Publicado em novembro-dezembro de 2024 - ano 65 - número 360 - pp. 28-37
O enfrentamento dos abusos sexuais na Igreja católica
Por Observatório Eclesial Brasil*
“Diante dos abusos, especialmente daqueles cometidos por membros da Igreja católica, não basta pedir perdão.”
(papa Francisco, 2/3/2024)
O presente artigo tem por objetivo primeiro oferecer um aprofundamento da reflexão sobre o tema dos abusos na Igreja e os caminhos para denúncia em caso de identificação de alguma situação consigo ou com alguém próximo. O Observatório Eclesial Brasil deseja oferecer essa reflexão como contribuição às necessárias correções da vivência eclesial.
Introdução
Nas últimas décadas, em diversos países do mundo, a Igreja católica tem sido objeto de muitas denúncias de abusos sexuais, cometidos por membros do clero e por religiosos/as. Nem sempre ela tem enfrentado esses casos com firmeza e com respeito às vítimas. Historicamente, as medidas adotadas visam esconder o problema e proteger os agressores.
Via de regra, para proteger quem comete o crime, coloca-se a vítima no descrédito. É uma segunda violência cometida contra pessoas que, na maioria das vezes, se encontram indefesas. As agressões por parte do clero e de religiosos e as reações da Igreja católica causam escândalo e comprometem o testemunho do Evangelho.
O papa Francisco tem procurado enfrentar essa situação, estabelecendo procedimentos que visam acolher as vítimas e punir os agressores. No entanto, ainda há muito para fazer. É preciso tornar mais rigorosos os critérios de seleção de candidatos ao presbiterato e à vida religiosa e mudar os percursos formativos nos seminários e nas casas de formação. Ao mesmo tempo, precisamos rever a moral da sexualidade, construída ao longo dos séculos, que favorece uma concepção negativa do corpo e do sexo, comprometendo o crescimento sadio das pessoas e a integração da afetividade.
Uma das raízes dos abusos sexuais é o exercício exacerbado do poder dentro da Igreja católica. Poder que deveria ser serviço, mas tem sido, na maioria das vezes, poder-opressão. O clericalismo, tão denunciado pelo papa Francisco, é expressão requintada desse poder-opressão.
Neste texto, o Observatório Eclesial Brasil (OEB) quer propor uma reflexão sobre um tema tão delicado e tão urgente como o dos abusos sexuais. O texto está organizado em três partes: na primeira, refletimos sobre o paradigma ético do cuidado; na segunda, apresentamos uma reflexão sobre a questão dos casos de abusos sexuais; na última, apresentamos os caminhos possíveis de denúncia.
Convidamos todas as pessoas católicas a enfrentar corajosamente essa reflexão. É a partir daí que podemos pensar caminhos de conversão e de mudança para toda a Igreja.
1. O cuidado como paradigma ético
A ética contemporânea, depois de passar por vários modelos de sustentação, viáveis para o tempo no qual foram desenvolvidos, precisa, hoje, olhando para a realidade na qual estamos imersos, buscar novas ancoragens, novos paradigmas, que garantam tempos menos terríveis. Uma primeira constatação, manifestada várias vezes pelo papa Francisco, é que a ética cristã já não se configura como aquela que deve garantir determinadas condutas, ditadas por regras fixadas desde sempre, mas sim como aquela capaz de buscar a experiência do amor, que reinventa e recria tudo de novo, a cada vez (Millen, 2022). Várias passagens dos Evangelhos mostram Jesus desobedecendo à lei para cumprir a Lei. Retomemos Marcos, na discussão sobre o sábado judaico: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). O amor e o cuidado para com as pessoas são o eixo sobre o qual deve se mover toda lei. Assim nos diz Paulo:
“Carregai os fardos uns dos outros; assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).
Para esta reflexão, uma definição de cuidado talvez seja necessária. Leonardo Boff, na esteira de Heidegger, reconhece o cuidado como o modo de ser essencial, como uma dimensão fontal, originária, ontológica. “O cuidado é o que confere ao ser humano a sua humanidade. É, portanto, um existencial básico” (Boff, 1999, p. 34).
