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Publicado em janeiro – fevereiro de 2019 - ano 60 - número 325

Inspiração catecumenal e conversão pastoral

Por João Fernandes Reinert, ofm

  1. A inspiração catecumenal

A incompatibilidade entre o atual mal-estar religioso e as expressões de pastoral de manutenção é cada vez mais gritante. Em tempos idos, a pastoral de manutenção tinha sua justificativa, uma vez que aquele contexto de fé “tranquila” não exigia maiores conversões à pastoral de então. O mesmo se pode dizer da instituição paroquial tradicional, cuja configuração garantia a manutenção da fé cristã, não sendo necessário à época, portanto, maiores mudanças estruturais e pastorais. A problemática surge quando, por um lado, muda a realidade cultural e religiosa e, por outro, os pressupostos pastorais e as estruturas eclesiais permanecem inalterados. Trata-se de um contexto em que a religião deixa de ser um dado cultural, em que cristãos já não nascem como tais, e, não obstante, vigora a pastoral de manutenção, até com o retorno de práticas eclesiológicas restauracionistas, no intuito de recuperar o monopólio institucional perdido com a chegada da sociedade secularizada.

O documento da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, realizada em Aparecida, convoca categoricamente todos para a passagem da pastoral de manutenção à pastoral decididamente missionária e para o abandono das estruturas obsoletas, ultrapassadas, que não favorecem a transmissão da fé. A quais estruturas caducas se refere o Documento de Aparecida? Quais saídas a pastoral é convocada a realizar? Quais expressões de pastoral de manutenção se devem abandonar? Como se configura a pastoralidade verdadeiramente missionária? Essas e outras questões nem sempre são de fácil resposta; exigem discernimento, criatividade, coragem, escuta atenta aos sopros do Espírito e aos apelos da realidade. Se conversão significa mudança de rota e de mentalidade, novos rumos, renovada maneira de pensar, de ser e de agir, então o primeiro passo nesse processo de conversão pastoral é se perguntar “onde” se está e “como” se está. Converter-se a algo exige a consciência de “onde” e “como” se está. Sem a consciência do “onde” e do “como”, não se é possível ir a lugar algum.

Na sequência do percurso da conversão pastoral, o passo seguinte e igualmente decisivo refere-se à pergunta: conversão pastoral para quê, para qual direção, para onde? Sem a clareza da nova direção a ser tomada, a conversão torna-se mero passeio sem rumo, e não verdadeira mudança de rota. Outra questão fundamental para a conversão evangelizadora é a pergunta: com base em quê? Trata-se da pergunta sobre os referenciais para a concretização da mudança de rumo pastoral. Que paradigma de pastoral decididamente missionária em andamento poderá servir de inspiração para a tão urgente conversão eclesial? Chegamos, assim, à motivação maior deste artigo. Resgatar o catecumenato é peça essencial no conjunto de conversões pastorais de uma “Igreja em saída”. A inspiração catecumenal é redescoberta como elemento fundamental nesse processo de conversão eclesial. Sem a inspiração catecumenal, o processo de conversão pastoral se torna por demais vagaroso, senão impossibilitado.

Uma metodologia pastoral se converte em paradigma de evangelização quando extrapola seu campo de atuação e se mostra capaz de inspirar outras ações eclesiais. O catecumenato tem algo para oferecer a toda ação pastoral, converte-se em inspiração à totalidade da ação evangelizadora. Ou melhor, em tempos de crise de fé, já não é permitido separar, com tamanha facilidade, a pastoral da iniciação das demais pastorais. O conjunto das atividades eclesiais é convocado para a transmissão da fé, para a reiniciação à vida cristã. A isso chamamos dimensão transversal do catecumenato na pastoralidade eclesial, paradigma catecumenal para a pastoralidade.

  1. Inspiração catecumenal, percurso de fé e clareza do que é iniciação à vida cristã

Desde as suas origens, o catecumenato se entende como uma caminhada de fé, um itinerário de introdução e aprofundamento no mistério de Jesus Cristo e da comunidade eclesial. A estrutura catecumenal está organizada com base nessa autocompreensão, ou seja: se o catecumenato se entende como caminho de introdução no mistério de Cristo e da Igreja, então seus elementos pastorais revelam essa disposição; tem-se clareza de onde se parte e aonde se pretende chegar.

A consciência do objetivo do percurso da iniciação é constitutiva da identidade catecumenal. Não se trata de corrida inconsequente em busca dos sacramentos, mas de itinerário percorrido conscientemente, em vista do tornar-se adulto na fé e no discipulado missionário de Jesus Cristo; os tempos e as etapas, com seus objetivos específicos, os ritos de passagem, a gradualidade do processo, enfim, cada dimensão da metodologia catecumenal confirma a afirmação de que o catecumenato é um percurso consciente e gradual de maturação da vida cristã. A noção de percurso remete à de progressividade, processo, duração, passos sucessivos.

