chão da vida dessa comunidade.
- Conhecendo o chão da comunidade de João
A região da Judeia enfrentou diversas dominações imperiais, e a partir da dominação grega as condições de vida pioraram ainda mais (333 a.C.). As pessoas estavam sendo dominadas, exploradas e escravizadas. Muitos grupos populares resistiram à dominação e buscaram uma forma alternativa de viver. Em 63 a.C., os romanos dominaram a Palestina. No tempo de Jesus e um pouco depois, as revoltas e os descontentamentos com a opressão dos romanos atingiram o auge. Em 66 d.C., quando os romanos saquearam o Templo de Jerusalém, os vários grupos, mesmo tendo posições diferentes, uniram-se para lutar contra os dominadores. Esse movimento ficou conhecido como a Guerra Judaica (66-73 d.C.).
Nessa guerra, o povo judeu foi derrotado pelos romanos. Jerusalém, a cidade santa, e o Templo foram destruídos. O Templo era uma instituição central na vida do povo, controlava a sua vida em todos os aspectos. Os principais grupos que participaram da guerra, os saduceus, os essênios, os zelotas e os sicários, foram desarticulados e quase desapareceram. A guerra desestruturou a vida dos habitantes da região da Judeia. Os judeus cristãos e os judeus fariseus não assumiram a luta até o fim, por isso conseguiram sobreviver. Após a guerra, o grupo dos judeus fariseus começou a reorganizar a vida do povo.
Os fariseus e os escribas, menos dependentes do Templo, desenvolveram uma estrutura alternativa. Fazia tempo que eles exerciam suas atividades nas sinagogas, por meio da função de explicar e interpretar a Lei. No contexto de destruição das principais instituições judaicas, como o Templo e o sinédrio – conselho supremo dos judeus –, o povo buscou refúgio e segurança no movimento dos fariseus e escribas. Aos poucos, os judeus fariseus foram se fortalecendo, a sinagoga passou a ser forte instituição para garantir, proteger e controlar a vida do povo. Assim, os romanos perceberam que seria vantajoso se aliar aos judeus fariseus.
A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos grupos de linha farisaica. Surgiram muitos grupos, entre os quais a Academia de Jâmnia, fundada pelo rabi Iohanan ben-Zakai. O chefe desse grupo foi reconhecido pelo império romano como representante do povo judeu. Como aliado dos romanos, eles tinham o direito de interpretar e aplicar a Lei, utilizando-a também para cobrar tributos dos judeus. Isso interessava aos romanos.
A principal Lei era a do sábado. Uma lei que nasceu para manter viva a memória da libertação e defender a dignidade humana se tornou, porém, no decorrer do tempo, uma lei opressora. O cumprimento da Lei foi colocado acima da pessoa. Outra Lei igualmente importante era a da pureza. Essa lei dividia as pessoas e as coisas em puras e impuras.
A lei do puro e do impuro definia quem estava mais perto e quem estava mais longe de Deus. Uma pessoa doente ou com alguma deficiência física era considerada impura por causa de algum pecado, uma vez que a doença era vista como castigo de Deus. O simples contato com pessoas ou coisas impuras já causava impureza. Estar impuro significava não poder participar do culto e, consequentemente, do povo de Deus e da salvação.
Muitas pessoas viviam em condições quase permanentes de impureza. As autoridades judaicas, por meio da Lei, tinham a pretensão de controlar o corpo e a vida das pessoas. Essa situação de opressão tinha maior peso para a mulher, que ficava impura por causa da menstruação (Lv 15,19), das relações sexuais (Lv 15,18) e do parto (Lv 12,2-5). Para se purificar, as pessoas deviam levar ofertas e pagar o tributo religioso em dia. Isso custava muito caro, dificultando aos pobres o cumprimento da Lei.
Os judeus fariseus viam o cumprimento da Lei como uma exigência do próprio Deus. Essa crença, unida à crença na ressurreição dos mortos e na teologia da retribuição, com prêmios e castigos para esta vida e a outra, era usada para manter o povo na obediência rigorosa às normas impostas pelos dirigentes fariseus. A teologia da retribuição estava ligada à ideia de troca: se a pessoa cumprisse a Lei, seria abençoada com terra, descendência e vida longa. Se não cumprisse, receberia o castigo: pobreza, esterilidade e vida breve (Dt 30,15-20).
