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Publicado em maio-junho de 2025 - ano 66 - número 363 - pp. 18-25

LAUDATO SI’: DEZ ANOS DEPOIS UM CAMINHO A PERCORER

Por Pe. Lúcio Flávio Ribeiro Cirne, sj*

Ao abordar a complexa crise ecológica, a encíclica Laudato Si’, em consonância com o horizonte pastoral inaugurado pelo papa Francisco, apresenta uma ecologia integral como caminho para o cuidado da Casa Comum. Dez anos depois, em face do agravamento da crise, a mensagem continua urgente e atual, mostrando que ainda há muito o que fazer.

 

1. No sulco do Vaticano II e no caminho da Evangelii Gaudium

 O ministério do papa Francisco tem como principal referência o Concílio Vaticano II. “Filho da renovação conciliar”, é no “sulco traçado pelo Concílio” que Francisco vai definir o caráter eclesial e pastoral do seu magistério, buscando dar continuidade ao movimento de abertura e serviço da Igreja ao mundo e de discernimento dos “sinais dos tempos” (Aquino Júnior, 2024, p. 163-167). Essa perspectiva de seguimento do espírito conciliar aparece claramente na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG), publicada por Francisco em novembro de 2013, no primeiro ano do seu pontificado.

Nesse texto programático, ele acentua a necessidade de urgente “transformação missionária da Igreja”, faz incisivo convite para nova etapa evangelizadora e indica caminhos para que a mensagem do Evangelho ecoe com novas formas de expressão e com “palavras cheias de renovado significado para o mundo atual” (EG 1-11). É interessante notar que componentes textuais da EG, certamente não por acaso, aparecem como pressupostos no método e no conteúdo da futura encíclica Laudato Si’ (LS), que será publicada dois anos depois. Vejamos rapidamente alguns desses pontos.

O primeiro, que diz respeito à dimensão missionária da comunidade eclesial, é o chamado para ser “uma Igreja em saída”, capaz de levar a alegria do Evangelho a todos os lugares, a todas as pessoas, sem excluir ninguém: “Todos somos convidados a aceitar este chamado: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Periferias, para Francisco, são as situações – geográficas, sociais, existenciais – marcadas pela marginalização e sofrimento (Aquino Júnior, 2024), nas quais se encontram os pobres, os “destinatários privilegiados do Evangelho”, cuja presença é central no caminho da nova evangelização (EG 198), de tal modo que a opção pelos pobres e a tarefa de “cuidar dos mais frágeis da terra” (EG 198; 209) estão no coração da missão da Igreja. Aqui está um dos pontos basilares da LS, cujo texto vai mostrar a inseparabilidade entre a preocupação com a natureza e a justiça para com os pobres (Ferraro, 2016).

O segundo, ligado ao anterior, diz respeito à Igreja em saída, que, na proposta de Francisco, é também uma Igreja que sabe que não “possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas contemporâneos” (EG 184), por isso quer ser uma Igreja de portas abertas, em contínuo diálogo com o mundo, com a sociedade em suas diversas expressões: com os poderes públicos, as culturas, as ciências e as religiões; enfim, com todas as pessoas crentes e não crentes que buscam e promovem o bem comum (EG 238-257). Na LS, consciente “da complexidade da crise ecológica e das suas múltiplas causas” e do enorme e premente desafio de salvar o planeta, Francisco reconhece que “as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade” (LS 63). Por isso se dirige a toda a família humana, fazendo o apelo a um renovado diálogo e a um debate que una todas as pessoas: “Todos podemos colaborar no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades”. Precisamos, diz o papa, “de nova solidariedade universal” (LS 14).

O terceiro, por fim, é o próprio tema ecológico. Com a atenção voltada para os complexos problemas que afetam e desafiam a convivência social, emerge na EG a preocupação ecológica sobre a qual a ação evangelizadora da Igreja precisa dar uma palavra que suscite valores e ilumine novo modo de relacionamento com Deus, com os outros e com o ambiente (EG 74). Ao tratar da dimensão social da evangelização, Francisco denuncia os interesses econômicos que fazem um uso destrutivo e indiscriminado do “conjunto da criação”, provocando males como a desertificação e a extinção das espécies, e faz veemente apelo para que a ação humana não deixe rastros de destruição e de morte que afetem a vida presente e a das futuras gerações (EG 215). A exemplo de São Francisco de Assis, os cristãos têm a dupla missão de cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos (EG 216). Aqui percebemos que já emerge o horizonte relacional e integrador na preocupação pastoral de Francisco: isto é, na base geradora da crise socioambiental, que afeta igualmente o ser humano e a natureza que o envolve, está um modelo econômico que polui, empobrece e destrói. Como se sabe, esse tema é retomado e amplamente desenvolvido por Francisco na Laudato Si’ (Boff, 2016).

