Publicado em maio – junho de 2018 - ano 59 - número 321
Nossa Senhora da Piedade: a imagem de Mãe que nos leva ao Filho
Por Dom Edson Oriolo*
Introdução
A terra mineira, com manifestações tão expressivas de fé e religiosidade, emaranhadas de tal forma na sua formação histórica, cultural e antropológica, tem na devoção a Nossa Senhora da Piedade a síntese de sua constituição marcadamente devota e privilegiadamente espiritual. Embora transmigrada do universo devocional europeu (ibérico), o culto à padroeira de Minas tem, entre nós, raízes populares e laicais, reveladoras da própria trajetória de nosso povo, desde os tempos coloniais até os nossos dias. O arquétipo do sofrimento (dado humano-histórico) e o pendor natural para as alturas (dado geográfico-cultural) fazem da devoção a Nossa Senhora da Piedade legítima expressão de fé encarnada no itinerário da pessoa que crê.
Em junho de 2015, nomeado pelo papa Francisco para a missão de bispo auxiliar na Arquidiocese de Belo Horizonte, tive uma experiência mais próxima com o Santuário Nossa Senhora da Piedade e a devoção à padroeira de Minas. Antes de iniciar meu ministério propriamente dito, tive a oportunidade de estar em Belo Horizonte para um primeiro contato com a nova realidade que se apresentava. É evidente que estes contatos iniciais traziam ao coração (algo próprio de tudo o que é novo) as apreensões e incertezas que já seriam supostas. Entre as surpresas e primeiras experiências, destaca-se o momento que motivou a presente reflexão. Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo da capital mineira, convidou-me a subir a Serra de Caeté e conhecer o Santuário Estadual de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas Gerais.
Percorridos os cerca de 30 quilômetros que separam a Serra de Caeté do centro de Belo Horizonte, iniciamos a subida, bastante íngreme, que leva à ermida secular da Senhora da Piedade. O dia frio e chuvoso, somado à densa neblina, em tudo me fazia recordar o conhecido percurso da Serra da Mantiqueira, entre minha terra natal, Itajubá-MG, e o Vale do Paraíba, tantas vezes percorrido no encalço de outro santuário mariano – de Nossa Senhora Aparecida. Atingidos os 1.746 metros acima do nível do mar, tendo a impressão de caminhar sobre as nuvens, adentramos a orada tão expressiva onde a imagem de Nossa Senhora, provável obra-prima do gênio mineiro Mestre Aleijadinho, parece envolver-nos em acolhida, compreensão e misericórdia: sua expressão é de sofrimento, porém acrisolada na fé e na esperança.
Vencido o impacto inicial, no aconchego da ermida, num silêncio quase contemplativo, coloquei-me em oração, deixando naturalmente se apresentarem os meus sentimentos e anseios. Por um momento, admirando os traços harmônicos da imagem, imaginei-me no colo de Nossa Senhora da Piedade: sua mão esquerda apoiando minha cabeça, como que abençoando o meu exercício mental e intelectual em vista da missão que se apresentava; a mão direita segurando minha mão, conduzindo-a para o seu coração, como a recordar a importância de perseverar nessa proximidade e de cultivar sempre um coração disponível, acolhedor e misericordioso como foi o coração da Mãe de Jesus e da Igreja. Naquele momento, pareceu-me importante aprofundar esses sentimentos. Na consciência aflorava a importância da devoção popular, sobretudo a Nossa Senhora, como a Igreja tem proposto como caminho para uma nova evangelização, para a transmissão da fé.
- Nossa Senhora na Serra da Piedade
Reza a tradição que, por volta de 1760, duas moças teriam visto, ao passarem pela Serra de Caeté, Nossa Senhora da Piedade. As duas moças (ou, segundo outra versão, uma menina somente) seriam mudas e teriam ficado curadas após a visão de Nossa Senhora, milagre esse atribuído à piedade da Mãe de Deus. Depois da visão e cura, a serra foi se afirmando como um lugar sagrado para a piedade popular. A partir desse acontecimento, digno de fé, a serra passa a ser vista com olhos diferentes por muitos que a conheciam e começa a ser chamada de Serra da Piedade.
