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Publicado em julho-agosto de 2024 - ano 65 - número 358 - pp.: 20-29

Obstáculo à Sinodalidade

Por Prof. João Décio Passos*

A sinodalidade brota da eclesiologia conciliar, levada adiante nas reformas implementadas pelo papa Francisco. O Concílio construiu novas formas de participação eclesial do episcopado (colegialidade) e dos cristãos e cristãs leigos (reconhecimento da autonomia de ação), mantendo, porém, um paralelismo entre as duas esferas. A sinodalidade poderá fecundar modos de participação que superem essa dicotomia.

Introdução

A causa da sinodalidade, assumida pelo papa Francisco como pauta da “renovação inadiável da Igreja” (EG 27), encarna e traduz, em sua dinâmica, o princípio e, por conseguinte, as posturas mais radicais da programação reformadora em curso. A sinodalidade toca nas mentalidades, nas políticas e nas estruturas institucionais estabelecidas e, se levada a cabo, exige conversões individuais e mudanças institucionais. Toda reforma de uma instituição precisa resgatar as raízes desta para ser legítima e sustentável, do contrário será rejeitada como disruptiva e destruidora. Por essa razão, Francisco insiste na reforma da Igreja a partir do “coração do Evangelho” (EG 34). O caminho da sinodalidade, hoje assumido como desafio e tarefa de toda a Igreja, avança na direção do resgate da raiz da Igreja como comunidade de discípulos seguidores de Jesus Cristo: comunidade de comunhão e participação dos membros inseridos no mesmo corpo que reflete, em seu mistério e vivência, a comunhão trinitária dos iguais/distintos. Portanto, ao buscar a sinodalidade, a Igreja recria a si mesma a partir de seu fundamento último.

A sinodalidade afirma o princípio dos iguais/distintos como constitutivo da comunidade eclesial (comunhão) e avança na busca da tradução coerente da ação eclesial na história (missão) e da atuação dos fiéis no mesmo corpo eclesial (participação). No processo sinodal, a esfera da comunhão é a mais consensual, por se tratar da teologia da Igreja em si mesma e ser bem fundamentada. A esfera da missão pode provocar ainda tensões internas, por relacionar a Igreja com a sociedade atual, e a esfera da participação será, por certo, a mais tensa, por trazer consigo uma dinâmica de transformação dos mecanismos de ação (e de poder) institucionalizados na Igreja. É o ponto em que a busca dos meios concretos de participação dos fiéis na Igreja pode chocar-se com os papéis teologicamente fundamentados e as funções legalmente instituídas. Na cultura da estabilidade que persiste na Igreja, o fundamento da comunhão permanecerá válido se não cobrar traduções que exijam conversão e mudanças na estrutura e no funcionamento do corpo hierarquicamente instituído. Aqui reside o obstáculo fundamental à sinodalidade eclesial.

A eclesiologia conciliar lançou as bases para a perspectiva e a prática sinodais, embora tenha preservado intacta a estrutura organizacional da Igreja. O processo sinodal em curso depara com o desafio de ir além do discurso eclesiológico centrado no sujeito eclesial povo de Deus e construir novos modos de relação entre os membros que compõem o mesmo corpo eclesial.

1. Os desafios da herança eclesial do Vaticano II

A sinodalidade é um elemento eclesiológico fundamental, porém esquecido pela Igreja latina – não tanto por razões teóricas (teológicas), e sim por razões político-estruturais, na medida em que a Igreja se institucionalizou e se consolidou como poder sagrado (potestas) hierarquicamente estruturado. A teologia do poder sagrado (hierárquico e centralizado), estranha ao Evangelho, foi adotada como doutrina e dispensou outras teologias que afirmassem a igualdade dos fiéis. No esforço de retornar às fontes, o Vaticano II resgatou essas teologias, deixando um germe fecundo que alimentou as eclesiologias posteriores. Velasco fala de uma virada copernicana operada pelo Concílio (1996, p. 241-254); da passagem de uma percepção/consciência eclesial centrada na diferença estruturada hierarquicamente para uma percepção/consciência centrada na igualdade da comunidade eclesial. Ao responder à pergunta: “Em que o Vaticano II mudou a Igreja?”, Brighenti (2016) enumera quinze deslocamentos que reconfiguraram a imagem e a autocompreensão da Igreja – centrada em si mesma e oposta ao mundo e às outras religiões – e mostra como cada um deles produziu precisamente seu oposto em se tratando de visão e de prática eclesiais. Em termos teológicos, o Vaticano II construiu, de fato, uma nova Igreja. Contudo, a teologia da Igreja oferecida pelo Concílio desencadeou um processo de renovação que ainda não foi concluído e tem sido levado adiante no atual pontificado.

