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Publicado em março-abril de 2021 - ano 62 - número 338 - pág.: 22-31

O tradicionalismo como ameça para uma Igreja em saída

Por Eliseu Wisniewski

Introdução

A Igreja, como sacramento universal de salvação, existe para evangelizar. Não existe outra razão, a não ser essa. Fiel à sua missão, a Igreja, conduzida pelo Espírito, escuta os sinais dos tempos, discernindo e revendo sua prática pastoral como resposta aos desafios que emergem a cada tempo, proclamando com coragem, entusiasmo e criatividade a mensagem do Evangelho. Anuncia sempre o mesmo Evangelho. As transformações sociais, culturais, políticas, religiosas que experimentamos como cidadãos e cristãos pedem que a Igreja, em sua missão evangelizadora, saiba transmitir, por meio de linguagens sempre adaptadas à realidade presente, sua mensagem de modo condizente com os desafios e inquietações atuais, encarnando a Palavra revelada na história e fazendo fecundar a vida dos seguidores de Jesus. Caso contrário, a Igreja será vista como realidade arcaica e pouco significativa para nossos contemporâneos.

Com essa consciência eclesial, dom Walmor Oliveira de Azevedo, atual presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em vídeo e texto publicado no site dessa instituição e reproduzido em outros sites, apresentou três ameaças e três oportunidades para a Igreja católica no Brasil nos próximos cinco anos. Ameaças: 1) o crescimento de segmentos conservadores e reacionários; 2) as dificuldades para reverter situações com funcionamentos pesados; 3) a fragilização de processos de evangelização e serviços em defesa e promoção da vida. Oportunidades: 1) novo modo de presença pública da Igreja, advindo da escuta das mudanças em curso na cultura mundial; 2) recuperação da força do cristianismo como vetor determinante do sonho de um mundo novo, solidário e fraterno; 3) conquista de novas feições e dinâmicas na ministerialidade da Igreja à luz da mistagogia evangélica.

Neste texto, concentramos nossa atenção na primeira ameaça: o crescimento de segmentos conservadores e reacionários. Nos últimos tempos, esses grupos e tendências ganharam força política, pastoral, moral e litúrgica dentro da Igreja católica e crescente visibilidade nas redes sociais, gerando resistências e empecilhos para uma evangelização consequente com os tempos atuais. Segundo dom Walmor, esses grupos têm levado “à estagnação e ao comprometimento do diálogo construtivo, com preponderância de obscurantismos e escolhas medíocres, com força de justificação das desigualdades existentes e neutralização magistral da Doutrina Social da Igreja”.

Concordamos também com o que o papa Francisco constata na encíclica Fratelli Tutti (FT), quando afirma que “a história dá sinais de regressão”, com “conflitos anacrônicos que se consideravam superados”, bem como com o ressurgimento de “nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT 11). Nas “sombras de um mundo fechado”, em que os “sonhos são desfeitos em pedaços” (FT, título e subtítulo do 1º capítulo), Francisco reconhece que o atual momento é difícil e o tempo da humanidade é obscuro, uma vez que “criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o ‘meu’ mundo” (FT 27), sendo preciso

reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados
também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia (FT 46).

Empenhados em contribuir para que a Igreja seja uma Igreja em saída, hospitaleira, missionária, que ajude de fato a recompor o esgarçado tecido de nossa sociedade brasileira, não podemos deixar de examinar essa tendência tradicionalista que contradiz a finalidade missionária, a razão de ser da Igreja. Buscaremos entender melhor esse fenômeno, orientando-nos pelas ideias/reflexões do dr. João Décio Passos presentes no livro A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões. Seguindo de perto a estrutura desse livro e transcrevendo as ideias fundamentais aí contidas, iniciaremos nossa reflexão aproximando-nos dessa temática do ponto de vista conceitual. Em seguida, abordaremos as estruturações do tradicionalismo e suas afinidades políticas, e concluiremos propondo alguns discernimentos que se fazem necessários. Esses pontos ajudarão a detectar elementos que perfilam a frente tradicionalista com seus projetos bem demarcados, presentes em posturas implícitas e explícitas em muitos grupos institucionalizados dentro da Igreja, em programas exibidos pelos canais católicos de televisão, em homilias dominicais e em discursos que circulam pelas redes sociais.