O ensino da Lei era feito por meio da sinagoga. Por volta do ano 85, as sinagogas estavam espalhadas na Ásia Menor. Nessa região, a comunidade judaica vivia certa autonomia, como uma cidade dentro da cidade. A aliança com os romanos possibilitou que a religião judaica, organizada pelos judeus fariseus, fosse considerada religião lícita – religião permitida pela lei do império romano. Os judeus ligados à sinagoga conquistaram o direito de se reunir, manter uma caixa comum e ter propriedades. Eram dispensados de prestar culto às divindades do império romano, tinham o direito de observar o sábado, de praticar seu culto e sua Lei, e participavam, quando necessário, do exército só de judeus. Cada comunidade local tinha suas leis administrativas, estabelecia locais para estudo, culto e sepultamentos; oferecia ajuda aos indigentes e mantinha tribunais para julgar disputas entre judeus.
Os judeus fariseus, na tentativa de preservar a sua identidade como grupo e manter seus interesses, começaram a exigir uma observância rigorosa da Lei. Havia 613 regras para ser cumpridas. A opressão era muito grande. No interior da sinagoga surgiram alguns grupos, entre os quais o grupo dos cristãos, que começaram a relativizar a importância da Lei, pondo em primeiro lugar a vida humana. Isso provocou vários conflitos. Aqueles que não cumpriam a Lei foram perseguidos, torturados e expulsos da sinagoga e consequentemente ficaram sujeitos à perseguição do império romano (cf. Jo 16,1-2). No final do período do imperador Domiciano (81-96 d.C.), a perseguição contra os cristãos foi intensificada e generalizada, atingindo especialmente os grupos cristãos da Ásia Menor.
Entre esses grupos havia a comunidade joanina. Essa comunidade surgiu entre os judeus que acreditaram ser Jesus o Messias esperado por eles. A guerra dos judeus contra os romanos (66 d.C.) provocou a dispersão das comunidades cristãs. Essa comunidade foi para o norte da Palestina e de lá emigrou para a Síria e Éfeso.
A comunidade joanina era composta de pessoas pobres e marginalizadas que começaram a viver de um jeito diferente: irmãos e irmãs unidos não pela Lei, mas pelo amor. É muito provável que essas pessoas vivessem sob a opressão da Lei. Elas conseguiram ver na proposta cristã um caminho alternativo. Vivenciaram o amor mútuo e a certeza de que a presença do Verbo encarnado em cada mulher e homem era a base que sustentava e animava sua vida. Era comunidade mista, com pessoas provenientes de vários grupos e religiões.
- A comunidade de João e suas características
A diversidade de grupos existentes na comunidade joanina exigiu-lhe maior abertura e constante aprendizagem para a convivência com pessoas de mentalidades diferentes. Essa experiência só foi possível por meio da vivência do amor (Jo 15,12-15). O grupo de Betânia, nome cujo sentido em hebraico é casa do pobre, representado por Lázaro, Maria e Marta (Jo 11,1-44), retrata bem essa comunidade. Um grupo que acredita na presença de Jesus como portador de vida nova e vive a experiência do amor; uma comunidade de amigos, de pessoas que se amam e cuidam umas das outras.
A presença forte de samaritanos e estrangeiros e a liderança das mulheres provocaram a perseguição dos judeus fariseus. A situação dos samaritanos, um povo marginalizado e desprezado que acolhe Jesus, era semelhante à situação dessa comunidade. Por professarem a fé em Jesus Cristo e assumirem a mesma prática sua, essas pessoas sofreram várias ameaças, chegando alguns membros a ser mortos (cf. Jo 11,16; 16,2). Neste contexto de sofrimento interno e externo e na tentativa de manter vivo o projeto de Jesus de Nazaré, nasce o Evangelho de João.
- Conhecendo o Evangelho de João
O Evangelho da comunidade de João nasceu do anúncio vivo, da memória de homens e mulheres que guardavam e praticavam os ensinamentos transmitidos por Jesus. É a comunidade viva, com suas lutas e dificuldades em meio aos conflitos vividos com as autoridades judaicas, com o império romano e entre os seus próprios membros, com suas diferentes compreensões da mensagem de Jesus.
Diante das perseguições e das crises internas e externas, a comunidade sentiu a necessidade de reafirmar a própria fé e definir a sua identidade. Para isso, os autores selecionaram algumas expressões e acontecimentos marcantes da vida de Jesus com a finalidade de levar os seus primeiros leitores à fé em Jesus como o Messias, o Filho de Deus, presente na história: “E o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14).