2. Alguns destaques

A pedido da então ministra do Meio Ambiente da França, Francisco publicou a LS em maio de 2015, antes da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 21), realizada naquele ano em Paris. “É importante que a Igreja faça sua voz ser ouvida nesse processo vital e necessário – é o que pede a nossa fé”, dirá mais tarde Francisco, reconhecendo, no grave cenário da crise que põe em risco o próprio destino da humanidade, a positiva repercussão e recepção da encíclica na comunidade internacional (Francisco, 2020, p. 39). De fato, a LS tem sido, no contexto histórico em que vivemos, uma referência para os estudos e debates sobre o tema nas diferentes esferas da sociedade, bem como, internamente, uma marca decisiva no magistério social da Igreja, com profundas motivações e provocações de caráter pastoral. A riqueza, a pertinência e as perspectivas com que o papa aborda a complexa questão ecológica já foram objeto de análise de vários comentadores. Com a brevidade que o espaço aqui impõe, selecionamos, entre outros, alguns desses aspectos.

Chama-nos a atenção, em primeiro lugar, o olhar teológico com que Francisco considera a natureza. Ao reconhecer e acolher as diversas interpretações da realidade, convidando os diversos saberes a um diálogo enriquecedor, ele apresenta a intencionalidade original da fé judaico-cristã a respeito da criação: “Dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto de amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado” (LS 76). Essa afirmação tem profunda densidade ecológica. Ao compreender a natureza como criação, reconhece-se uma dimensão sacramental no mundo criado: o mundo é criação de Deus e é portador de profundo significado; isto é, cada criatura, a seu modo, é reveladora da bondade e beleza do Criador. Por conseguinte, o mundo natural tem valor próprio, a natureza – todas as criaturas, vivas e não vivas, humanas e não humanas – vale por si mesma, independentemente do uso que dela possa fazer o ser humano. O valor das coisas criadas lhes vem por conta não de sua referência ao humano, mas sim do amor que Deus tem a cada criatura. O dano que se faz à natureza, a destruição ambiental, é, pois, uma ofensa ao Criador, presente em cada criatura – ou, como lamentava T. Berry, cada ser que se extingue é a voz do Criador que silencia para sempre (Berry, 1990). Assim, conclui o papa, é inaceitável uma visão reducionista da natureza, considerada unicamente como objeto de lucro e interesse, submetida ao domínio arbitrário do ser humano (LS 82). Ao contrário, devido à sua peculiar condição entre as criaturas, cabe ao ser humano a “tremenda responsabilidade” de cuidar do conjunto da criação e preservá-lo (LS 90). Ao lado de outras legítimas motivações ambientalistas, aqui reside o motivo propriamente teologal para o engajamento na luta ecológica: salvaguardar nossa Casa Comum, habitada misteriosamente pelo Criador, que a guia para um destino de plenitude (LS 100).

Ao lado dessa compreensão oriunda da fé judaico-cristã, a Laudato Si’ adota um campo conceitual de natureza que vai dar uma densidade nova à análise da crise ecológica e aos caminhos a seguir. Trata-se da perspectiva social de ambiente, isto é, da “relação entre a natureza e a sociedade que a habita” (LS 139). Aqui aparece uma abordagem integrativa que supera o equívoco de separar os componentes biofísicos e sociais do ambiente. Dito de outro modo, o que está subentendido é que, ao falar em crise ambiental, deve ser considerada a estreita interação entre o dinamismo da “natureza” e o dinamismo da “sociedade” (Becker, 1993). Nesse ponto da caminhada, Francisco já elegera um princípio que vai se repetindo, como que um ponto de costura, ao longo de toda a encíclica: “Tudo está intimamente relacionado e os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise” (LS 137). Esse princípio reflete o denominado paradigma ecológico, integrador ou sistêmico, cujo referencial científico é a “teoria geral dos sistemas” (Cirne, 2013, p. 99-101). Com esse esquema teórico, Francisco propõe uma “ecologia integral” que inclui claramente as dimensões humanas e sociais. Como dirá posteriormente, “Laudato Si’ não é uma encíclica ‘verde’. É uma encíclica social. O verde e o social caminham juntos: o destino da criação está unido ao destino de toda a humanidade” (Francisco, 2020, p. 39-40). Assim, “as diretrizes para a solução [da crise socioambiental] requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). Como resume Aquino Júnior (2024, p. 327), “em última instância, a LS é um apelo a ouvir os gritos/clamores/gemidos da terra e dos pobres”.