1. “Fora do passado não há salvação.” Considerações sobre os tradicionalismos

Não parece ser necessário exigir pesquisas numéricas para demonstrar a existência de grupos e tendências tradicionalistas visíveis e atuantes no interior da Igreja católica. O tradicionalismo católico atravessou o século XX com seus ideários, projetos, grupos e tendências. Trata-se de sistema, de matriz escolástica, que se estrutura e opera com base em uma cosmologia teocêntrica, em uma filosofia da história, em uma epistemologia essencialista, em uma sociologia cristã, em uma antropologia pessimista, em uma moral autoritária e em uma devoção espiritualista. Como grupo e como tendência, existem ao menos desde o século XIX. Saíram dos velhos guetos institucionais, romperam com as posturas diplomáticas e com a etiqueta da elegância eclesial e assumiram a lógica das bolhas sociais, reproduzidas pelas redes sociais. Sejam grupos mais intelectualizados ou mais militantes, sejam mais institucionalizados ou mais espontâneos, estão todos dispostos a enfrentar aquilo que julgam ser um desvio doutrinal e atacar os sujeitos divulgadores dos erros, tachando-os como perigosos, a fim de serem expurgados da Igreja.

O tradicionalismo foi construído como uma espécie de antídoto contra a modernidade. Encara o presente como crise, entendendo os tempos modernos como equivocados e, por si mesmos, sem solução, incapazes de propor uma referência de valor e ação, retirada de um fundamento seguro de verdade recebido do passado como revelação de Deus ou como lei inscrita na própria natureza.

Considerando-se portadores da autêntica tradição, os tradicionalistas se entendem e se definem como os autênticos católicos, que se opõem aos católicos equivocados. Reivindicam não somente um lugar legítimo dentro do catolicismo, mas também uma posição de portadores da verdade autêntica da tradição cristã e, com frequência, são intolerantes às diferenças religiosas e políticas. Perfilam um tipo de catolicismo que se referencia por visões, valores e práticas de matriz pré-moderna; legitimam-se com base no passado e têm grande dificuldade de assimilar as mudanças do presente, sobretudo no que se refere às que ocorrem no campo da doutrina, da moral e das vivências litúrgicas católicas.

O tradicionalismo nasceu num contexto histórico demarcado por sujeitos e ideais definidos e se desenvolveu, nas épocas posteriores, em formatos variados. Assim sendo, é preciso distinguir o tradicionalismo ao menos em dois conceitos próximos. O primeiro diz respeito à escola filosófico-teológica, organizada na França do século XVIII e XIX, denominada “tradicionalismo”, que mereceu a condenação de papas – vejam-se, por exemplo, as encíclicas Mirari Vos (1832), Singulari Nos (1834) e Pascendi (1907) –, por afirmar a revelação como única fonte de verdade e, por conseguinte, negar a possibilidade de acesso à verdade por meio da razão. A segunda distinção diz respeito à própria noção de tradição (traditio) como transmissão dos conteúdos da fé, nos diferentes tempos e nos espaços, pelos seguidores de Jesus Cristo; indica precisamente o contrário do tradicionalismo, na medida em que se entende como um processo de transmissão do passado no presente e, portanto, de discernimento circular entre as duas temporalidades, o que nega as dinâmicas da conservação intacta que caracterizam os diversos tradicionalismos.

O projeto tradicionalista não é uniforme, nem quanto à rigidez do discurso nem quanto a detalhes ou foco privilegiado de um ou de outros. Contudo, mostra-se em algumas posturas e frentes comuns dos diversos tradicionalismos.

Como posturas comuns: afirmação de uma concepção de Igreja fora do mundo (comunitarismo isolado do resto da Igreja e da sociedade) e detentora da salvação (neognósticos e neopelagianos, segundo o papa Francisco); concepção dualista da realidade (separação radical entre natural e sobrenatural, história e Igreja, história e escatologia); espiritualidade intimista (mística individualista e ascese rigorista); afirmação de uma estética litúrgica tridentina (liturgias em latim ou ritualismo triunfalista); negação de uma moral social centrada na justiça e igualdade social (deformação da fé e comunismo); moral rigorista centrada na norma objetiva (sem discernimento de contextos e condicionamentos); e, na base de tudo, a afirmação de que a verdade tem seu porto seguro em modelos de vida eclesial, social e política do passado (quase sempre nos moldes tridentinos e anteriores ao Vaticano II).

Como frentes comuns: afirmação de um catolicismo autorreferencial e intolerante à diversidade religiosa e ao diálogo inter-religioso; insistência na temática do aborto como problema central dos dias atuais e condenação da chamada “ideologia de gênero”; afirmação do anticomunismo como antídoto que visa desqualificar todo discurso libertador; dispensa da reflexão crítica que situe, histórica e cientificamente, a doutrina da Igreja e os textos bíblicos.

