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Publicado em setembro – outubro de 2018 - ano 59 - número 323

Introdução ao livro da Sabedoria

Por Maria Antônia Marques

Introdução

Algumas afirmações do livro da Sabedoria: “A Sabedoria é um espírito amigo dos seres humanos e não deixa impune quem blasfema com os lábios” (Sb 1,6); “A vida dos justos está nas mãos de Deus e nenhum tormento irá atingi-la” (Sb 3,1); “A Sabedoria se mostra facilmente a quem lhe tem amor e se deixa encontrar por aquele que a procura” (Sb 6,12); “Tu amas tudo o que existe e não detestas nada do que fizeste. Mas tudo poupa, pois tudo é teu, Senhor, amigo da vida” (Sb,11,24.26).

Essa obra foi escrita em grego, no final do séc. I a.C., na colônia judaica de Alexandria. O título do livro aponta para a “Sabedoria” como o tema principal. De fato, na primeira parte, o autor destaca a importância da Sabedoria como caminho para a justiça e a vida (cf. Sb 1,1-6,21). Na parte central do livro, há uma descrição da origem e da natureza da Sabedoria (cf. Sb 6,22-9,18); na última parte, o autor faz um resgate da ação da Sabedoria na história (cf. Sb 10-19).

Contudo, o tema central do livro é a justiça, que está intimamente relacionada com a Sabedoria. Desde o primeiro versículo, lemos: “Amem a justiça, vocês que julgam a terra” (Sb 1,1), pois “a justiça é imortal” (Sb 1,15). O tema da justiça perpassa todo o livro: “Vestirá a justiça como couraça e usará como capacete um julgamento que não se pode subornar” (Sb 5,18); “Conhecer-te é a justiça perfeita, e reconhecer teu poder é a raiz da imortalidade” (Sb 15,3).

 Ao ler os textos relacionados à justiça, constata-se que os justos, mencionados 27 vezes no livro da Sabedoria, sofrem, resistem e gritam por justiça e julgamento contra os ímpios (14 vezes), também chamados de injustos (6 vezes): “Vamos oprimir o pobre e o justo [….] Vamos submeter o justo a insultos e torturas, para sabermos de sua serenidade e avaliarmos sua resistência” (Sb 2,10.19); “Então o justo estará de pé, cheio de coragem, diante daqueles (ímpios) que o oprimiram e lhe desprezaram os esforços” (Sb 5,1).

Os judeus da diáspora alexandrina são discriminados e oprimidos pelos governantes gregos ou romanos e seus colaboradores. Em meio a essa realidade instável, o autor faz um apelo aos que detêm o poder, recordando que o poder vem de Deus e deve ser usado para promover a vida: “O governo que vocês têm nas mãos foi lhes dado pelo Senhor, e o domínio provém do Altíssimo” (Sb 6,3).

  1. Situando a cidade de Alexandriae a comunidade judaica

A cidade de Alexandria, berço do livro da Sabedoria, foi fundada em 322 a.C. por Alexandre, o Grande. Já sob Ptolomeu II e III (285-221 a.C.), a cidade possuía um porto artificial voltado para o Mediterrâneo, o que gerava grande movimento comercial e cultural. Havia aí a maior biblioteca da Antiguidade, um museu e o famoso farol, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Alexandria, ao lado de Roma e Antioquia, era uma das três principais cidades poderosas e prósperas do mundo greco-romano.

No tempo do livro da Sabedoria, por volta do ano 30 a.C., Alexandria contava cerca de 600 mil habitantes. Dentre eles, destacava-se a comunidade judaica, com cerca de 150 mil judeus, a qual chegava a ocupar dois dos cinco quarteirões da cidade. É certo que essa cidade foi o centro mais importante da comunidade judaica fora da Palestina.

Historicamente, o Egito era um dos lugares preferidos pelos judeus que fugiam da fome, de conflitos, guerras e outras dificuldades. A presença de mercenários judeus que se punham a serviço dos egípcios é bem conhecida, como os da colônia estabelecida por volta de 550 a.C. em Elefantina, uma ilha do rio Nilo a cerca de 900 quilômetros ao sul do Cairo, a capital atual. No período grego (323-50 a.C.), os colonos judeus militares, com o apoio dos Ptolomeus, estabeleceram-se em vários pontos do Egito, tornando-se a mais forte concentração de judeus no mundo antigo.