A situação de perseguição levou a comunidade joanina a usar uma linguagem simbólica que, porém, lhe era familiar, com imagens tiradas do cotidiano, da tradição judaica e do momento presente. Por exemplo, a apresentação de Jesus é feita por meio da expressão Eu sou, termo muito conhecido do povo judeu, o próprio nome de Javé (Ex 3,14). A comunidade acrescenta: eu sou o pão da vida (Jo 6,35.48.51), a luz do mundo (Jo 8,12; 9,5), a porta das ovelhas (Jo 10,7.9), o bom pastor (Jo 10,11.14), a ressurreição e a vida (Jo 11,25) e a verdadeira videira (Jo 15,5). Imagens simbólicas, ligadas ao cotidiano das pessoas, que revelam o cuidado de Jesus com a vida de seus discípulos e discípulas.
Ao longo do Evangelho de João, há grande variedade de imagens simbólicas. Podemos classificá-las em quatro tipos:
– Símbolos ligados a números: seis talhas de pedras vazias (Jo 2,6), uma referência às seis festas judaicas mencionadas no evangelho (Jo 2,13; 5,1; 6,4; 7,2; 10,22; 11,55). Os cinco maridos da mulher samaritana lembram os cinco povos que foram deportados de outras regiões para a Samaria (2Rs 17,24).
– Objetos: as talhas para a água, o poço de Jacó e o cântaro (Jo 2,6; 4,12.28): podem ser uma referência à Lei.
– Natureza: a videira e os ramos (Jo 15,1-2), um símbolo da comunidade.
– Personagens: Discípulo Amado, mulher samaritana, Lázaro, Maria de Betânia, Marta e Maria Madalena – representantes das comunidades joaninas.
O uso de símbolos é característica marcante do Evangelho de João. Outra característica importante é o jeito de os autores organizarem a estrutura desse livro. Vamos ver como ele foi planejado.
- Plano do Evangelho
O Evangelho de João pode ser estruturado de várias formas. Nós escolhemos a estrutura que divide o texto em duas grandes partes: a primeira apresenta os sete sinais realizados por Jesus, e a segunda, o grande sinal: a entrega de Jesus por amor.
A primeira parte (Jo 2,1-11,54) e a segunda (Jo 13,1-20,29) podem ser divididas pelo tema da hora: a hora não chegou (Jo 2,4), e a minha hora já chegou (Jo 13,1). Entre essas duas partes há um texto que marca a passagem de uma para a outra (Jo 11,55-12,50), no qual vemos que a hora de Jesus se aproxima.
É possível dividir o Evangelho de João da seguinte forma:
– Prólogo – 1,1-18: abertura e síntese do livro. No prólogo encontramos um resumo de todos os temas que serão desenvolvidos ao longo do evangelho.
– Seção introdutória – 1,19-51: pequena introdução na qual aparece João Batista, o seu testemunho a respeito de Jesus e os primeiros discípulos de Jesus.
– Primeira parte – 2,1-11,54: a hora de Jesus ainda não chegou (2,4). O Livro dos Sinais apresenta sete sinais, número que significa perfeição. Os sinais indicam a realização do tempo messiânico.
1º sinal (2,1-12): bodas em Caná.
2º sinal (4,46-54): a cura do filho de um funcionário real.
3º sinal (5,1-9): a cura de um paralítico.
4º sinal (6,1-15): a multiplicação dos pães.
5º sinal (6,16-21): Jesus caminha sobre as águas.
6º sinal (9,1-41): a cura de um cego de nascença.
7º sinal (11,1-44): a ressurreição de Lázaro.
– Passagem – 11,55-12,50: a hora de Jesus está se aproximando.
– Segunda parte – 13,1-20,29: chegou a hora de Jesus (“Jesus sabia que tinha chegado a sua hora, a hora de passar deste mundo para o Pai”, 13,1). Essa parte é conhecida como o Livro da Glorificação. É uma catequese para a comunidade e pode ser subdividida em três unidades:
– Os capítulos 13 a 17 são chamados o livro da comunidade. Antes de entregar sua vida, Jesus reúne os seus para um jantar de despedida no qual realiza um gesto simbólico e profético: o lava-pés (13,1-20). Nessa ocasião, Jesus faz um discurso de despedida e deixa como herança à comunidade o novo mandamento do amor mútuo (13,34-35; 15,12-17), promete que enviará o Espírito da Verdade (14,26; 16,12-15), faz uma avaliação de sua vida e missão e reza ao Pai pela unidade (17).