É corrente a lenda de que, num povoado vizinho, denominado Penha, existia uma jovem muda que, certa vez, viu, no alto da Serra, a Virgem Maria, com seu Divino Filho nos braços. Depois da referida aparição, desatou-lhe a língua e ela começou a falar. Passando aquele fato, de boca em boca, talvez a ele se tenha atribuído a influência na escolha do local em que Bracarena construiu o templo em louvor da Virgem da Piedade (VITORIANO, 1967, p. 24).
A atuação miraculosa da Virgem, seja apenas pela aparição, seja pela cura, indicava a sua preferência pelo local. A visão da santa e a cura provocada fazem que se verifique uma afluência de grande número de fiéis, de várias regiões. “Vamos à serra! Vamos à serra!” passa a ser o convite a motivar dezenas, centenas e milhares de pessoas. Estas começam a divulgar entre seus familiares e comunidades a experiência religiosa ali vivenciada. A partir disso, surge a necessidade de construir ali um local para orações. O alto da serra começa, então, a se transformar num ponto de encontro entre milhares de devotos, tanto das Minas Gerais como de outros estados do Brasil.
Nesta região, mais precisamente na cidade de Sabará, havia um senhor, Antônio Bracarena, que muitos historiadores apontam como um foragido de Portugal. Ele viera procurar em Minas o isolamento e o anonimato que o livrassem de perseguições ou da prisão. Exercia o ofício de pedreiro, mediante o qual veio a se tornar um homem abastado naquelas paragens.
O senhor Bracarena queria enriquecer e voltar para seu país. Seu projeto de retorno à terra natal, porém, acabou por ser abandonado em decorrência dos acontecimentos que lhe despertaram a atenção: a aparição de Nossa Senhora e a cura acontecida na serra. Com a propagação do relato da visão que as moças tiveram de Nossa Senhora da Piedade e a cura de muitos outros romeiros que começavam a ir até lá, a serra, que em nada chamava a atenção, tornou-se um lugar de peregrinação.
Para facilitar a chegada das pessoas ao alto da serra, Bracarena decide construir ali algo que estimulasse ainda mais tal caminhada: uma capela, que seria um referencial para o andarilho – fosse penitente ou estivesse ansioso por um local adequado para orar e aproximar-se das coisas divinas.
Após requerer todas as licenças necessárias para construir uma capela em lugar de tão difícil acesso, começa a desfazer-se de seus bens para financiar os custos do empreendimento. Bracarena ocupa todo o seu tempo na construção da capela ou, conforme suas próprias palavras, em servir a Mãe de Deus.
Foi exatamente no dia 30 de setembro de 1767 que a Diocese de Mariana-MG autorizou a construção da capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade no alto da serra. Depois de 191 anos de muita devoção, o papa João XXIII, em 1958, proclama Nossa Senhora da Piedade como padroeira de Minas Gerais.
- A imagem de Nossa Senhora da Piedade
Quem entra na ermida se depara com uma bela imagem de Nossa Senhora da Piedade num retábulo em estilo rococó. A imagem, em estilo barroco, é peça de indubitável valor artístico, não só pela riqueza de composição, como também pelo acabamento precioso e de grande expressividade. Sua procedência e autoria não podem ser comprovadas.
Sobre a imagem de Nossa Senhora da Piedade, temos alguns comentários: “Nada dizem os documentos encontrados a respeito da imagem, se feita no Brasil ou se viera da metrópole” (MENEZES, 1971). “A imagem que até hoje ali se venera – e que tem fama de milagrosa – é a mesma que Bracarena mandou vir de Portugal” (ALMEIDA, 1950, p. 269).