A passagem de uma percepção eclesial hierárquica (poder sagrado centralizado e descendente, separação essencial entre clérigos e cristãos leigos) para uma percepção de igualdade (corpo místico de iguais/distintos, comunhão e povo de Deus) ofereceu referências para a renovação da mentalidade eclesial (da cultura eclesial), porém não conheceu imediatamente suas traduções políticas (na esfera do consenso entre os diversos sujeitos eclesiais) e institucionais (mudanças na estrutura e no funcionamento eclesiais). A eclesiologia conciliar conviveu com a mesma estrutura organizacional e funcional pré-conciliar, baseada nos papéis hierárquicos, centralizados e clericais.

Não obstante esse paradoxo real, a eclesiologia conciliar terá produzido algum resultado institucional concreto? Podem ser localizados dois resultados em duas esferas distintas e separadas no conjunto do corpo eclesial: a colegialidade episcopal e a participação dos sujeitos leigos na Igreja.

  1. a) A colegialidade

A primeira tradução da eclesiologia conciliar introduz o princípio da participação no topo da hierarquia eclesial, acomodando, de forma renovada, a figura do papa, que permanece como supremo pontífice, com os bispos, reconhecidos em seu ministério como sucessores dos apóstolos. O capítulo III da constituição Lumen Gentium inverteu a percepção anterior – na qual o papa era o centro e em seu entorno gravitavam os bispos –, ao inserir o ministério petrino dentro da teologia mais ampla do episcopado. Os números 19 a 27 oferecem a base teológica da colegialidade. O resgate da instituição do Sínodo dos Bispos por São Paulo VI antecipava a tradução da colegialidade antes da conclusão dos trabalhos conciliares, em 15 de setembro de 1965. As organizações locais dos episcopados já se encontravam em andamento antes mesmo do Concílio e, desde então, foram, de algum modo, outra forma de traduzir a colegialidade episcopal local, embora em um clima de desconfiança e controle por parte de Roma, como nos casos das Conferências do Episcopado Latino-americano.

  1. b) A missão dos cristãos e cristãs leigos

A segunda tradução acolhe a presença e a missão dos cristãos leigos na Igreja (capítulo IV da Lumen Gentium e decreto Apostolicam Actuositatem). O decreto afirma o direito e o dever dos cristãos leigos de agir, bem como sua função própria (AA 25). As associações laicais são acolhidas como iniciativas legítimas e necessárias na Igreja (AA 18). O(A) cristã(o) leigo(a) é, de fato, entendido como um sujeito eclesial (individual e coletivo), sustentado, sobretudo, como a presença ativa da Igreja no mundo e como um executor de tarefas pastorais (em associações e movimentos) dentro da Igreja. O Vaticano II não ofereceu novo desenho eclesial e eclesiástico (ou uma regra nova) que garantisse aos cristãos leigos protagonismo nos espaços eclesiais decisórios.

Pode-se dizer com segurança que essas duas revisões conciliares criaram e configuraram novas dinâmicas de participação no topo da hierarquia (colegialidade episcopal) e fora dela (na esfera laical), ainda que assimiladas pelo esquema mental pré-conciliar que separa os fiéis em duas condições radicalmente distintas: os clérigos e os cristãos leigos. Essas novas dinâmicas de participação eclesial permaneceram, portanto, separadas pela própria dinâmica autossuficiente das funções hierárquicas que não necessitam dos cristãos e cristãs leigos para seu funcionamento. Depois do Vaticano II, a maior participação do episcopado e a dos cristãos leigos em suas respectivas esferas permaneceram separadas e distantes, sem se fecundarem mutuamente no conjunto do corpo eclesial, ou seja, em sua estrutura organizacional e funcional. As recepções eclesiais do aggiornamento não criaram mecanismos que permitissem superar essa distinção milenar de funções inseridas na perspectiva de fundo do poder sagrado.