Outras características descrevem, de modo tipicamente ideal, a visão e a prática de fundo da mentalidade tradicionalista: a) eternização: as coisas sempre foram como são e não podem ser modificadas no decorrer da história; b) universalização: a verdade herdada do passado e claramente formulada em modelos de interpretação e vivência é afirmada como única e aplicada a todos os tempos e lugares, sem modificações; c) idealização: as ideias afirmadas como verdades herdadas do passado são melhores do que as do presente; d) conclusão: as representações e os valores afirmados são verdades concluídas e definitivas e não podem sofrer mudança; o definitivo é a base de toda segurança racional, social e política; e) hierarquização: a realidade é vista como sistema hierárquico, de cima para baixo; f) divinização: os valores defendidos têm seu fundamento em uma realidade sobrenatural e, por essa razão, são fixos e preservados com temor sagrado e com reverência; g) espiritualização: a fé cristã é algo puramente espiritual, acima e em oposição à realidade material e histórica; h) autorrefencialidade: as referências afirmadas como verdades são por si mesmas boas e normativas, constituindo o centro a partir do qual tudo é visto e julgado doutrinal, moral e politicamente, e as diferenças são negadas como falsas e perigosas.

Para os tradicionalistas, essas características/referências são as fontes do autêntico catolicismo e devem ser preservadas para sempre; constituem, portanto, sinônimo de catolicismo, em oposição às interpretações equivocadas, ainda que essas interpretações sejam instituídas pelo Vaticano II e ensinadas pelos papas.

2. A volta ao passado como solução. Demarcações, linhagens, afinidades tradicionalistas

O Concílio Vaticano II foi o divisor definitivo de águas entre a consciência cristã centrada numa epistemologia essencialista, que dispensa a história, e outra que incorpora a historicidade como dinâmica interpretativa da fé e de sua transmissão. Rompeu com a cultura da estabilidade e da tradição verdadeira e fixa. Rompeu com uma rotina considerada imutável e sagrada, exercida, por conseguinte, sob as regras da autoridade e da obediência.

O processo conciliar delineou duas posições e fez que a percepção conservadora tomasse dois rumos: recuando numericamente, a ponto de configurar a chamada minoria, e recrudescendo como grupo organizado. Evidenciou o tradicionalismo em duas frentes principais: como força que negava a legitimidade do evento conciliar ou como frente que se aglutinava no esforço de reler seu significado. Formaram-se, assim, duas escolas interpretativas do Vaticano II: uma que afirmou o sentido renovador das decisões; outra que afirmou a continuidade dessas decisões em relação à tradição anterior.

Dessa forma, instaurou-se uma luta entre dois projetos de marcas distintas: Igreja autorreferenciável e Igreja em saída. A Igreja autorreferenciável tem como aspectos: a) fonte: a tradição; apoio em modelos do passado como referências permanentes; b) organização: acento na instituição, nas normas e na hierarquia, entendidas como sinônimo de Igreja e visibilidade sagrada; c) estratégia: preservação da doutrina, dos rituais e das normas advindas de modelos fixos a serem repetidos; d) poder: centralização, hierarquia, clericalismo e obediência à autoridade; e) cultura: da reprodução, da segurança e da reserva em relação à cultura atual. Já a Igreja em saída, por sua vez, apresenta as seguintes características: a) fonte: querigma como fonte permanente de sentido e renovação para a tradição, para as estruturas e para as linguagens atuais da Igreja; b) organização: acento no carisma cristão, no discernimento e na vivência encarnada da Igreja em cada realidade; organização a serviço da evangelização e da vida; c) estratégia: reforma permanente com base nas fontes do Evangelho e do encontro com o outro; d) poder: serviço como única razão, descentralização e sinodalidade; e) cultura: do encontro, da criação de processos capazes de transformar a realidade; diálogo com as alteridades.

O Vaticano II decretou o fim do tradicionalismo, embora ele tenha subsistido de modos variados dentro da Igreja e crescido como tendência cada vez mais dominante, amparada por fontes e estruturas eclesiais e eclesiásticas. Pode-se, então, falar de três linhagens de tradicionalismo: a) o tradicionalismo de resistência, que avança de dentro para fora da Igreja católica e adquire identidade própria como grupo distinto da instituição católica; b) o tradicionalismo de legitimidade, que vai sendo germinado dentro da Igreja católica de forma legítima e se espalhando pelo corpo eclesial como tendência sempre mais nítida desde a conclusão do Vaticano II; c) o tradicionalismo emergente, que hoje é construído/reconstruído por intermédio das redes sociais e favorecido pelas dinâmicas próprias desses novos meios de socialização.