Bibliografia mais recente relativa à imagem de Nossa Senhora da Piedade atribui sua autoria a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, de Judith Martins, bem como o trabalho do professor Edmundo Bezerril Fontenelle, O Aleijadinho na Serra da Piedade, buscam provar a referida autoria, apontando, na escultura, a presença das características mais marcantes do trabalho do célebre artista.
A imagem está na capela no alto da serra. Colocada em nicho central ao retábulo e sobre um pedestal, suas formas são valorizadas pela luz que jorra da janela circular, situada na parede posterior da capela-mor. Essa luz enfatiza o efeito barroco de profundidade pelas mutações que opera sobre as superfícies da imagem constituída de uma unidade tripartida: a Virgem Dolorosa, tendo deitado em seu regaço o Filho morto, cuja cabeça repousa sobre um querubim.
Esculpida em cedro nacional e medindo 1,25 metro de altura por 1 metro de largura, apresenta-se em composição piramidal, tendo como vértice a cabeça da Virgem, cujo olhar compungido se dirige à cabeça inerte do Filho à sua esquerda. Levemente diagonal em relação à base, o corpo de Cristo mostra-se com uma incorreção anatômica, com o objetivo de poder ser contido no colo da mãe. Apesar de ter modelagem potente, nota-se não haver espaço suficiente para conter um corpo viril como o sugerido pelo tronco em que ele se apoia (MENEZES, 1971, p. 48).
Nossa Senhora da Piedade está vestida de maneira sóbria, e as várias restaurações por que passou deixaram à mostra, no planejamento, uma estamparia floral em ouro, evidenciando o apuro e cuidado com que foi executada.
- A imagem religiosa de Nossa Senhora da Piedade
A imagem evoca a divindade. Leva-nos a participar do mistério que exprime. Está repleta de mensagem teológica, não pela argumentação racional, mas pela própria densidade imagética. Por isso, a imagem de Nossa Senhora da Piedade suscita sentimento de reconforto, de proteção, de sentir-se em casa, de acolhida, de ternura, de gratidão, de louvor. Quantos sentimentos podemos ter e manifestar aos pés dessa imagem, que nos transmite duas realidades: a mensagem que ela deseja comunicar por meio da contemplação e o que podemos manifestar, de dentro de nós, mediante a oração.
Uma vez que a imagem não é apenas um retrato, uma lembrança, mas uma mensagem densa de significado traduzida simbolicamente, é como se Jesus estivesse interrogando aqueles espiões “que se fingiam de justos” (Lc 20,20).
A Senhora da Piedade traz Jesus em seu colo. Essa representação ultrapassa a materialidade daquilo que vemos e nos leva para o sobrenatural, assim como a refletir que nascemos do colo de nossa mãe. O colo materno que nos acolheu, alimenta e propicia o espaço para nos tornarmos seres humanos. Desde o início, somos carregados nesse colo, que, depois do nascimento, se torna um bálsamo no qual nos deitamos e nos alimentamos, física e emocionalmente. Um colo ao qual se pode continuar a ser sempre bem-vindo durante a vida toda.
O devoto se dirige constantemente à Mãe de Jesus para pedir e agradecer. E os motivos são muitos: proteção recebida como cura de doenças, solução de problemas familiares, pedido de paz para o coração e força para a missão diária.
Pode-se dizer que a imagem da Piedade ajuda a vivenciar esta realidade. “Maria é, ao lado do seu Filho, a imagem mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmo” (Libertatis Conscientia, n. 97).
A imagem de Nossa Senhora da Piedade está repleta de mensagem teológica, não pela argumentação racional, mas pela própria densidade devocional. Trata-se de uma das marcas do catolicismo brasileiro. A devoção mariana sempre esteve presente no processo evangelizador. Não é errado afirmar que, no Brasil, Jesus veio pelas mãos de Maria.