Sob o governo do Segundo Ptolomeu, Filadelfo (285-246 a.C.), os judeus adquiriram quase todos os direitos referentes à cidadania. Em Alexandria, estavam organizados em uma politeuma, isto é, viviam dentro da cidade, desenvolvendo de forma quase autônoma suas atividades econômicas, políticas e religiosas. Com suas numerosas sinagogas, mantinham a fé e a identidade cultural do seu povo. Nesta cidade, o Antigo Testamento foi traduzido do hebraico para o grego, o que originou a Bíblia comumente conhecida como a tradução dos “Setenta” ou “Septuaginta”.

Na vida cotidiana, os judeus alexandrinos desempenhavam um papel muito ativo, principalmente por atuarem na manutenção da ordem por meio do exercício militar, além de serem despachantes e coletores de taxas nas atividades portuárias. Eles, porém, não podiam participar inteiramente da vida social e política da cidade grega se não abdicassem por completo de sua identidade judaica: seus costumes e cultos religiosos. Ao enfrentarem hostilidade, marginalização e até mesmo perseguição aberta por parte dos gentios, muitos judeus já não se preocupavam em preservar seus costumes e sua religião de origem.

Por volta do ano 30 a.C., Alexandria passa a ser administrada por Roma. A situação dos judeus se agrava radicalmente:

  • Os destacamentos de mercenários, também judeus, perdem espaço, “emprego”, à medida que a manutenção da ordem começa a ser exercida pelas legiões romanas com a pax romana;
  • A função de coletores de taxas também passa a ser executada pelos cidadãos gregos, excluindo os judeus do mercado;
  • O governo romano impõe o imposto pessoal, chamado laografia, a toda a população sem cidadania plena, empobrecendo especialmente a população judaica rural e de baixa renda.

Tudo isso leva a comunidade judaica a profunda crise e à divisão interna. De um lado, um grupo de judeus alexandrinos persiste na abertura à cultura helenista a fim de buscar o direito à cidadania plena e melhor condição social, abandonando até a fé dos antepassados para assumir uma sociedade idólatra; de outro, cresce o empobrecimento e a perseguição para a maioria dos judeus por terem mantido a fé e a identidade cultural do povo judaico.

Na realidade de perda de status e de espaços na sociedade e de aumento da pobreza, somados ao desprezo e à hostilidade social, é que surge o livro da Sabedoria. Como reagir à discriminação e à perseguição dos “injustos” ou “ímpios”? Como ajudar os judeus fiéis à fé dos antepassados a manter a própria identidade e a esperança na vida?

  1. Autor, destinatários

O título original desse livro na Bíblia grega é “Sabedoria de Salomão”. Conforme a tradição judaica, o rei Salomão seria o patrono da sabedoria em Israel (cf. 1Rs 3,5-15), por isso essa obra foi dedicada a ele. Na antiga tradução latina, o título é apenas “Livro da Sabedoria”, designação que, em geral, aparece nas Bíblias católicas.

O autor é desconhecido, não dá seu nome nem se apresenta no livro, mas, nas entrelinhas dos textos, podemos colher algumas informações sobre ele:

  • É conhecedor da literatura bíblica e da tradição judaica. O tema da imortalidade, em Sb 1,13-15 e 2,23-24, é inspirado em Gn 1-3; a tradição sobre Salomão, em Sb 7-9, inspira-se nos textos de 1Rs 3-11 e 2Cr 1-9; a descrição da fabricação de ídolos, em Sb 13,10-19, vem de Is 44,9-20; a tradição do êxodo, em Sb 11-19, é baseada no livro do Êxodo.
  • Possui domínio da língua, da filosofia e dos costumes gregos: apresenta cosmovisão prática da filosofia grega em Sb 7,17-20; faz referência, em Sb 13,1-9, à contemplação da natureza e ao culto de seres da criação, práticas presentes nos costumes gregos; menciona o alimento dos deuses na tradição grega em Sb 19,21; etc.
  • Defensor da fé e da identidade cultural do povo judaico (cf. Sb 2,12; 9,1): ajuda a discernir a sabedoria de Israel como o caminho para a justiça, liberdade e vida (cf. Sb 1-5); mostra a natureza e a grandeza da sabedoria, dom de Deus (cf. Sb 6-9); exalta a ação da Sabedoria de Deus na criação e na história (cf. Sb 10-19).