– Relato da paixão (18-19), parte que culmina com uma última palavra de Jesus: “Tudo está consumado” (19,30).
– Cenas da ressurreição (20): privilegia a narração do encontro de Jesus com Maria Madalena (20,11-18).
– Epílogo – 20,30-31: a primeira conclusão.
– Apêndice – 21,1-23: nova manifestação de Jesus aos discípulos.
– 2ª conclusão – 21,24-25.
- Algumas mensagens do Evangelho de João
O Evangelho de João continua nos desafiando para a vivência do amor até as últimas consequências: “Ele, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). O único mandamento que encontramos nesse evangelho é o mandamento do amor: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, que vocês se amem uns aos outros!” (Jo 13,34; 15,17).
A medida do nosso amor é o amor de Cristo: amar até dar a vida! É um projeto de vida muito exigente! Significa trilhar o mesmo caminho de Jesus, assumindo a condição de servo. Jesus declara ser Mestre e Senhor pelo serviço e desafia seus seguidores a fazer o mesmo (Jo 13,13-14). Será que estamos dispostos a seguir esse caminho de amoroso cuidado uns com os outros em nossas comunidades, igrejas, grupos e diversas associações?
Para assumir as atitudes de Jesus, é preciso permanecer, conviver com ele, reavivar nossa experiência de fé. Como discípulas e discípulos, queremos conviver com o Mestre, refazer a nossa experiência de discipulado e dar continuidade ao nosso seguimento de Jesus nos tempos de hoje. O amor é o caminho. É ele que cria, recria, transforma e ressuscita. O caminho é aberto a todas as pessoas que querem viver o amor-serviço.
Vejamos algumas mensagens importantes:
- Solidariedade e sensibilidade. As bodas de Caná (Jo 2,1-11). Jesus e seus discípulos são convidados a uma festa de casamento. A mãe já estava lá, o que pode indicar que não era convidada, e sim fazia parte da organização. Ela representa a Israel que percebe a falta do vinho, ao passo que o chefe da cerimônia representa os judeus preocupados com a falta de água para a purificação. A falta do vinho – alegria, bênção de Deus – simboliza o sofrimento do povo por causa de uma religião ritualista, a ausência de relações de amor e cuidado.
De acordo com a religião oficial, defendida pelas autoridades da sinagoga, a salvação de Deus vinha somente pela observância rigorosa da Lei e não pela prática da solidariedade e do serviço ao próximo. A religião ritualista aprisionava o povo. Jesus Cristo, salvador, transforma a água das talhas, usada nos rituais de purificação, em vinho bom, símbolo da vida plena. É importante observar que o milagre da vida acontece com a participação das pessoas sensíveis e solidárias como a mãe de Jesus e os serventes.
- Superação de preconceitos. O encontro entre Jesus e a mulher samaritana (Jo 4,4-42). Ao reler essa narrativa, somos convocados para reavivar a nossa experiência de encontro com Jesus e anunciá-lo. O encontro começa com a sede de Jesus: ele pede água à mulher samaritana. Como havia desentendimentos entre judeus e samaritanos, a mulher imediatamente refuta o pedido. Após a mulher apresentar algumas objeções, Jesus explica que pode dar uma água que tem o poder de acabar definitivamente com a sede.
A mulher, representando o povo samaritano, também à espera do Messias, abre-se para o encontro com Jesus: “Eu sou esse Messias, eu que estou falando com você” (Jo 4,26). Ela deixa o cântaro e vai para a cidade com a certeza de que Jesus é o Messias. Havia muitos samaritanos nas comunidades cristãs, como também muitos estrangeiros; uma realidade conflituosa e difícil de aceitar, sobretudo para os judeus cristãos, enraizados na tradição judaica. Fazer memória da prática de Jesus é uma forma de voltar às raízes da proposta cristã e abrir-se para os outros povos, romper com os preconceitos e discriminações de etnia, origem, religião, gênero e idade.