A história dessa dicotomia acompanhou a Igreja de vários modos nas décadas que se seguiram à conclusão do Concílio, na forma de concessão da hierarquia à participação laical em espaços eclesiais (nas assembleias e nos conselhos, nas CEBs, nas pastorais populares etc.), na forma de certo paralelismo (com os leigos exercendo sua autonomia relativa em movimentos, associações e organizações) ou de controle (quando a hierarquia entendeu que devia tutelar diretamente a participação laical). Ensaios positivos de participação/comunhão foram realizados na América Latina, como no caso dos Encontros Intereclesiais das CEBs, das assembleias dos organismos do povo de Deus e, mais recentemente, da Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe convocada pelo papa Francisco (SANCHEZ, 2022).

Em suma, o Vaticano II não gerou uma organização eclesial capaz de traduzir, de modo coerente, sua eclesiologia, edificada sobre a igualdade fundamental do povo de Deus. A Igreja permaneceu com espírito novo em corpo velho: mais laical, porém clerical; mais povo de Deus, porém hierárquica; mais participativa, porém centralizada; mais local, porém sob o controle central da Cúria romana; mais colegiada, porém sob os controles curiais; mais servidora, porém estruturada nos poderes hierárquicos; mais ecumênica e dialogal, porém autorreferenciada em seu próprio sistema. A sinodalidade, entendida como princípio, postura, método e organização eclesiais, pode ser entendida como propulsora de novo modo de ser Igreja que tira as consequências das mudanças eclesiológicas conciliares.

A sinodalidade depara-se, ainda, com algumas hegemonias constituídas na longa temporalidade da Igreja que, por se apresentarem como normais, dificultam as mudanças eclesiais: a) hegemonia da Igreja latina sobre as Igrejas orientais; b) hegemonia de uma Igreja universal sobre as Igrejas locais; c) hegemonia da unidade sobre as diversidades; d) hegemonia do clericalismo sobre a participação laical; e) hegemonia do ordenamento canônico sobre a vivacidade e a criatividade pastoral.

Não bastarão boas reflexões para que essa ambiguidade eclesial possa ser superada de alguma forma ou ao menos parcialmente. As resistências institucionais do clericalismo estrutural, teologicamente fundamentado e canonicamente estabelecido, acontecerão inevitavelmente, à medida que os apelos e sugestões de mecanismos e estruturas eclesiais mais sinodais forem feitos na assembleia sinodal.

2. A sinodalidade como tradução da comunhão/participação do povo de Deus

O espírito (o valor e as posturas) e a prática (a participação efetiva dos fiéis) da sinodalidade significam o ponto de chegada das intuições profundas da eclesiologia conciliar. Como observa Scannone, o papa Francisco estaria levando adiante “a agenda inacabada do Vaticano II” (2019, p. 185). A Igreja edificada sobre a comunhão dos iguais constitui a base teológica a partir da qual as mudanças são almejadas e buscadas no processo sinodal. As dicotomias e as hegemonias assentadas na longa temporalidade e na rigidez doutrinal entrarão naturalmente em ação, em nome de uma tradição e de uma verdade imutáveis a serem preservadas. A sinodalidade será compreendida por essa consciência conservadora como um perigo à autenticidade da Igreja, e não faltarão argumentos que insinuem até mesmo seu conteúdo herético, como no caso das Dúvidas dos cardeais de 11 de julho de 2023 (Dubia 3).[1]

A sinodalidade deve, portanto, ser situada teologicamente na sequência Lumen Gentium–Evangelii Gaudium, de onde a perspectiva da Igreja povo de Deus emerge, toma forma sempre mais nítida e lança os desafios de suas traduções pastorais e institucionais. Essa eclesiologia encontrou um lugar fecundo na América Latina e aí construiu as condições históricas e teológicas para afirmar que o povo de Deus é o sujeito eclesial fundamental e deve ser considerado como sujeito de direito a uma participação eclesial mais efetiva. Para os que permaneceram no imaginário e na prática da Igreja definida como hierarquia, essa perspectiva soa como ruptura com a longa tradição. As saídas das dicotomias e hegemonias podem apontar para quatro direções: a) a negação da sinodalidade como heterodoxia e heresia; b) a afirmação da sinodalidade como uma ideia teológica correta, sem qualquer tradução funcional ou institucional no corpo eclesial; c) a assimilação parcial e superficial da sinodalidade no corpo hierárquico e clerical, que permanecerá substancialmente o mesmo; d) a busca de um processo de participação eclesial que implica mudanças (conversão) dos modelos centralizados e concentrados de ministérios clericais e laicais.