As afinidades entre tradicionalismo católico e ideologias e governos de direita são evidentes tanto no passado quanto no presente. Os regimes de ultradireita são, por definição e missão, conservadores; pretendem manter uma ordem natural das coisas no modelo que adotam para exercer o governo. As mudanças que alterem uma ordem previamente definida como verdadeira e boa por si mesma são denunciadas e expurgadas como perigosas. Recentemente, na América Latina, os governos de direita revelam, de modo emblemático, um “ecumenismo conservador” e de “composição plurirreligiosa de ultradireita”. Constata-se a aliança entre ateus e crentes, judeus e cristãos, protestantes e católicos, militares positivistas e pentecostais, fazendo cessar ou, ao menos, ocultando num plano irrelevante as diferenças religiosas.

Essa tendência política contemporânea compõe o cenário de fundo no qual a “volta” aos fundamentos se encontra numa espécie de confluência natural, em que uma configuração distinta é reforçada por outra na afirmação de ideários e, sobretudo, de práticas comuns. O tradicionalismo, com suas teologias da estabilidade, tece afinidades com os conservadorismos políticos que se apresentarem como soluções para as crises modernas. Algumas palavras-chave indicam essa confluência, que vai tecendo conjunturas políticas que se retroalimentam com as visões religiosas tradicionalistas, tais como: ordem natural, unidade, estabilidade, hierarquia, centralização, autoridade, força, disciplina e ritualismo.

Dessa forma, negam os princípios e práticas modernas: autonomias modernas, liberdade de consciência, pluralismos em geral, diálogo inter-religioso, ecumenismo, relativismo, igualdade social, direitos humanos. Todo discurso de igualdade e justiça está demarcado como comunista, venha de quem vier. O anticomunismo tem retornado, no interior do catolicismo e nos discursos dos poderes autoritários hoje emergentes, como chave geral de leitura das oposições teóricas e ideológicas do que propõem como saída messiânica para a história. O comunista ainda é um monstro perigoso, pronto para destruir por completo a vida de um povo; um inimigo da nação, da Igreja e de Deus. O princípio da igualdade de direitos entre nações, grupos e indivíduos – concretizados em sujeitos sociais emergentes (refugiados, migrantes, mulheres, negros, LGBTI), em políticas sociais compensatórias e de distribuição de renda, em direitos humanos, em políticas e leis de direitos de refugiados, em afirmação da liberdade religiosa – é negado como um mal que corrói a velha unidade cristã ocidental. Portanto, valores e modelos do passado são resgatados sem escrúpulos políticos, criando cenas públicas inusitadas de retomada de governos totalitários com claro viés “teocrático”.

Nesse contexto, o inimigo causador do caos deve ser eliminado com todos os recursos, mesmo que comece pela eliminação física. O Deus dos exércitos oferece a justificativa como fonte de legitimidade e salvação. Consequentemente, as democracias vão morrendo, com as bênçãos religiosas que refundam o poder com suas teologias políticas: Deus salvará o Ocidente por meio de líderes que são missionários da preservação do passado. Nas rachaduras da crise econômica e política, as teologias da conservação se apresentam como solução segura para uma ordem mundial acuada pelo medo da dissolução imediata. O Deus todo-poderoso vencerá todos os inimigos que ameaçam a soberania dos Estados, a autonomia do Ocidente, a civilização cristã, por meio de líderes poderosos.

3. “Sempre foi assim.” Deverá sempre ser assim? Discernimentos sobre o tradicionalismo

Os tradicionalistas se apresentam hoje como defensores da teologia da conservação, que dá fundamentos para a proposição de um catolicismo distinto do professado por aqueles que apostaram em utopias sociais, em afinidade direta ou indireta com os ideais e modelos socialistas, e por aqueles que insistiram nas reformas conciliares por meio de movimentos e de uma cultura que se consolidou nas rotinas pastorais desde o final do Vaticano II. Hoje se torna cada vez mais visível o apoio tradicionalista às direitas emergentes, o qual se eleva nas rachaduras da democracia liberal. O retorno às velhas seguranças constitui estratégia de enfrentamento do caos, voltando ao início: ao Estado forte que enfrenta o domínio do econômico; à nação como comunidade cultural; à família patriarcal; e a Deus como fundamento. Nessas dinâmicas de retorno, as posturas religiosas tradicionalistas avançam como fundamento geral que fornece a última palavra sobre a verdade, a segurança e a ordem.