Assim, Maria foi para o nosso povo e é, de fato, a estrela da evangelização, como a chamou o papa Paulo VI (Evangelii Nuntiandi, n. 82). “Ela é o ponto de união entre o céu e a terra. Sem Maria desencarna-se o evangelho, desfigura-se e transforma-se em ideologia, em racionalismo espiritualista” (Documento de Puebla, n. 301).
A imagem de Nossa Senhora da Piedade manifesta a beleza e a simplicidade do sofrimento de todas as mães. Nela se percebe tudo o que uma mãe deseja: proteger o seu filho, assim como o filho busca encontrar no colo de sua mãe a proteção materna. Acontecem confidências que não se fazem senão à própria mãe.
Pode-se adivinhar o que sente o peregrino no mais íntimo do coração. Ao postar-se diante da imagem de Nossa Senhora da Piedade, fecha os olhos em silêncio, balbucia sua prece e quer tocar, acariciar e beijar a imagem. Essa mãe, sob o título da Piedade, tem em suas entranhas a misericórdia; sabe consolar, inspira autoestima, infunde coragem e garante proteção a quem a procura naquele monte sagrado.
Mas o diferencial da beleza da imagem é que ela nos leva ao mistério de Cristo. Nossa Senhora da Piedade não é figura isolada ou santa mais importante do que Jesus. Ela, ao mesmo tempo que está com Jesus ao colo, no-lo apresenta para que o sigamos.
A imagem de Nossa Senhora da Piedade traz-nos uma lição importante: o equilíbrio que deve haver entre o culto a Maria e sua centralidade cristológica. Assim, resgata-se a contribuição do Concílio Vaticano II no sentido de recolocar Maria no lugar certo.
- A imagem que nos leva a Cristo
A imagem de Nossa Senhora da Piedade, que apresenta o Filho no colo da mãe, revela que Maria é uma pessoa viva e, sobretudo, uma mãe que se preocupa com a sorte de seus filhos e filhas. Nesta imagem, Maria, além de manifestar o poder de gerar Deus, demonstra o zelo de cuidar dos filhos dele.
Neste contexto, observamos o carinho, o amor e a ternura do povo de Deus para com Nossa Senhora da Piedade. A partir daí, podemos falar da fé expressa pela piedade popular.
A Sacrosanctum Concilium e alguns recentes documentos do Magistério sobre a religiosidade popular ensinam:
A piedade popular, que se exprime de diversas formas, muito divulgadas, quando genuína, tem como fonte a fé e deve, portanto, ser apreciada e favorecida. Nas manifestações mais autênticas não se contrapõe à centralidade da Sagrada Liturgia, mas, favorecendo a fé do povo, que a considera sua conatural expressão religiosa, predispõe à celebração dos sagrados mistérios (n. 4).
A piedade popular, sem dúvida, é um tema importante e delicado. No Sínodo dos Bispos de 1974, o cardeal Pirônio sintetizou e definiu a piedade popular como a maneira pela qual o cristianismo se encarna nas diversas culturas e etnias e, assim, é vivido e manifestado pelo povo.
João Paulo II, na Vicesimus Quintus Annus (dezembro de 1988), advertiu-nos:
A piedade popular não pode ser ignorada nem tratada com indiferença ou desprezo, pois é rica de valores e, já por si, exprime atitude religiosa perante Deus. Mas precisa ser constantemente evangelizada para que a fé que exprime seja um ato cada vez mais maduro e autêntico. Aconselham-se e recomendam-se as pias práticas e formas de devoção, uma vez que não substituam ou se misturem com as celebrações litúrgicas (n. 18).