O ser humano, em comparação com os outros animais, nasce muito imaturo, frágil, a ponto de ser incapaz de buscar por si só o alimento necessário à sua sobrevivência. Demora quase um ano para aprender a falar, para se colocar de pé e andar. Nessa etapa da sua existência, o cuidado que outros lhe dedicam é fundamental. Ninguém sobrevive sem ele.
Precisamos resgatar o modo de ser do cuidado com base na experiência do afeto, aquela que desperta em nós a capacidade de sentir, de nos emocionar, de nos deixar encantar pela vida nossa e dos outros, de nos envolver com o que nos rodeia por meio da reabilitação dos vínculos que nos sustentam. Boff diz que “cuidar das coisas implica ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhe o ritmo e afinar-se com ele” (Boff, 1999,
p. 96). Ainda nos falta considerar como eixo da vida a razão cordial.
A Igreja – como comunidade humana, ao ter o amor como princípio fundamental que deve regular as relações entre as pessoas – precisa ter em conta o paradigma ético do cuidado que gera acolhimento e ternura. Propomos, neste texto, pensar na questão dos abusos tendo em conta o mandamento do amor e o paradigma ético do cuidado.
2. Uma reflexão sobre a questão dos abusos na Igreja católica
A questão da sexualidade sempre foi vista como um problema para a Igreja católica, sobretudo após Agostinho, com sua antropologia dualista, que introduziu o dispositivo da “concupiscência”,1 demonizando o corpo e, por extensão, a vivência sexual, que transcende o objetivo da procriação. Essa perspectiva, durante séculos, colocou toda a prática da sexualidade no banco dos réus.
Para ilustrar o que estamos dizendo, vale recorrer à encíclica Sacra Virginitas, de 1954, em que Pio XII afirma, com autoridade e solenidade, a superioridade da virgindade/celibato em relação à vida matrimonial:
Não falta, contudo, quem, saindo do bom caminho, nos dias de hoje exalte o matrimônio a ponto de colocá-lo praticamente acima da virgindade, depreciando, consequentemente, a castidade consagrada a Deus e o celibato eclesiástico. Por isso nos pede agora a consciência do nosso cargo apostólico que declaremos e defendamos a doutrina da excelência da virgindade, para acautelarmos de tais erros a verdade católica.
Esta doutrina da excelência da virgindade e do celibato, e da superioridade de ambos em relação ao matrimônio, tinha sido declarada, como dissemos, pelo divino Redentor e pelo apóstolo das gentes; do mesmo modo foi também definida solenemente no Concílio Tridentino como dogma de fé e comentada sempre unanimemente pelos santos padres e doutores da Igreja. Além disso, os nossos predecessores e nós mesmos a explicamos muitas vezes e recomendamos insistentemente (n. 8; 31; grifo nosso).
O Concílio Vaticano II não confirma esse ensinamento e o papa São João Paulo II, na audiência geral de 14/4/1982, afirma que não se pode falar em inferioridade do matrimônio:
Nas palavras de Cristo sobre a continência “por amor do Reino dos Céus” não há indício algum acerca da “inferioridade” do matrimônio, no que diz respeito ao “corpo”, ou seja, a respeito da essência do matrimônio, consistente no fato de que, nele, o homem e a mulher unem-se de modo a serem uma “só carne” (cf. Gn 2,24).
Esse foi um passo para reconhecer a bondade e o valor da sexualidade no matrimônio. Fora do matrimônio, continua a ser uma questão complicada, um tabu sobre o qual pesam muitas condenações. Um exemplo disso foi a rejeição, por parte de grupos conservadores, à Exortação Pós-sinodal Amoris Laetitia. Os teólogos católicos, que refletem sobre a ética da sexualidade, encontram dificuldades até por parte do magistério, que, de modo geral, apresenta o sexo, em qualquer circunstância, como uma realidade pecaminosa.
É nesse contexto de distorção da compreensão da sexualidade que nos cabe refletir sobre os abusos sexuais dentro da Igreja católica. Num contexto eclesial em que a sexualidade e o corpo são desvalorizados e classificados como pecado, a prática de abusos sexuais por pessoas da instituição eclesiástica se torna um contrassenso e os discursos moralizantes sobre a sexualidade uma hipocrisia.
