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Publicado em março-abril de 2025 - ano 66 - número 362 - pp. 4-9

O corvo: um exercício bíblico de ecoespiritualidade

Por Matthias Grenzer*, Luciano José Dias** e Robersom Costa de Deus***

O artigo propõe sublinhar a imagem de um pássaro que a Bíblia menciona onze vezes. Na Bíblia hebraica, lida por cristãos e cristãs como Antigo Testamento, trata-se do “corvo”. Será realizado aqui um exercício de ecoespiritualidade: o que o corvo, um dos animais selvagens talvez menos imponentes, biblicamente traz de mensagem em relação a Deus, ao ser humano e/ou ao conjunto dos seres não humanos?

INTRODUÇÃO

A Bíblia não fala somente de Deus e do ser humano, mas dirige sua atenção também aos seres não humanos, acolhendo espaços celestes e terrestres, água, ar, solo e temperatura, vegetais e animais. Assim, os textos milenares em questão visam, igualmente, ao “valor intrínseco da natureza”, algo que, no âmbito religioso, corresponde ao caráter “sagrado” dos seres não humanos, sublinhando os aspectos da “interconectividade” e da “relação interdependente entre a terra e todos os seus moradores” (Ferreira; Sutton, 2024, p. 318).

À procura de um exemplo disso, o presente estudo propõe-se focar em um pássaro que a Bíblia menciona onze vezes. Na Bíblia hebraica, lida por cristãos e cristãs como Antigo Testamento, o “corvo” ( בֵרֹע ) aparece dez vezes (Gn 8,7; Lv 11,15; Dt 14,14; 1Rs 17,4.6; Is 34,11; Sl 147,9; Jó 38,41; Pr 30,17; Ct 5,11). Além disso, o nome da ave ainda se torna topônimo, ou seja, nome de lugar – “o rochedo de Oreb” (Jz 7,25;  Is 10,26) –, e antropônimo, ou seja, nome de pessoa: “Oreb, príncipe de Madiã” (Jz 7,25 – três vezes; Jz 8,3; Sl 83,12). No Novo Testamento, por sua vez, Jesus de Nazaré apresenta esse pássaro a seus discípulos como paradigma de comportamento: “Olhai os corvos!” (κόραξ: Lc 12,24). Portanto, será realizado aqui um exercício de ecoespiritualidade: o que o corvo, um dos animais selvagens talvez menos imponentes, biblicamente traz de mensagem em relação a Deus, ao ser humano e/ou ao conjunto dos seres não humanos?

1. O PRIMEIRO A SAIR

Na história sobre o dilúvio (Gn 6,9-9,17), “quarenta dias e quarenta noites de chuva sobre a terra” (Gn 7,4.12.17), com “o rompimento de todas as fontes do grande abismo e a abertura das comportas do céu” (Gn 7,11), provocam uma inundação total da terra durante “cento e cinquenta dias” (Gn 7,24; 8,3). Em seguida, as águas do dilúvio diminuem, e “a arca atracou sobre os montes de Ararat” (Gn 8,4). Outros 74 dias depois, “apareceram os cumes dos montes” (Gn 8,5). Noé, no entanto, ainda não vislumbra espaços maiores de terras não inundadas, tanto que, somente ao fim de outros quarenta dias, “abre uma janela da arca” (Gn 8,6). Com isso nasce a esperança de que, em algum momento, a saída da arca seja possível.

Não obstante, a abrangência da catástrofe ambiental exige paciência e cautela. As águas recuam lentamente. Prova disso é que, da “abertura da janela” (Gn 6,8) até a saída de todos os seres vivos da arca, vão se passar outros 107 dias (cf. Gn 8,10.12.13.14). Nesse tempo, por sua vez, Noé usa duas espécies de aves para, constantemente, obter informações sobre o nível dos alagamentos. Afinal, “nos tempos antigos, antes da invenção da bússola e de outros instrumentos de navegação, era comum entre os navegantes soltar pássaros a fim de constatar se e em qual direção existia terra firme nas proximidades” (Krauss; Küchler, 2017, p. 189).