Para responder positivamente a esse apelo, Francisco sabe que é necessária a formação de um novo sujeito ecológico, portador de uma “consciência que permita o desenvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida” (LS 202). Por isso, põe em evidência – este é o terceiro ponto que destacamos – a importância de uma educação e de uma espiritualidade que impliquem verdadeira “conversão ecológica” (LS 216-221) tanto no âmbito pessoal como no coletivo e social: “Não basta que cada um seja melhor […] Aos problemas sociais responde-se não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias” (LS 219). Urge usar os mais variados espaços: família, escolas, meios de comunicação, política, a Igreja (LS 213-214). Importa promover uma espiritualidade que ajude no processo de mudança de atitudes, de transformação pessoal/comunitária em direção a um relacionamento mais harmonioso com o próximo e com a natureza, gerando um “amor civil e político” (LS 228-232) que “toca não só as relações entre os indivíduos, mas também ‘as macrorrelações, como relacionamentos sociais, econômicos e políticos’” (LS 231).

3. Longo caminho ainda a percorrer

Vimos que, como foi proposto na EG, a “transformação missionária da Igreja” requer, no mundo contemporâneo, uma nova evangelização, que vai encontrar na “ecologia integral” o caminho para salvaguardar a vida das gerações atuais e daquelas que virão. Dez anos depois de seu lançamento, a LS ainda tem longo caminho a percorrer como meta de toda a pastoral da Igreja, e ainda há muito o que fazer para alcançar o desejado cuidado e preservação da nossa Casa Comum. Mesmo com toda a repercussão que obteve (mídia mundial, encontro de governos, eventos acadêmicos e eclesiais em várias partes do mundo), há indicações de que muitos católicos desconhecem seu conteúdo ou não concordam que a Igreja deve estar comprometida com um tema como o meio ambiente (Laudato […], 22 jun. 2023). Na Jornada Mundial da Juventude, num encontro com universitários da Universidade Católica Portuguesa, o próprio papa ouviu dos jovens que “há muitos pastores e fiéis que não conhecem a LS nem os esforços que se realizam pela proteção da criação” (O que os jovens […], 4 ago. 2023).

Paradoxalmente, a degradação da natureza continua em ritmo acelerado, com evidentes sinais do aquecimento do planeta e da mudança climática global: eventos extremos, ondas de calor, enchentes e furacões, secas intensas estão se tornando mais frequentes e destrutivos. Nesse contexto progressivo de deterioração, a mensagem da LS mostra-se cada vez mais atual e urgente, a tal ponto que, em 2023, preocupado com a possibilidade cada vez mais real de que estejamos nos “aproximando de um ponto de ruptura”, o papa publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum, alertando sobre a gravidade da crise climática. Retomando os princípios e propostas da LS, Francisco denuncia as atitudes negacionistas das pessoas que minimizam o problema (LD 6), como também a falta de coragem dos governantes para as decisões efetivas (LD 56), e renova o apelo para uma caminhada em comunhão e com responsabilidade, em vista das necessárias mudanças (LD 66-72).

No âmbito da recepção positiva, é inegável o impacto provocado pela LS nestes 15 anos, a começar pela própria estrutura do documento, pela riqueza e pela densidade dos aspectos e das perspectivas com que Francisco aborda a questão ecológica e pela radical novidade do caminho proposto para o enfrentamento e a superação da crise socioambiental. Sem dúvida, “a LS marca/inaugura uma nova fase do magistério social da Igreja: seja pela ampliação da chamada ‘questão social’, seja pela radicalidade de seu enfoque” (Aquino Júnior, 2023, p. 325). A mensagem da encíclica – o cuidado da Casa Comum e a ecologia integral – tem contagiado e suscitado uma rede de reflexões e ações nos mais variados segmentos da política, da educação, da cultura, dos movimentos sociais e religiosos, gerando processos transformadores nos mais variados níveis da sociedade. Entre tantos, podemos mencionar a “Semana Laudato Si’” e o “Tempo da Criação” como exemplos de iniciativas mundiais dedicadas à reflexão e à ação em torno dos ensinamentos e apelos da encíclica.