Essa situação se agrava quando setores da hierarquia católica adotam atitudes de complacência e de acobertamento em relação aos agressores. Um exemplo dessa hipocrisia é o fato da condenação rigorosa – e muitas vezes de forma histérica – do aborto, não acompanhada do mesmo rigor em condenar os casos de pedofilia e abusos por parte do clero e de religiosos e religiosas. Tais casos, que fazem tantas vítimas e provocam o adoecimento e a morte (psicológica e social) de tantas pessoas, não são criminalizados pela Igreja. Para as mulheres que abortam, resta-lhes a pecha de assassinas; para os abusadores, a proteção da instituição.[1]
No Brasil, ainda são poucos os casos de abusos por parte do clero e de religiosos e religiosas que ganham visibilidade na imprensa. Além disso, lamentavelmente, não temos, por parte da Igreja, estatísticas de casos de abuso sexual.
2.1. Destaques éticos
Apresentamos em seguida alguns destaques (ou elementos) éticos para examinar a questão do abuso e pensar estratégias para seu enfrentamento.
- Desumanização – quando as coisas são mais valorizadas que as pessoas – e reificação, quando as pessoas passam a ter valor de objeto. Perdemos nossa capacidade de nos reconhecermos e de agir como humanos, seguindo o critério deixado por Jesus: a pessoa humana está acima de tudo na criação.
- Corporativismo, quando membros da hierarquia eclesiástica defendem seus confrades e a si mesmos em vista da manutenção de um poder que garante a impunidade (clericalismo).
- Cultura do medo, que gera e dissemina o silêncio, o segredo e os subterfúgios para preservar os interesses da instituição eclesiástica e evitar escândalos. O medo é sentimento poderoso e, às vezes, devastador, sobretudo quando se mistura com sentimento de culpa e sensação de fracasso. Pode ser causado pelo poder exercido, quando é poder sobre os outros e revela autoritarismo, escondido sob a imagem de um Deus juiz, à diferença do Deus misericordioso revelado em Jesus. Quando o exercício da autoridade dentro da Igreja se faz pela lógica do poder judiciário que imputa e oprime, ele vai na contramão do amor, da compaixão, do perdão e da misericórdia (Francisco, 2021). Um poder que subjuga, que oprime, que impede o crescimento e a formação madura da identidade, infantiliza as pessoas e as impede de se compreenderem, de se dizerem.
- Analfabetismo afetivo. O amor humano verdadeiro supõe intimidade, proximidade, cuidado, toque, ternura. Infelizmente, esses elementos do amor não constituem o eixo da moral cristã, são aspectos não muito bem-aceitos no interior da Igreja. O amor por ela cultivado é o platônico, que traz um espiritualismo amoroso, no qual os corpos, com seus desejos e necessidades afetivas, não contam, quiçá até são desprezados.
- Patriarcalismo, machismo e misoginia. Na Igreja católica predomina uma cultura fundada no patriarcalismo, a qual se expressa no machismo e na misoginia. Esse patriarcalismo está presente nas mentes, nos discursos, nas estruturas eclesiásticas e nas relações desiguais que se dão entre homens e mulheres dentro da instituição.
2.2. O que fazer?
Diante dessa situação, cabe perguntar-nos: o que fazer? Propomos a seguir alguns passos concretos.
- A Igreja deve reconhecer seus pecados e crimes e nomeá-los, trazê-los à luz, arrepender-se e adotar medidas concretas para enfrentar os abusos morais, sexuais e de autoridade.
- A Igreja deve fazer justiça, ao tratar crimes como crimes, acolher as vítimas, escutá-las, dando-lhes voz e proporcionando-lhes o cuidado de que necessitam.
- A Igreja deve reconhecer o trabalho investigativo desenvolvido por comissões independentes da sociedade civil.
- A Igreja deve adotar estratégias de prevenção, tornando mais rigoroso o processo seletivo para o sacerdócio e a vida religiosa.