O primeiro pássaro enviado por Noé é um corvo: este, de fato, saiu, quer dizer, “saía e voltava, enquanto as águas sobre a terra secavam” (Gn 8,7). Sete dias depois, com o mesmo propósito de querer saber se a terra já havia secado (cf. Keel, 1978, p. 87), Noé envia uma pomba (Gn 8,8), mas a ave logo lhe volta, justamente por “não encontrar lugar de pouso para suas patas” (Gn 8,9). Enviada uma segunda vez após outros sete dias, “a pomba lhe voltou com um ramo fresco de oliveira em seu bico” (Gn 8,11). Tendo esperado outros sete dias, a terceira pomba já “não lhe voltou mais” (Gn 8,12). A terra, portanto, estava seca.

Todavia, o corvo, talvez por ser mais robusto, cumpre na narrativa o papel de pioneiro. É o primeiro a sair da arca. Com isso, faz Noé chegar a um primeiro conhecimento sobre o estado das inundações. Ademais, com as suas repetidas “saídas” (Gn 8,7), o corvo traz a dinâmica exodal à memória do ouvinte-leitor, prefigurando as posteriores “saídas” de todos os seres vivos, humanos e não humanos, da arca (Gn 8,15-19), a fim de que, após a catástrofe provocada pela “maldade do ser humano” (Gn 6,5), retomem a vida sobre a terra.

2. ABENÇOADO E PROTEGIDO

Duas leis no Pentateuco incluem “todo corvo segundo sua espécie” (Lv 11,15; Dt 14,14) entre as aves a não serem comidas pelo ser humano (Lv 11,13; Dt 14,12). Pelo contrário, estas devem ser consideradas uma “abominação” (Lv 11,13) ou “coisa detestável” (Dt 14,3). Além disso, as antigas formulações jurídicas parecem incluir as “quatro espécies do corvus em Israel: o corvo-comum, a gralha-calva, a gralha-preta e o corvo-do-deserto” (Angerstorfer, 2015, p. 342).

Não obstante, ao prescrever essa restrição alimentícia, o legislador israelita não condena o corvo por não ser uma “ave pura comestível” (Dt 14,20). Pelo contrário, considerando todo o Pentateuco como direito, narra-se logo em seu início que, ao criar as “aves aladas”, Deus as avalia como “boas” (Gn 1,21). Mais ainda, junto com os “seres vivos na água”, os “seres vivos que voam” são merecedores da primeira bênção do Criador (Gn 1,20-22).

Também vale considerar que, “no livro do Levítico, o conceito ‘abominação’ guarda um significado mais restrito e técnico que o diferencia de ‘impuro’. Ambas as palavras se referem a animais que não são destinados à alimentação”; no entanto, “tocar a carniça de animais impuros leva à impureza ritual, mas esse não é o caso das criaturas rotuladas como ‘abomináveis’” (Hieke, 2014, p. 423). Portanto, tocar um corvo, em princípio, não é problemático. A proibição de comer determinadas aves, na verdade, parece visar antes à “separação de Israel dos outros povos, ou seja, dos costumes de culto deles na adoração de outros deuses, sendo que animais impuros serviam como objeto de culto ou sacrifício (cf. Is 65,4; 66,3.17; Ez 8,9s)”; além disso, quase todas as aves em questão “comem carne e, portanto, também sangue, o portador da vida” (Braulik, 1986, p. 108).

Contudo, a lei religiosamente motivada guarda ainda outro efeito. Por ter sua carne declarada incomestível, o corvo deixa de ser alvo de caça por parte do ser humano. Quer dizer, mesmo com certa proximidade ao ser humano, até pelo fato de Israel ser “uma área muito rica em pássaros” (Staubli, 1996, p. 99), o corvo goza de certa proteção, uma vez que o legislador israelita determina limites de acesso no que se refere aos animais selvagens.

3. O SABER ALIMENTAR(-SE)

O contraste não poderia ser maior quando se descobre a presença do corvo na vida de Elias. É no século IX a.C. que esse profeta anuncia uma seca a Acab (1Rs 17,1), rei de Israel, que tinha aderido ao deus Baal (1Rs 16,29-33). Para escapar dessa catástrofe ambiental, Elias, por ordem divina, “escondeu-se junto à torrente de Querit, a leste do Jordão”: não só para encontrar água para beber, mas também para comer, uma vez que “os corvos lhe levavam pão e carne pela manhã, e pão e carne à tarde” (1Rs 17,2-6). Isto é, os corvos (הָעֹרְבִים: 1Rs 17,4.6), cuja carne não pode ser comida, alimentam de modo milagroso o profeta refugiado, possivelmente – pelo que se subentende – também com a carniça de um animal morto e/ou dilacerado, embora esse tipo de alimento torne o ser humano “impuro” (Lv 17,15-16).