Nas últimas décadas, não poucos esforços têm sido empregados no intuito de fazer da pedagogia catecumenal o modo ordinário de iniciar na fé, superando, de uma vez por todas, a mentalidade segundo a qual a catequese consiste em curso de preparação aos sacramentos. Contudo, bem sabemos que a estrutura e a mentalidade de curso não são superadas de uma hora para outra. A conversão da mentalidade de curso para a lógica do percurso é lenta, o que torna a consolidação do catecumenato morosa. Na compreensão de catequese como preparação aos sacramentos, sobressai a pedagogia do curso, do saber sobre, diferentemente do paradigma do percurso, em que o próprio termo sugere progressividade, amadurecimento, iniciação. Enquanto o primeiro termo indica preparação, sobretudo intelectual, assimilação de conteúdos, o segundo termo indica iniciação, progressividade, continuidade.

O catecumenato é um percurso celebrativo. A evolução na fé, a maturidade cristã conquistada progressivamente, é celebrada liturgicamente. Os ritos catecumenais marcam a passagem de um trecho da caminhada ao outro. Cada tempo percorrido, após terem sido alcançados seus objetivos, é marcado por celebrações específicas, chamadas celebrações de passagem. As celebrações não são apêndices da caminhada; ao contrário, são marcas, pausas, reabastecimentos que marcam a passagem de um tempo já percorrido e o início de outro a ser iniciado. As celebrações e ritos de passagem são alimento que fortalece a continuidade da caminhada, são liturgias que festejam o amadurecimento na fé já alcançado, são “pausas” para tomar maior consciência dos passos dados e dos novos passos a serem percorridos.

As passagens de um tempo ao outro não são, portanto, automáticas. Supõem e exigem discernimento, consciência, amadurecimento, liberdade, expressos nas celebrações. Torna-se evidente que não se trata de um caminhar meramente racional, escolástico. Não se trata de caminhada meramente com os pés da razão, isto é, com o conhecimento racional do mistério, e sim com os pés do coração, da celebração da fé, da experiência.

Uma das mais relevantes contribuições da renovação catequética dos últimos anos, com destaque para a catequese de inspiração catecumenal, está na conversão da compreensão de iniciação à vida cristã, decorrente da clareza teológico-pastoral daquilo em que ou daquele em quem se é iniciado. Não é por coincidência que se emprega ultimamente a palavra “vida” na iniciação cristã; ou seja, iniciação à vida cristã é a expressão que melhor traduz o processo do mergulho sacramental e existencial no mistério de Jesus Cristo.

A riqueza da metodologia catecumenal é fruto da consciência sobre o que é iniciação e qual o caminho para atingir seu objetivo. Quando se carece de tal nitidez, as inovações não passam de recursos paliativos, por não tocarem a raiz da questão. Somente quando se sabe ao certo em que ou em quem se é iniciado é que se pode apresentar como se inicia, isto é, o caminho a ser percorrido para alcançar os objetivos perseguidos. No catecumenato, o como é consequência da lucidez sobre o quê.

O déficit de maturidade cristã no cristianismo se deve, em grande parte, a modelos pastorais que negligenciam a dimensão existencial na evangelização. Antes de chegar aos sacramentos, é preciso assimilar existencialmente os grandes mistérios da fé cristã. Com isso não se está afirmando que a catequese tradicional não almeja a iniciação cristã, o que seria uma acusação injusta; o problema está em sua compreensão de iniciação cristã e no como ela se realiza.

  1. Conversão pastoral e a não pressuposição da fé

3.1. A missionariedade catecumenal

No percurso catecumenal, existe um tempo para redespertar o interesse por caminhar, para pôr-se a caminho, para conhecer os primeiros passos da estrada do cristianismo. Trata-se do tempo do pré-catecumenato, período fundamentalmente importante que, embora de modo algum deva ser omitido (cf. RICA 9), na pastoralidade e, sobretudo, na pastoral catequética é geralmente dado por já percorrido, o que traz profundas consequências negativas à maturação da fé.