É provável que o autor tenha sido um judeu conhecedor da cultura helenista (greco-romana) que vivia em Alexandria. Ele, junto com o seu povo, no Egito, vivenciou e enfrentou ameaças constantes à sua vida, fé e cultura. Dessa forma, escreveu um livro para reforçar a fé e reavivar a esperança de seus irmãos judeus, fazendo um resgate da Sabedoria de Deus manifestada na história da humanidade, especialmente do povo de Israel.

O livro é dirigido também aos gentios e aos judeus que renunciaram ou estão em via de renunciar à sua religião. Nessa obra, em contraposição ao helenismo materialista e idólatra, há a apresentação da verdadeira sabedoria, que vem de Deus como a fonte da justiça, liberdade e vida para todas/os, opondo-se à idolatria e à injustiça (cf. Sb 13-15). Os principais alvos de crítica são os governantes gregos e romanos, para que exerçam sempre suas funções com justiça (cf. Sb 1,1-15; 6,1-11); e também os sábios gregos, para que reconheçam a superioridade da sabedoria de Israel (cf. Sb 7,15-23). Da mesma forma, ironiza e critica a pax romana do imperador (cf. Sb 14,22).

  1. Conhecendo o livro da Sabedoria

A cultura e a sociedade helenista (greco-romana), baseadas na idolatria, são apresentadas como geradoras de injustiças. O livro aponta como alternativa a construção de sociedade que reconheça e procure o Deus da vida e a sua Sabedoria, a qual conduzirá todas as pessoas à justiça e à vida.

Sabedoria é acreditar no Deus de Israel e ser fiel à sua Lei. Ela não é adquirida por mérito humano, mas consiste num dom de Deus e conduz à justiça e à verdadeira vida. O autor reforça o papel da sabedoria divina como condutora e protetora do povo de Deus na história.

Entre as diversas propostas de estruturação do livro da Sabedoria, escolhemos o modelo que divide o texto em três partes: a) Sb 1,1-6,21: amar a justiça e rejeitar as estruturas de morte; b) Sb 6,22-9,18: origem, natureza e meios para adquirir a Sabedoria; c) Sb 10,1-19,22: ação da Sabedoria na história.

Primeira parte (Sb 1,1-6,21):
amar a justiça e rejeitar
as estruturas de morte

Nesta primeira parte, há um convite para viver a justiça. O autor faz uma contraposição entre o modo de vida dos justos e o dos ímpios, os que vivem sem Deus. Os inimigos podem ser os judeus que abandonaram a Lei judaica e a tradição do seu povo.

O livro inicia-se com um apelo aos governantes para amar a justiça e rejeitar as estruturas injustas, geradoras de morte (cf. Sb 1,1-15). Em seguida, há um discurso sobre a maneira de pensar e de agir dos ímpios. Conforme o pensamento do autor, eles fizeram pacto com a morte, são inescrupulosos e usam de violência para atingir seus objetivos (cf. Sb 1,16-2,24). No entanto, a vida dos justos está nas mãos de Deus e estes serão recompensados. Na contramão da teologia oficial, o livro afirma que é melhor uma vida sem filhos do que ter filhos de uniões ilegítimas, e a morte prematura pode ser graça de Deus (cf. Sb 3,1-4,19). Por fim, o autor reforça o apelo aos governantes, afirmando que o poder é dado por Deus para o serviço da justiça (cf. Sb 6,1-21). Em toda esta primeira parte, transparece o pensamento da recompensa do justo e da punição dos ímpios após a morte.