Para ajudar a entender essa realidade, vamos fazer memória do ensinamento do papa Bento XVI, quando escreveu aos seminaristas em outubro de 2010:
A piedade popular tende para a irracionalidade e, às vezes, talvez mesmo para a exterioridade. No entanto, excluí-la é completamente errado. Através dela, a fé entrou no coração dos homens, tornou-se parte dos seus sentimentos, dos seus costumes, do seu sentir e viver comum. Por isso a piedade popular é um grande patrimônio da Igreja. A fé fez-se carne e sangue. Sem dúvida a piedade popular deve ser sempre purificada, referida ao centro, mas merece a nossa estima; de modo plenamente real, ela faz de nós mesmos “Povo de Deus” (BENTO XVI, 2010).
Na exortação apostólica A Alegria do Evangelho, o papa Francisco dedica-se, em alguns parágrafos, a ressaltar o que ele denomina “a força evangelizadora da piedade popular”. Trata-se de uma visão positiva, pois considera as manifestações religiosas populares, não oficiais e sem controle do clero, como uma expressão do sensus fidelium. Não são algo meramente folclórico, mas fazem parte da inculturação da fé. Neste contexto “ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da atividade missionária espontânea do povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo protagonista é o Espírito Santo” (EG 122-126).
No entanto, precisamos entender bem a piedade popular para contemplar a imagem de Nossa Senhora da Piedade de modo que ela favoreça o encontro com Jesus numa experiência cristã de Deus. Maria não é igual a Jesus. Toda de Deus e tão humana, por meio da contemplação da sua imagem, chegamos ao mistério da encarnação do Verbo.
Se, na piedade popular e na devoção a Maria, valorizarmos mais a figura da Mãe do que a do próprio Filho, se essa piedade e essa devoção forem vividas sem clara adesão de fé, correm o risco de se contaminar com deformações e superstições: limitar-se aos desejos imediatos em vez de privilegiar o que é fundamental (visão mágica da fé); acentuar o tradicionalismo, até o fanatismo e o individualismo, que não deixam espaço para a comunhão. Transformam-se, assim, numa alienação da realidade, à margem da Igreja.
Afinal, é o mesmo Jesus Cristo que todos buscam – os teólogos e os devotos da piedade popular, principalmente por meio das imagens de Nossa Senhora. Devemos aproveitar os momentos das festas populares dedicadas a Maria para oferecer uma catequese litúrgica e cristológica, com adequada pedagogia, ajudando os cristãos a avançar do mero culto ao seguimento, da sensibilidade subjetiva à solidariedade para com os mais necessitados. A missão, então, supõe inclusão e aprendizagem.
Entre os santos, destaca-se a Mãe de Jesus, provavelmente a mais popular e a titular de muitas dioceses, paróquias e comunidades. É padroeira, inclusive, da nação brasileira. No Estado de Minas Gerais, temos Nossa Senhora da Piedade. As festas dedicadas aos títulos de Nossa Senhora são comemorações coletivas de uma crença que congrega toda a comunidade em torno daquela cuja vida foi testemunho, de modo exemplar, da fé em Cristo.
Intimamente unida a Jesus, está também unida ao povo de Deus. Ela acompanha os seus filhos e é para eles fonte inesgotável de esperança. Por isso, recorre-se a Maria como Mãe do Salvador, para sentir constantemente a sua proteção amorosa, sob muitas devoções. E Nossa Senhora da Piedade tem grande importância para o imaginário do povo católico mineiro, cuja devoção, aperfeiçoada e purificada, constitui forte meio de evangelização e de formação de discípulos missionários de Jesus Cristo.
- A imagem de Nossa Senhora da Piedade: ícone do sofrimento ressignificado
Ao contemplarmos os traços da imagem de Nossa Senhora da Piedade, venerada há quase três séculos em seu santuário na Serra de Caeté, identificamos um legítimo ícone, tal como é compreendido pela tradição artística cristã. Um sinal sensível que irradia uma presença. O ícone difere da simples representação piedosa na medida em que, quase simultaneamente, esconde e revela o mistério que quer expressar: esconde na medida em que pressupõe um envolvimento de fé, uma leitura contemplativa; revela não apenas para uma admiração estética e piedosa, mas, em vez disso, supondo-as, porque conduz a uma experiência de identificação e autoprojeção que perpassa o racional e a emotividade, integrando-nos no que expõe. O ícone é para contemplar “olhos nos olhos” e assim estabelecer um diálogo no caminho da santificação.