Tudo isso causa surpresa e chama a atenção. De fato, para sobreviver, é preciso comer, mesmo em tempos de maior carência e/ou em lugares inóspitos. Nesse sentido, é interessante descobrir que os corvos, aparentemente, são onívoros, ou seja, comem de tudo: sementes, frutos, animais que eles próprios matam e animais que encontram já mortos. São animais curiosos, que se adaptam a qualquer ambiente que os hospeda. Ou seja, mesmo que, entre os animais selvagens, façam parte dos mais frágeis, os corvos encontram seu nicho no ecossistema.

Elias é beneficiado por tal saber animal. Afinal, “Deus carinhosamente cuida da sobrevivência dele em uma região sem ser humano” (Albertz, 2006, p. 121), quando põe os corvos a serviço de seu profeta. Essas aves, pois, sabem como alimentar-se e, assim, sobreviver, mesmo que as circunstâncias sejam extremamente exigentes.

4. PROMOVEDOR DA JUSTIÇA

Em dois momentos, também de forma surpreendente, o corvo ganha uma função quando, de forma compensatória, se visa à promoção da justiça. Num deles, isso ocorre quando a terra de uma nação, em vista de seu comportamento, chega à desolação. Com os seres humanos e o gado mortos, com as construções transformadas em ruínas, os animais selvagens novamente tomam posse daqueles espaços dos quais, no passado, foram expulsos e/ou afastados. Eis o anúncio profético em relação a Edom: “Nunca mais haverá quem passe por lá” (Is 34,10), mas as aves selvagens, entre as quais o corvo, “tomarão posse” dessas terras e nelas “morarão” (Is 34,11). Caso se justifique a emenda crítico-textual, isso vale também para a Assíria e Nínive, quando “o corvo (lê-se עֹרֵב em vez de חֹרֶב) cantar na soleira” deles (Sf 2,14).

Outro momento dramático de promoção da justiça surge quando os filhos não sabem respeitar os pais e cuidar deles. Eis a atroz punição que a sabedoria proverbial anuncia para o caso, envolvendo outra vez a ave aqui estudada: “O olho que escarnece o pai e menospreza a obediência à mãe, os corvos da torrente o arrancarão e os filhotes do abutre o devorarão” (Pr 30,17). Ou seja, cabe a essas aves necrófagas a tarefa de tirar a bicadas e consumir o órgão de visão de quem não enxerga as necessidades nem dos próprios pais.

5. SÍMBOLO DA BELEZA

Porventura o corvo é bonito? Decerto, a cor de sua plumagem se destaca. Nesse sentido, ao descrever, da cabeça aos pés, a beleza de seu amado (Ct 5,10-16), também os “cachos dele” chamam a atenção da amada no Cântico dos Cânticos: são como “panículas de tâmaras”, isto é, um conjunto de racemos que formam um cacho, e “pretos como um corvo” (Ct 5,11). Isto é, ou essas palavras de admiração parecem investir no contraste atraente entre “o cabelo profundamente preto e a pele branca e brilhante do rosto” (Zakovitch, 2004, p. 223), ou o cabelo preto talvez “queira indicar saúde, juventude e vitalidade” (Keel, 1992, p. 53), em contraste com os cabelos brancos do idoso. Em todo caso, um grau elevado de pretidão e, com isso, a profundidade, a beleza e/ou a presença da cor em questão se fazem presentes, de forma extraordinária, nas penas de um corvo.

6. ALVO DA PROVIDÊNCIA DIVINA

Em seus discursos dirigidos ao sofredor Jó (Jó 38-41), o Senhor pergunta: “Quem prepara a provisão para o corvo, quando os filhotes dele gritam por socorro a Deus e vagueiam sem comida?” (Jó 38,41). A pergunta pressupõe que o corvo seja “o mais fraco entre os catadores necrófagos, pois apenas se banqueteia no final com o que os outros deixam para trás” (Keel, 1978, p. 82). Não obstante, também essa ave se alimenta pela graça divina e não fica sem comer.