- A Igreja deve investir no processo formativo nos seminários e nas casas de formação, para favorecer uma cultura que respeite o protagonismo do outro, notadamente do laicato, haja vista que no interior dessas casas e desses seminários há também abusos entre os pares.
3. Caminhos de denúncia
Para que o leitor possa se situar melhor e orientar as pessoas em caso de realização de denúncias, oferecemos abaixo elementos que explicitam os meandros no campo eclesiástico-jurídico e civil.
3.1. Denúncia eclesiástica: caminhos
Para a compreensão do processo canônico, utilizamo-nos de dois documentos centrais para a questão. São eles: a Carta Apostólica sob forma de “motu proprio” Vos Estis Lux Mundi (Francisco, 2019) e, para o que nos interessa especificamente neste ponto, o Vademecum: sobre alguns pontos de procedimento para tratar os casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos (Dicastério para a Doutrina da Fé, 2020).
No “motu proprio” Vos Estis Lux Mundi, encontramos dois elementos essenciais:
1) o estabelecimento do prazo, de até um ano, a partir da publicação do documento, para a formação das comissões locais para recebimento de denúncias (art. 2, § 1) – isto é, de órgãos que sejam facilmente acessíveis ao público para receber denúncias de abusos. Logo, a obrigatoriedade de investigar todas as denúncias;
2) a especificação do delito, vinculado ao sexto mandamento (pecados contra a castidade), a saber (art. 1):
- a) forçar alguém, com violência, ameaça, abuso de autoridade, a realizar ou sofrer atos sexuais;
- b) realizar atos sexuais com menor (toda pessoa que tiver idade inferior a 18 anos ou a ela equiparada por lei civil) ou pessoa vulnerável (toda pessoa em estado de enfermidade, deficiência física ou psíquica ou de privação de liberdade pessoal que, de fato, limite sua capacidade de entender ou querer ou, em todo caso, de resistir à ofensa);
- c) produção, exibição, posse ou distribuição, inclusive por via digital, de material pornográfico infantil, bem como recrutamento ou indução à participação de produção pornográfica infantil.
O Vademecum: sobre alguns pontos de procedimento para tratar os casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos, publicado no ano seguinte, apresenta, de forma mais ampla e mais aprofundada, as responsabilidades e os procedimentos para verificação das denúncias. Entendemos que os elementos abaixo são de essencial conhecimento:
1) É necessário que o responsável representante da Igreja aceite as denúncias, que não precisam ser realizadas unicamente de maneira formal (em documento escrito), sendo aceitas as orais e testemunhais (II, 9). Elas podem ser realizadas nos seguintes órgãos: a) ao ordinário local;
b) ao bispo ou responsável superior; c) às comissões diocesanas estabelecidas para esse fim; d) ao Tribunal Eclesiástico; e) aos provinciais das congregações e institutos de vida consagrada; f) à Nunciatura Apostólica de cada país (Brasil: SES 801 Lote 01 – Brasília/DF – CEP 70401-900 – tel.: 55 (61) 3223-0794; g) ao Dicastério para a Doutrina da Fé (CDF), no Vaticano (Dicastério para a Doutrina da Fé, Palazzo del Sant’Uffizio – 00120 Città del Vaticano).
2) Obrigação dos responsáveis pela administração eclesiástica de verificar todas as fontes apresentadas de delito, salvo as conhecidas por meio do sacramento da confissão. A estas o confessor deve orientar a realização da denúncia pelo penitente (II, 10-11).
3) A autoridade eclesiástica deve apresentar denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para proteger a vítima (II, 17).
4) Aquele que recebe a denúncia deve transmiti-la “sem demora” ao responsável eclesiástico superior, de acordo com a instituição à qual pertence o denunciado (II, 31).
5) Deve-se evitar que se realize simplesmente uma transferência de ofício, de circunscrição, de casa religiosa do clérigo ou religioso/a envolvido. Isso não é solução satisfatória do caso (III, 63).