Segunda parte (Sb 6,22-9,18): origem, natureza e meios para adquirir a Sabedoria

Nesta segunda parte do livro, o sábio afirma que publicará tudo sobre a origem da Sabedoria. Para ele, “grande número de sábios é a salvação para o mundo” (Sb 6,24). O autor, como se fosse o rei Salomão, afirma que todos os seres humanos são iguais e têm direito à Sabedoria. Ela “é um tesouro inesgotável para o ser humano” (Sb 7,14). A origem do conhecimento está em Deus (Sb 7,15-21). Depois de apresentar os atributos da Sabedoria, o autor conclui: “Ela é emanação do poder de Deus” (Sb 7,25) e “tudo governa de maneira correta” (Sb 8,1; cf. 7,22-8,1). Apresentando a Sabedoria como mulher, pela qual está apaixonado e à qual sonha unir-se, o sábio ensina os jovens que estão se afastando da tradição judaica (cf. Sb 8,2-16). Concluindo esta parte, temos uma ampliação de 1Rs 3,6-9: a oração de Salomão. O rei pede a Deus, com insistência, a obtenção da Sabedoria: caminho para a imortalidade (cf. Sb 8,17-9,18).

Terceira parte (Sb 10-19):
Ação da Sabedoria na história

Destacando a libertação do justo, o autor apresenta o agir da Sabedoria na história da humanidade, desde Adão até a história de José (cf. Sb 10,1-14). Em seguida, há longa recordação da experiência do êxodo, enfatizando que os inimigos serão punidos e os justos recompensados (cf. Sb 10,15-19,22). Em meio à história do êxodo, há extenso tratado contra a idolatria nos capítulos 13-15. Assim como Deus defendeu o povo hebreu da opressão dos egípcios, ele o fará em todos os tempos (cf. Sb 19,22).

O livro da Sabedoria é convite para reconhecer a presença da Sabedoria de Deus, que conduz e protege a nossa vida. Nele encontramos forte apelo para que as pessoas, especialmente os governantes, amem a justiça e busquem a Sabedoria, entendida como fidelidade a Deus e à Lei. É a Sabedoria que age na história da humanidade, desde as origens até o momento presente, e agirá em todos os tempos e lugares.

  1. Mensagens importantes do livro

O livro da Sabedoria é uma porta que nos permite entrar na comunidade de Alexandria, entender os conflitos existentes e distinguir a busca de caminhos para permanecer fiel ao projeto de Deus, vivendo a justiça em meio a uma realidade determinada pela ânsia do prazer, pela negação da tradição dos antepassados e pela acolhida da religião idolátrica dos governantes da época. Um grande desafio.

Eis alguns passos apresentados no livro para uma vivência segundo o Espírito de Deus:

Chamadas/os para viver a justiça (1,1-15). Logo na abertura, há uma síntese do projeto de resistência, na qual o autor faz insistente convite para a comunidade judaica renovar sua fé e esperança no Espírito de Deus e na Sabedoria. É necessário “buscar o Senhor”, cujo sentido é amar e praticar a justiça. O termo “justiça”, na Bíblia, é usado para exigir o direito de cada pessoa à vida digna, sobretudo dos pobres e indigentes. Os que julgam a terra devem garantir o bem-estar do povo. A Sabedoria é o espírito ou o dom de Deus criador e educador do ser humano na prática do direito e da justiça a serviço da vida e da felicidade da humanidade e do universo. Por isso o autor insiste: “Não busquem a morte no erro da vida de vocês nem provoquem a ruína com as obras que praticam” (1,12). É a afirmação da experiência de que o erro, a ruí­na e a morte são provocados pela ação humana. Quem pratica a injustiça e a maldade provoca a própria morte. Deus criador propõe a vida: “pois Deus não fez a morte nem se alegra com a destruição dos seres vivos. Ele tudo criou para que exista. As criaturas do mundo são sadias, e nelas não há veneno de ruína” (1,13-14b). Na visão do autor do livro, o ímpio cria uma realidade venenosa, oposta ao projeto do Deus da vida. Esse é o projeto da morte do império e dos seus seguidores! É importante perseverar na Sabedoria de Deus, acreditando que “o mundo dos mortos não reina sobre a terra. Porque a justiça é imortal” (vv. 14c-15). O convite a resistir à cultura de morte continua ecoando em nossos ouvidos.