De forma semelhante, a oração poética acolhe o Senhor, Deus de Israel, como quem “oferece alimento aos filhotes do corvo, quando clamam” (Sl 147,9). No caso, os animais em questão representam as criaturas pequenas e indefesas, dependentes dos cuidados de outros. Contudo, essa situação singular deixa clara a dependência existencial de todos os seres em relação à assistência e solicitude de Deus.

Fazendo parte do mundo pensado no Antigo Testamento, também Jesus de Nazaré dirige sua atenção aos pássaros dez vezes contemplados na Sagrada Escritura, dando a seguinte ordem a seus discípulos: “Olhai os corvos: não semeiam, nem colhem, não têm despensa nem celeiro e, no entanto, Deus os alimenta! Quanto mais valeis vós do que as aves!” (Lc 12,24).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A natureza, de forma semelhante à Sagrada Escritura, torna-se Palavra de Deus para quem a medita. A própria Bíblia, constantemente, celebra esse saber. Isto é, os mais diversos seres não humanos – fenômenos celestes e espaços terrestres, ar, água, solo e temperatura, vegetais e animais – aproximam o ser humano do mistério da vida e de Deus.

O exercício ecoespiritual aqui realizado, insistindo em um simples e místico olhar bíblico para o corvo – coabitante, com o ser humano, na terra, a casa comum de ambos –, permite buscar o sentido da própria existência e, com isso, um encontro autêntico com Deus. No caso, o corvo representa bem algumas dinâmicas fundamentais: a) após a catástrofe ambiental, é preciso sair dos abrigos, visando ao movimento exodal em busca de novas e mais justas convivências sobre a terra; b) diante da grande bênção divina que é a natureza, é preciso respeitar os recursos naturais, especialmente as fontes de alimentação; c) no entanto, deve prevalecer a preocupação com o que o necessitado precisa para alimentar-se; d) é preciso resistir aos que insistem em domínios, políticas opressivas e comportamentos desrespeitosos e humilhantes; e) deve-se olhar para o que é bonito; f) não há alternativa à confiança na Providência divina. Portanto, em vez de olhar de forma negativa e/ou indiferente para o corvo, a Bíblia convida seu ouvinte-leitor e sua ouvinte-leitora a aprender tudo isso com ele.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTZ, R. Elia: Ein feuriger Kämpfer für Gott. Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2006.

ANGERSTORFER, A. עֹרֵב ‘ōrēḇ. In: BOTTERWECK, G. J.; RINGGREN, H.; FABRY, H.-J. Theological dictionary of the Old Testament. Volume XI. Grand Rapids: Eerdmans, 2015. p. 341-343.

BRAULIK, G. Deuteronomium 1-16,17. Würzburg: Echter, 1986.

FERREIRA, H.; SUTTON, L. Ecological hermeneutics as a current trend in Old Testament research in the Book of Psalms. Acta Theologica, v. 44, n. 1, p. 306-321, 2024.

HIEKE, T. Levitikus 1-15. Freiburg: Herder, 2014.

KEEL, O. Das Hohelied. 2. ed. Zürich: Theologischer Verlag Zürich, 1992.

KEEL, O. Jahwes Entgegnung an Ijob: Eine Deutung von Ijob 38-41 vor dem Hintergrund der zeitgenössischen Bildkunst. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1978.

KEEL, O. Vögel als Boten: Studien zu Ps 68,12-14, Gen 8,6-12, Koh 10,20 und dem Aussenden von Botenvögeln in Ägypten. Freiburg: Universitätsverlag; Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1977.

KRAUSS, H.; KÜCHLER, M. As origens: um estudo de Gênesis 1-11. São Paulo: Paulinas, 2017.

STAUBLI, T. Die Bücher Levitikus, Numeri. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1996.

ZAKOVITCH, Y. Das Hohelied. Freiburg: Herder, 2004.

Matthias Grenzer*, Luciano José Dias** e Robersom Costa de Deus***

*doutor em Teologia Bíblica e mestre em História, leciona na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção da PUC-SP e na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI em Mogi das Cruzes-SP. E-mail: [email protected]
**é doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da PUC-SP. Leciona no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (Itesp) e no Centro Cristão de Estudos Judaicos (CCDEJ). E-mail: [email protected]
***é mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia da PUC-SP. E-mail: [email protected]