A sinodalidade indica ser a estratégia mais global e radical da reforma da Igreja que se encontra em curso, quando o princípio da comunhão/participação poderá impactar as posturas clericais e a própria estrutura eclesiástica. É de prever que a postura da assimilação parcial e superficial seja adotada como rumo e eixo do Sínodo que terá como desfecho a sessão de outubro do corrente ano. A superação da dicotomia, mantida após o Concílio, entre participação episcopal (colegialidade) e participação laical (na sua esfera específica) encontra na sinodalidade a força propulsora de uma colegialidade mais universalizada, capaz de criar mecanismos de participação do povo de Deus, para além dos isolamentos entre clérigos e cristãos e cristãs leigos. Tal tarefa é um desafio à conversão e à criatividade eclesiais, sobretudo na atual conjuntura eclesial-política em que avançam segmentos tradicionais e tradicionalistas que renegam toda mudança como desnecessária e perigosa para a Igreja (PASSOS, 2023, p. 85-98). O Sínodo não conta com modelos prontos para desenhar mecanismos e regras de participação do povo de Deus na vida da Igreja; terá de criá-los no Espírito renovador que sopra, na Igreja, a sensibilidade, a ousadia e a criatividade.

Considerações finais

Os possíveis obstáculos à sinodalidade não são tão somente de natureza política, advindos da dificuldade de construir novos consensos sobre a comunhão/participação eclesiais entre os sujeitos sinodais, os quais, segundo as regras atuais, estão posicionados de modo simétrico na assembleia; esses obstáculos estão postos pela própria estrutura eclesial católica, que distingue, canônica e teologicamente, clérigos e cristãos leigos. Essa estrutura tende a permanecer como expressão das origens da própria Igreja fundada por Jesus Cristo. A renovação dessa consciência eclesial tradicional exige voltar às fontes e delas retirar os elementos teológicos que fundamentam e justificam as renovações capazes de superar as práticas centralizadas de poder.

A sinodalidade não constitui, portanto, uma ideia ou um projeto neutros, do ponto de vista eclesial (por conseguinte, político e teológico). Ao contrário, conta com pré-noções eclesiais que resistem ao seu conteúdo reformador, o qual exige conversões pessoais e estruturais na Igreja. As posturas tradicionalistas implícitas ou explícitas dentro da Igreja tenderão a rejeitar as potenciais mudanças inerentes ao projeto sinodal em andamento e lançarão mão de teologias e estratégias canônicas e pastorais que promovam as adaptações sem mudanças. Não interessa à postura clericalista estruturalmente instalada no corpo eclesial adotar mudanças que exijam revisão de vida, de estruturas e de funções. As reações às reformas implementadas pelo papa Francisco têm demonstrado a força da inércia no conjunto da Igreja, quando o princípio da conservação se sobrepõe à renovação, ainda que sob o signo da fidelidade ao Santo Padre e do ethos da comunhão eclesial.

A sinodalidade poderá ser uma questão – uma ideia, um princípio e um apelo – que, retirada da eclesiologia cristã neotestamentária, do aggiornamento conciliar e da programação reformadora central no magistério papal atual, seja capaz de levar a renovação da Igreja ao seu ponto de inflexão: a superação do clericalismo, que separa os investidos de poder sagrado dos demais fiéis. Ainda que o Sínodo não ofereça soluções globais e radicais para essa contradição, poderá desencadear processos que mantenham acesa a chama da conversão eclesial à efetiva comunhão e participação do povo de Deus na vida eclesial.

Referências bibliográficas

BRIGHENTI, Agenor. Em que o Vaticano II mudou a Igreja? São Paulo: Paulinas, 2016.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

PASSOS, João D. Obstáculos à sinodalidade: entre a preservação e a renovação. São Paulo: Paulinas, 2023.

SANCHEZ, Wagner L. Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe. São Paulo: Paulinas, 2022.

SCANNONE, Juan C. A teologia do povo: raízes teológicas do papa Francisco. São Paulo: Paulinas, 2019.

VELASCO, Rufino. A Igreja de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1996.

VIER, Frederico (Coord.). Compêndio do Concílio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1986.

[1] Cf. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_risposta-dubia-2023_po.html. Acesso em: 8 fev. 2024.

Prof. João Décio Passos*

*é livre-docente em Teologia pela PUC-SP. Professor no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião na mesma universidade. Editor na Paulinas Editora.