- Ser pastores e pastoras uns para os outros. O bom pastor (Jo 10,1-18). Essa narrativa apresenta a liderança de Jesus e nos convoca para rever nosso modelo de liderança. No Antigo Oriente, pastor era um título dado aos reis e aos governadores, que tinham o dever de defender e conduzir o povo. No tempo do Evangelho de João, Jesus é apresentado como o bom pastor que veio para dar a vida por suas ovelhas em oposição ao mercenário, que rouba, destrói e mata. Por trás desse texto está o conflito entre a comunidade cristã e as autoridades judaicas, de tendência farisaica, que buscam seus próprios interesses.
O bom pastor dá a vida por suas ovelhas e busca a vida plena para as pessoas. A comunidade joanina reforça qual é a missão de Jesus e das pessoas que seguem a sua prática: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Vida em abundância significa condições dignas de vida. Ouvir a voz do pastor é assumir o mesmo projeto. É comprometer-se com o projeto da justiça até o fim. É um convite para revermos se a nossa liderança conduz para a liberdade ou para a dependência e a passividade.
- Amar e servir. “Vocês também devem lavar os pés uns dos outros” (Jo 13,1-20). O episódio do lava-pés apresenta Jesus ajoelhado, lavando os pés de seus discípulos. É um exemplo do que as comunidades cantavam desde a década de 50 d.C.: “Ele esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de servo” (Fl 2,7). No Antigo Oriente, lavar os pés constituía gesto de acolhida e hospitalidade que, em sua origem, era feito pelo dono da casa. No decorrer do tempo, tornou-se um serviço desprezado, feito por escravos. Em casa que não havia escravos, era realizado pelas filhas ou pela esposa do dono da casa.
Em uma sociedade escravista e hierárquica, um mundo organizado para que o escravo servisse o senhor, Jesus, Mestre e Senhor, assume o serviço de lavar os pés, eliminando a desigualdade e as diferenças sociais e, ao mesmo tempo, propondo uma sociedade igualitária e fraterna. Que esse gesto profético possa inspirar nossa vida e missão e reforçar nossa consciência de que seguir Jesus implica assumir a prática do amor-serviço e concretizar relações de cuidado recíproco nos meios em que vivemos. A comunidade deixa claro: Jesus é Mestre e Senhor pela capacidade de amar e servir. Essa é a nossa missão!
- Reavivar a fé em Jesus ressuscitado. “Eu vi o Senhor” (Jo 20,11-18). Maria Madalena representa a comunidade junto ao sepulcro. Ela experimentou dor, angústia e sofrimento (Jo 20,11-15). Sua busca foi escrita tendo por inspiração a atitude da amada de Cântico dos Cânticos, que enfrenta várias dificuldades para encontrar o amado e não desiste enquanto não atinge seus objetivos (Ct 3,1-4). Mesmo sofrendo, a mulher permanece próxima ao túmulo e faz a experiência de encontro com o Ressuscitado ao ser chamada pelo nome.
A certeza que impulsionou a comunidade joanina e que continua nos impulsionando e nos enviando em missão é a de que Jesus está vivo e presente em nosso meio. Maria Madalena é a primeira testemunha da ressurreição. Esse encontro aconteceu porque ela venceu o medo. Em meio à situação de morte, a mulher resistiu, permaneceu até encontrar o Senhor. Na comunidade de João há muitas mulheres discípulas fiéis a Jesus que animam os outros a fazer o mesmo. Que o testemunho dessa comunidade cristã continue nos iluminando e nos enviando em missão.
Uma palavra final
A leitura do Evangelho de João é sempre nova e atual. É fonte que sempre borbulha novas águas para a nossa vida e missão. Ela reaviva, de diversas formas, a certeza de que Jesus é o enviado de Deus e que a intrínseca ligação entre Jesus e a comunidade tem sua fonte em Deus: “Da mesma forma que o Pai me amou, eu também amei a vocês: permaneçam no meu amor” (Jo 15,9).
Permanecer no amor de Jesus é ser fiel ao projeto do Pai. Esse é o testemunho da comunidade joanina. O mandamento do amor não pede que amemos a Deus, mas que amemos os irmãos: “Amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12; cf. 13,34; 15,17). A melhor forma de amar a Deus é a vivência do amor até o fim, até a entrega da própria vida.
E mais, acreditamos que a única forma de Deus continuar se encarnando é pela vivência do amor: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23). O Evangelho de João está em nossas mãos! É a nossa herança! Que a vivência da comunidade joanina nos ajude a encontrar caminhos para vivenciar o projeto de Jesus e continuar abrindo espaço para que o Verbo se faça carne entre nós!
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