No entanto, os tradicionalismos carregam limites (históricos, epistemológicos, ético-antropológicos, políticos, teológicos) e contradições que não somente indicam sua historicidade, mas a identidade conservadora sobre a qual se fundamentam. Esses limites advêm do seu próprio propósito e projeto de aferir a veracidade de um modelo histórico a ser adotado, modelo paradoxalmente compreendido como perene e, portanto, como supra-histórico. Na tradição judaico-cristã, a história se faz na dinâmica do provisório e jamais do definitivo; na insegurança do presente possível, e jamais na ordem do necessário. Na tradição judaico-cristã, portanto, qualquer afirmação de “história estável e concluída” é falsa. O cristianismo é um caminho pelo provisório, e não uma fuga para o definitivo (embora os cristãos esperem o definitivo encontro com Deus, o que está em jogo é a fuga para algo estável e constante). O tempo da fé cristã é a história que passa incessantemente, convida à esperança permanente e exige o amor dos seguidores de Jesus Cristo.

Carece à perspectiva tradicionalista a consciência de que, como todo grupo identitário, ela participa da dinâmica inevitável da “história que passa” e da imponderabilidade do tempo presente, em que não existe reprodução intacta do passado, mas tão somente produção do presente a partir do passado ou, com maior precisão, produção do passado a partir do presente. O mito de um passado sempre preservado não se sustenta histórica e socialmente. A fé em Jesus Cristo não pode significar ruptura com o tempo presente na direção de um tempo eterno, mas uma percepção da verdade dentro das condições históricas, quando verdade-amor se tornam duas dimensões da mesma fé que acolhe Deus na história, presente no próximo.

O Evangelho é sempre a fonte renovadora de todas as estruturas historicamente construídas; fora dele não há legitimidade para a instituição. A consciência cristã exige que se volte sem cessar para seu fundamento, para dele haurir elementos para a vida pessoal e comunitária e parâmetros para posicionar-se dentro da história e aí se organizar, a fim de melhor servir. O Evangelho fornece o núcleo mais essencial para discernir as formulações do passado e fazer que fecundem o presente.

Não podemos nos esquecer de que a tradição está situada entre duas fontes importantes de significado, que lhe dão o parâmetro da forma correta de ser transmitida: o coração do Evangelho e a vida concreta. O tradicionalismo perde essas duas referências e afirma o passado pelo passado, de forma fixa e imutável. O ato de “passar adiante” significa inevitavelmente confrontar a fé com a vida, lançar a semente que a Igreja carrega no solo da vida, feito de terra fértil e de terra infértil. Sem o querigma fundante, o cristianismo corre o risco da idolatria dos modelos históricos de interpretação da fé, trocando a causa pelo efeito, o conteúdo pela fórmula, a vida plena pela lei escrita.

 A transmissão da fé é sempre renovada. Esse é o significado da tradição que se distingue e se opõe ao tradicionalismo. A tradição guarda o passado e discerne o presente, no mesmo ato de fidelidade que visa oferecer o conteúdo fundamental da fé em cada tempo e lugar. É linguagem que se renova ao transmitir, e transmite ao se renovar.

4. Não encapsular o presente no passado nem colocar muros nos canais vivos da graça. Conclusões

Os tradicionalistas compõem um segmento eclesial e social que entende ser o passado a referência segura para o presente. São os apóstolos de plantão do definitivo, da verdade definitiva, encarnada em modelos fixos e permanentes e, por conseguinte, em parâmetros unívocos e universais.

Na fé cristã, as conclusões são todas provisórias, somente o Reino de Deus é definitivo. O Reino abre todas as coisas para um fim, que fecunda o presente com seu germe transformador e faz da dinâmica da história contínua autossuperação. O poder renovador do Espírito desautoriza todas as concentrações teocráticas, exercidas em nome de quem quer que seja, hierarquias eclesiais ou políticas. Desautoriza todas as concentrações sagradas em instituições, leis e personagens, e exige discernimentos a cada instante, munidos da memória do passado e da esperança de futuro.

Nesse sentido, a Fratelli Tutti, do papa Francisco, compromete a todos e nos engaja na transformação do próprio mundo, do nosso tempo: “Cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho” (FT 11).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Walmor Oliveira de. Ameaças e oportunidades para a Igreja nos próximos cinco anos. Disponível em: <https://crbnacional.org.br/quais-sao-as-ameacas-e-oportunidades-para-igreja-catolica-no-brasil-nos-proximos-5-anos/>. Acesso em: 13 out. 2020.

PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.

PASSOS, João Décio. A força do passado na fraqueza do presente: o tradicionalismo e suas expressões. São Paulo: Paulinas, 2020.

Eliseu Wisniewski

é presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (Padres Vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e doutorando em Teologia pela mesma universidade. E-mail: [email protected]