Assumir os riscos de uma vida segundo a justiça (cf. Sb 1,16-2,20). Em uma sociedade injusta, o apelo constante é para vivermos a prática da justiça e descobrir novas formas de nos solidarizarmos com as pessoas perseguidas por causa da justiça. A opressão e a perseguição contra o justo são intensas, há pessoas sendo até eliminadas. Os argumentos dos injustos é que tudo acaba aqui: “Nossa vida é breve e triste” (2,1); “Nascemos do acaso e depois seremos como se não tivéssemos existido: o sopro de nossas narinas é fumaça, e o pensamento é uma faísca do pulsar de nossos corações. Quando ela se extingue, o corpo se transformará em cinza e o espírito se dissolverá como ar sem consistência” (2,2-3). Conforme essa mentalidade, o que cabe ao ímpio é desfrutar ao máximo os bens existentes, porque não há outra vida! A máxima é ser feliz e, se preciso for, eliminar os obstáculos a qualquer custo: “Vamos oprimir o pobre e o justo e não poupar as viúvas ou respeitar os cabelos brancos do ancião. Nossa força seja a lei da justiça, pois o fraco é inútil, não há dúvida” (2,11). Para aproveitar ao máximo a vida presente, os ímpios oprimem os fracos e o justo, até aplicando a “força” e a violência segundo a “lei do mais forte”, chamada no texto de “a lei da justiça”. Em nossa sociedade, há muitas situações de morte e de injustiça. Que cada um de nós, nas mais diversas circunstâncias, possa fazer sua parte. Sabiamente, o povo costuma repetir: “Procure acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão”.

O poder dado por Deus é para o serviço da justiça (6,1-11). O autor do livro da Sabedoria, por acreditar que Deus havia preparado os governantes para governar segundo a sua Sabedoria, grita pelo exercício justo do poder, segundo a vontade divina. Em conformidade com os princípios da teologia política do Antigo Testamento (cf. Pr 8,12.15-16; Dn 2,21), o autor ressalta com insistência (“escutem”, “aprendam”, “prestem atenção”): o poder vem de Deus, não da humanidade. Os reis e os governantes, como “ministros” do reino de Deus, têm por função principal o exercício do poder segundo a vontade divina: “Pois embora sejam ministros do reino dele, vocês não julgaram corretamente, não observaram a Lei e não agiram de acordo com a vontade de Deus” (6,4). A Lei aqui deve ser entendida como a Torá, na tradição judaica, e, na tradição grega, o Pentateuco. O exercício do poder de Deus consiste em seguir o caminho da vida, no direito e na justiça. Todos serão julgados com base em suas práticas de justiça: seus atos e suas omissões. Há uma diferença, porém: o julgamento dos governantes será severo, porque o próprio Deus terá mais misericórdia com os pobres do que com os poderosos. Na tradição bíblica, Deus Javé libertador se alia aos que são explorados e marginalizados pela sociedade injusta (cf. Ex 3,7-10). Os governantes, ministros de Deus na terra, então, devem priorizar os pobres e pequenos, salvando-os da opressão e da injustiça. Com este princípio de exercício do poder, os governantes injustos serão julgados com maior rigor, de acordo com a repercussão social de sua prática injusta contra os pobres.