Apesar do avanço institucional, que obriga a existência de órgãos eclesiásticos mais próximos daqueles/as que desejam realizar as denúncias, e das possibilidades e caminhos apresentados, é importante ressaltar que o documento abre uma brecha de isenção de responsabilidade da instituição ao prever também que: “desde o momento em que se tem a denúncia de delito, o acusado tem o direito de apresentar pedido para ser dispensado de todas as obrigações inerentes ao seu estado de clérigo, incluindo o celibato, e contextualmente de eventuais votos religiosos” (IX, 157). Nesse caso, o processo está imediatamente instinto, uma vez que o acusado já não pertence à instituição religiosa, restando à vítima, se assim o desejar, o caminho da justiça civil.
3.2. Denúncia civil: caminhos
As denúncias penais podem ser feitas por dois meios:[2]
1) Registro de ocorrência policial ou comunicação à autoridade policial de crime acontecido – “notícia-crime” (a presença de um advogado não é requisito para o procedimento, mas, dada a complexidade dos fatos, é melhor estar acompanhado/a);
2) Encaminhamento de representação ao Ministério Público (MP) local, noticiando o fato criminoso, para que seja aberta investigação (em regra, feita por advogado). Pode ser feita também denúncia via Ouvidoria do MP local (o que igualmente não exige advogado, mas, dada a gravidade dos fatos, é recomendável).
Como se trata de ação penal pública incondicionada, será aberta investigação pela autoridade, dando início ao processo penal (fase inquisitorial de produção de provas, sem contraditório nem ampla defesa). Uma vez comprovados os fatos, ao final da investigação, será feita a denúncia pelo Ministério Público, a qual, ao ser recebida pela autoridade judiciária, dará início à fase judicial do processo criminal, agora com contraditório e ampla defesa (ao final, a sentença).
Se os fatos forem muito antigos, é necessário verificar se os crimes não estão prescritos, impedindo o processamento da ação penal (a depender do delito, da idade da vítima etc., em regra, os crimes prescrevem de doze a vinte anos do acontecimento dos fatos). Independentemente da esfera penal (e mesmo no caso de prescrição), existe a possibilidade de reparação dos danos civis via ação civil “ex delicto” (mais voltada aos danos materiais) ou via ação indenizatória civil “comum” (essa para os danos materiais e morais). O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a ação reparatória mesmo em casos de ação penal prescrita.
4. Lei “Não é Não” (Lei 14.786, de 2023)
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou, no dia 28 de dezembro de 2023, sem vetos, a lei que estabelece o protocolo “Não é Não”, destinado a prevenir o constrangimento e a violência contra a mulher em ambientes nos quais sejam vendidas bebidas alcoólicas, como casas noturnas, boates e casas de espetáculos musicais em locais fechados ou shows. Ficam de fora das novas regras os eventos em cultos ou outros locais de natureza religiosa. Nos casos de atividades esportivas, o protocolo deverá ser seguido pela organização esportiva responsável pela organização de competições, conforme a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/23).
Cremos que a lei aprovada significa um passo a mais para a proteção das mulheres em meio a abusos de toda ordem. Contudo, cabe-nos perguntar: por quais razões os espaços de culto não foram formalmente incluídos pela lei, sobretudo nos tempos atuais, em que os escândalos provenientes de abusos vêm à tona com tanta frequência nas mídias? Acaso, no espaço religioso, “não” passa a ser “sim”?
Diante dessa lei, permitimo-nos alguns questionamentos. Primeiro, por que, em um espaço religioso, o “não” deve ser sempre “não”? Ora, porque se pressupõe, em teoria, que nesse espaço não deveria haver tal nível de ausência de limites ou perversidade que afronte aqueles/as que aí estão.
Um segundo ponto é a consideração de que o espaço religioso, por si, se diferencia do espaço “público”, dado seu objetivo. Ou seja, em teoria, somente frequentam um espaço religioso aqueles/as que compreendem seu destino e uso, diferentemente de um bar, do transporte público etc., frequentados por pessoas que inferem, de forma personalizada, o uso e o limite de prática.
Finalmente, há uma questão político-governamental de manter o equilíbrio e o diálogo com as denominações religiosas, sem lhes impor a marca de instituições que permitem esse tipo de comportamento. Incluir o espaço religioso nas categorias de espaços de abusos é dar reconhecimento público antecipado de que neles ocorrem esses crimes.