Um evento eclesial que mostrou a ressonância da LS em uma contextualização concreta e marcante foi o Sínodo para a Amazônia (2019), com o tema: “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, do qual resultou a exortação Querida Amazônia (QA), cujas inspirações básicas se encontram na encíclica Laudato Si’ e orientam para uma recepção criativa e frutuosa do próprio Sínodo, de modo que, ao conhecer e percorrer o “caminho das periferias geográficas e existenciais” daquela imensa região – onde o avanço do desmatamento, dos garimpos ilegais, das queimadas, do gado e da soja representa constante ameaça –, as comunidades evangelizadoras possam dar à Igreja “rostos novos com traços amazônicos” (QA 7).

Muito significativa para o Brasil, neste ano de 2025, é a Campanha da Fraternidade, com o tema “Fraternidade e ecologia integral”, que tem entre seus objetivos “reconhecer o caminho percorrido e as ações já iniciadas com a encíclica LS e o Sínodo da Amazônia, em vista do seu fortalecimento e continuidade” (CNBB, 2024, p. 7). Nas ricas proposições para o agir, destacam-se “as atitudes e iniciativas sociais no âmbito da boa política” (CNBB, 2024, p. 160), alinhadas com as preocupações e objetivos da próxima Conferência Mundial sobre o Clima (COP 30), que acontecerá de 10 a 21 de novembro de 2025, na cidade de Belém-PA.

Por fim, no Ano Jubilar de 2025, somos convocados pelo papa para “contemplar a beleza da criação e cuidar da nossa Casa Comum”, sob a inspiração do Cântico das Criaturas, cujo aniversário de 800 anos vamos celebrar ao longo de todo este ano. Sim, ainda temos muito o que fazer. Continuemos no “caminho para um futuro melhor” e deixemos que a poesia e a beleza do cântico franciscano nos ajudem “a descentrar e a transcender, para que nossos povos tenham vida” (Francisco, 2020, p. 148).

Referências bibliográficas

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AQUINO JÚNIOR, F.  Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia. São Paulo: Paulus, 2024.

BECKER, B. Meio ambiente: matriz do pensamento geográfico. In: VIEIRA, P. F.; MAIDON, D. As ciências sociais e a questão ambiental, rumo à interdisciplinaridade.
Rio de Janeiro: APED/UFPA, 1993.

BERRY, T. The dream of the Earth. San Francisco: Sierra Club Books, 1990.

BOFF, L. A encíclica do papa Francisco não é “verde”, é integral. In: MURAD, A.; TAVARES, S. S. Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da “Laudato Si’”. São Paulo: Paulinas, 2016.

CIRNE, L. F. R. O espaço da coexistência: uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. São Paulo: Loyola, 2013.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). Fraternidade e ecologia integral: texto-base da CF-2025. Brasília, DF: Ed. CNBB, 2024.

FERRARO, B. “Laudato Si’” e a opção pelos pobres. In: MURAD, A.; TAVARES, S. S. Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da “Laudato Si’”.
São Paulo: Paulinas, 2016.

FRANCISCO, Papa. Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

LAUDATO Si’: 56% dos católicos não conhecem a encíclica do papa Francisco. IHU, 22 jun. 2023. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/publicacoes/78-noticias/629840-laudato-si-56-dos-catolicos-nao-conhecem-a-enciclica-do-papa-francisco. Acesso em: 11 dez. 2024.

O QUE OS JOVENS disseram ao papa: “Muitos bispos e fiéis não conhecem a Laudato Si’”. IHU, 4 ago. 2023. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/631128-o-que-os-jovens-disseram-ao-papa-muitos-bispos-e-fieis-nao-conhecem-a-enciclica-laudato-si. Acesso em:
11 dez. 2024.

Pe. Lúcio Flávio Ribeiro Cirne, sj*

*é religioso jesuíta, professor de Teologia na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e diretor do Instituto Humanitas Unicap. E-mail: [email protected]