O ser humano fabrica ídolos para fins lucrativos (cf. Sb 15,7-19). A ambição do poder e do ter não conhece limites e usa de todos os meios, especialmente o religioso, para manipular, oprimir e manter a corrupção. Na Bíblia, há muitas críticas contra o uso da religião e de seus ídolos pelas autoridades dos Estados para promover e aumentar seus poderes e riquezas. Em Alexandria, o povo judeu resiste ao uso da religião para legitimar a opressão e os interesses do Estado. Os capítulos 13 a 15 do livro da Sabedoria são longo tratado contra a idolatria. Para o autor, o princípio da corrupção está nos governantes e no fato de terem inventado ídolos: “De fato, eles [os ídolos] não existiam desde o início nem existirão para sempre. Entraram no mundo pela vaidade dos seres humanos, e por isso está decretado o rápido fim deles” (Sb 14,14). No Egito, especialmente em Alexandria, os cultos idolátricos estavam em toda parte, incluindo a adoração dos próprios animais vivos. Os animais, no Egito antigo, eram considerados a encarnação de deuses. Alguns deuses e deusas foram identificados com animais específicos. Por exemplo, o deus dos céus, Hórus, foi mostrado com a cabeça de falcão, e a deusa Sekmet com a cabeça de uma leoa feroz, por ser a deusa da guerra. O fabricante de ídolos é guiado pela ganância do lucro: “Ele considera que nossa existência é um jogo, e a vida seria algo lucrativo. Ele diz: ‘É preciso aproveitar-se de tudo, até do mal’. Realmente, mais do que todos os outros, ele sabe que está pecando, fabricando, de matéria terrena, tanto vasos frágeis como estátuas de ídolos” (Sb 15,12-13; cf. 14,2). Para o autor, os ídolos não passam de imagens que, na verdade, não têm olhos, ouvidos, boca, mãos, dedos e pés. Nem são capazes de escutar e atender as orações dos fiéis no culto, exatamente o contrário do Deus do êxodo. Temos muitos ídolos em nossa sociedade. Precisamos somar forças para denunciar e desmascarar toda e qualquer forma de idolatria que torna o ser humano insensível à situação de injustiça social. O povo, com sua sabedoria popular, continuamente repete: “Desconfia da pessoa que não fala e do cão que não ladra”.

A Sabedoria de Deus sempre acompanha o seu povo (cf. Sb 10,15-11,3). Retomando o episódio do êxodo, o autor quer ajudar seus leitores a compreender o agir de Deus no decurso da história. Diferentemente do culto propagado pelo poder opressor, a fé no Deus único garante vida digna e livre da opressão. Com a administração direta dos romanos, por volta do ano 30 a.C., a situação dos judeus em Alexandria piora. A comunidade judaica perde seus privilégios econômicos e sociais. Muitos judeus, tendo em vista sua integração e sobrevivência na sociedade, abandonam as tradições dos seus pais e até mesmo a fé em Javé e assumem a cultura helenista e o culto imposto pelos dominadores. Nesse contexto, o autor do livro da Sabedoria denuncia a idolatria oficial e sua alienação e, ao mesmo tempo, anima a fé e a esperança dos judeus. Como ele está situado na cidade egípcia de Alexandria, as pragas do Egito e a saída do povo na narrativa do Êxodo são bem lembradas: como o êxodo do povo eleito de outrora, a libertação dos judeus alexandrinos do presente também acontecerá. O texto de Sb 10,15-11,3 abre extensa releitura da história do êxodo do antigo Egito com o olhar fixo no Egito do tempo do autor (cf. Sb 11,4-19,22). Ao narrar que Javé fará um novo êxodo libertador para o povo do seu tempo, o autor busca criar uma sociedade alternativa, fundada na sabedoria, na justiça, na misericórdia e na salvação de Deus: “Realmente, Senhor, em todas as coisas engrandeceste e glorificaste teu povo. Nunca deixaste de olhar por ele e de o socorrer, em todo tempo e lugar” (19,22). Como alguns judeus fiéis que resistiram até o fim, precisamos confiar que “Deus escreve certo por linhas tortas”.

Conclusão

A leitura do livro da Sabedoria é, para nós, grande desafio. O autor soube fazer uma releitura da tradição do seu povo para dar forças à comunidade judaica em seu projeto de vida. É um escrito sagrado porque nos permite entrar no dia a dia da comunidade de Alexandria, perceber suas buscas, sonhos e esperanças e, ao mesmo tempo, encontrar novas luzes para iluminar a vida de nossas comunidades.

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Maria Antônia Marques

Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora da Faculdade Dehoniana, em Taubaté, e do Itesp, em São Paulo. Juntamente com o Centro Bíblico Verbo, tem publicado todos os anos, pela Paulus, um subsídio para reflexão e círculos bíblicos do mês da Bíblia. E-mail: [email protected]