Como dissemos, trata-se de teoria, porque, na prática, não é o que acontece. Logo, os espaços religiosos não deveriam ficar fora da lei.
Conclusão
Neste texto, não tivemos a pretensão de dar uma palavra final sobre o tema dos abusos. Quisemos, antes, por um lado, contribuir para o aprofundamento e a compreensão do tema, para que o leitor saiba o que constitui um abuso, suas implicações eclesiástico-jurídicas e civis e os caminhos de denúncia para quem se sentiu inserido nessa situação; por outro, quisemos deixar explicita a complexidade do processo de denúncia, para que as pessoas estejam prevenidas quanto ao embate institucional, marcado pela sombra de uma cultura patriarcal, repressiva e corporativista. Isso não deve ser visto como desestímulo a um processo de depuração dos abusos sexuais no meio religioso, mas como alerta àqueles/as que veem nas denúncias um modo de correção do sentido último da vida eclesial.
Referências bibliográficas
BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
BRASIL. Lei n. 14.786, de 28 de dezembro de 2023. Cria o protocolo “Não é Não”. DOU: Brasília, DF, ed. extra 29 dez. 2023, p. 2, col. 2. Disponível em: https://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2023-12-28;14786. Acesso em: 11 jun. 2024.
DICASTÉRIO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Vademecum: sobre alguns pontos de procedimento para tratar os casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos. 2. ed. rev. [Vaticano]: [s. n.], 5 jun. 2022. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/ddf/rc_ddf_doc_20220605_vademecum-casi-abuso-2.0_po.html. Acesso em: 11 jun. 2024.
Francisco, Papa. Angelus. [Vaticano]: Libreria Editrice Vaticana, 14 fev. 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/angelus/2021/documents/papa-francesco_angelus_20210214.html. Acesso em: 11 jun. 2024.
FRANCISCO, Papa. Vos Estis Lux Mundi: Carta Apostólica sob forma de “motu proprio”. [Vaticano]: Libreria Editrice Vaticana, 9 maio 2019. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/motu_proprio/documents/papa-francesco-motu-proprio-20190507_vos-estis-lux-mundi.html. Acesso em: 11 jun. 2024.
JOÃO PAULO II, Papa. Audiência geral. [Vaticano]: Libreria Editrice Vaticana, 14 abr. 1982. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1982/documents/hf_jp-ii_aud_19820414.html. Acesso em: 11 jun. 2024.
MILLEN, M. I. C. Paradigmas da ética teológica. In: THEOLOGICA Latinoamericana. Enciclopédia digital. [Belo Horizonte]: Faje, 2022. Disponível em: http://teologicalatinoamericana.com/?p=2777. Acesso em:
11 jun. 2024.
[1] Ainda sobre a reação de membros da hierarquia e de movimentos leigos conservadores quando se apresenta a questão do aborto, é importante realçar que essas autoridades e grupos não condenam com a mesma veemência outras formas de ameaça à vida, tais como a desigualdade, a fome, a miséria extrema, a violência contra os mais vulneráveis, as guerras fratricidas por motivos econômicos, a adesão a uma extrema direita fascista que apoia e incentiva o uso de armas de fogo com a clara intenção de matar os inimigos etc.
[2] Este item contou com a colaboração especial do Prof. Dr. Eduardo Xavier Lemos, professor vinculado à Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília CJP/DF, e do Prof. Dr. José Geraldo de Sousa Jr., professor titular da UnB e membro da Comissão de Justiça e Paz de Brasília.
Observatório Eclesial Brasil*
*O presente texto foi pensado no conjunto das reuniões do Observatório Eclesial Brasil e sistematizado por Alzirinha Souza (PUC-Minas e Itesp) e Edelcio Ottaviani (PUC-SP) com base nos textos apresentados por: Alzirinha Souza e Celso Carias (PUC-Rio), D. Joaquim Mol (arquidiocese de Belo Horizonte), Dra. Maria Inês Castro Millen, Wagner Sanchez (PUC-SP).