A leitura icônica da imagem da padroeira de Minas nos remete ao mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus com um recorte bem específico: a maternidade, seja ela biológica ou espiritual. O ter/ser mãe é dado essencial na constituição afetiva e autorreferencial do ser humano, também dentro da história da salvação. Aqui, a cena da mãe que traz o filho ao colo serve como pano de fundo para o acontecimento central que é a doação radical de Deus na vitória sobre o pecado e a morte. Maria é ícone do amor de Deus, na medida em que sintetiza o mistério de quem ama sofrendo e sofre amando. A expressão simbólica da imagem de Nossa Senhora, sob o título de Mãe da Piedade, impõe-se como paradigma de sofrimento, lido sob a perspectiva pascal.
Maria nos acolhe com nossos sofrimentos. O Senhor quer nos colocar no colo de sua mãe para que sejamos acolhidos por ela. A mãe passa a mão em nossas chagas e com amor nos cura. O colo de Maria cura as nossas dores e enfermidades da alma. Ela é mãe que sustenta as nossas dores.
Após Jesus ser descido da cruz, Maria, ao pé do madeiro, coloca em seu colo um corpo totalmente chagado e desfigurado. Antes de ser sepultado, Jesus passa novamente pelo colo de Nossa Senhora. Esta é a imagem de Nossa Senhora da Piedade.
Diante dessa convicção, somos impelidos a uma nova mística do sofrimento que tão bem podemos contemplar na imagem de Nossa Senhora da Piedade. O olhar de Maria é de um sofrer profundo, mas não denota desespero, menos ainda simples resignação. É um olhar inconformado, pelo Filho – bom e justo – que aparentemente está aniquilado, mas, sobretudo, consciente da missão e do amor demonstrado no gesto da doação extrema. Maria encara o sofrimento como o entardecer que prenuncia um novo amanhecer. Sofre pelas chagas que lhe marcam a vestimenta, sofre pela rememoração dos açoites e humilhações, sofre pela separação do momento: mas espera com confiança. O anjo do seu lado direito, expressão tradicional da presença da divindade, apoia-lhe o corpo, que segura o corpo do filho, como sinal da fé, da convicção da assistência e presença de Deus: mesmo no sofrimento, Ele é o esteio de sua criatura, a qual é o objeto mais precioso do seu bem-querer.
Outros traços significativos nessa rica iconografia são a posição das mãos – uma sustenta a cabeça do filho e a outra dirige a mão dele na direção do próprio coração – e o fato de Nossa Senhora estar calçada. Certamente, para além das expressões próprias da escola artística, tais detalhes carregam um profundo sentido na leitura do ícone. As mãos de Nossa Senhora traçam um caminho singular da vida espiritual do ser humano: Deus nos deu a sabedoria e o discernimento, representados no intelecto, para afugentarmos, na medida de nosso potencial, o sofrimento de nossos irmãos e irmãs. No entanto, nós só o faremos se permitirmos que a mão misericordiosa de Deus conduza os caminhos do coração para o amor e a compaixão. Finalmente, o fato de Nossa Senhora estar calçada nos remete para a prontidão na caminhada. Mesmo no sofrimento, é preciso ir além, vencer a inércia, o medo e continuar o caminho, à espera do dia feliz da ressurreição de cada mazela pela qual possamos passar.
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Dom Edson Oriolo*
*Dom Edson Oriolo, bispo auxiliar de Belo Horizonte, mestre em Filosofia Social, especialista em Marketing, Gestão de Pessoas e Aristóteles. Leader e Professional Coach. Escreve para várias revistas e periódicos sobre gestão eclesial, paróquias, Pastoral Urbana e Pastoral do Dízimo.