O pré-catecumenato é o tempo para trabalhar a orientação inicial a Cristo e à Igreja. “É o tempo da evangelização em que, com firmeza e confiança, se anuncia o Deus vivo e Jesus Cristo” (RICA 9). Trata-se fundamentalmente do tempo voltado à primeira evangelização, para fazer ressoar a voz do mistério, do querigma. Na catequese tradicional, o primeiro anúncio de Jesus Cristo, o querigma, era considerado um pressuposto, por ser algo já garantido. Sendo a fé um dado natural e cultural, tornava-se, portanto, prescindível a tarefa de apresentar Jesus Cristo. Naquele contexto, a preocupação primeira, a grande missão da catequese, era catequizar, doutrinar. Foram séculos sem grandes preocupações missionárias, séculos de pressuposição da fé.

A inspiração catecumenal recupera, em seu itinerário, esse trecho do percurso da iniciação à vida cristã, tão caro ao cristianismo primitivo e perdido posteriormente, ou então dado por já percorrido, via cristianismo sociológico. Quiçá esteja aqui a expressão maior da missionariedade da inspiração catecumenal: não dar por pressupostos a fé, a proclamação do querigma, o ingresso na comunidade. Em outras palavras, o período chamado pré-catecumenato é o sinal mais eloquente da missionariedade catecumenal, que sabe a necessidade de começar com o anúncio explícito de Jesus Cristo.

Graças à não pressuposição da fé, o estilo catecumenal se caracteriza como percurso, está protegido do sacramentalismo e se torna inspiração para a pastoralidade. Residem aqui, portanto, oportunidades enormes de inspiração à conversão pastoral. A mais significativa intuição do tempo do pré-catecumenato para a nova evangelização é a não pressuposição da fé em nenhuma atividade eclesial.

Alguns exemplos podem nos ajudar. Quanto aos noivos que pedem o sacramento do matrimônio, não se pode imaginar que façam tal pedido motivados primeiramente pela fé ou já estejam nela iniciados. Resulta disso a necessidade de nova estruturação dos assim chamados “cursos de noivos”, em perspectiva querigmática, que saiba mistagogicamente propor a fé, conduzir a experiência cristológica e eclesial. A preparação dos noivos é chamada a deixar de ser curso para assumir a fisionomia de percurso, de anúncio e experiência de fé, com menos preocupações canônicas e morais e mais investimento missionário. A problemática se agrava quando “se obriga” o adulto a ser batizado para poder casar-se na Igreja… “Na realidade, [essa prática] supõe uma falsa compreensão do batismo como um rito qualquer, sem compromisso de mudança de vida” (TABORDA, 2017, p. 9).

O mesmo se pode dizer dos “cursos de batismo”, que preparam os pais e os padrinhos para o batismo de seus filhos e afilhados. Qual a densidade querigmática e mistagógica desses encontros, ou seja, são “lugares teológicos” de anúncio e aprofundamento da fé, de experiência eclesial, ou prevalece o estilo palestra, em que se supõe que pais e padrinhos estejam iniciados na vida cristã?

O pré-catecumenato questiona, portanto, as ações eclesiais que, em seus métodos, por pressuporem a iniciação, se orientam segundo um substrato muitas vezes inexistente. Não são poucas as atividades eclesiais que carecem de fundamentação querigmática, por estarem pautadas mais na doutrinação da fé do que na fé mesma, mais nos costumes religiosos do que no querigma, sem falar na obsessão por questões morais e doutrinais.

A pergunta a ser feita com seriedade na atual reflexão é sobre as consequências da pressuposição da voz já ressoada na vida dos cristãos, compreensão esta muito presente na pastoral de manutenção. Quais são as lacunas deixadas pela presunção da experiência de encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, quando, na realidade, não poucos possuem tão somente uma noção de Deus? Não seria essa presunção uma das causas da atual crise de fé? É muito estreita a relação entre batizados não evangelizados e a pastoral de manutenção que prescinde do anúncio querigmático por pressupô-lo ou, quando pior, por falta de clareza do que seja o querigma.

3.2. (Re)começar a partir
de Jesus Cristo

A reflexão anterior não deixou margem a dúvidas sobre a lucidez da missionariedade catecumenal em não pressupor o primeiro anúncio. Com base nisso, torna-se mais evidente a pretensão das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil ao enfaticamente convocar a pastoral para “partir de Jesus Cristo” (CNBB, 2015, cap. 1). À luz da inspiração catecumenal, esse urgente apelo pode ser lido de vários ângulos.

A convocação ajuda a entender o cristianismo – e, consequentemente, a pastoral – como proposta. Dois equívocos pastorais muito comuns consistem em pressupor ou impor a fé. Em nome de uma pseudofidelidade à tradição, tende-se, por vezes, a impor a fé, a moral, as normas, a instituição religiosa…

Propor a fé é, sem dúvida, a chave hermenêutica das ações eclesiais que queiram estar no processo de conversão pastoral, de saída missionária. Propor é conduzir mistagogicamente à descoberta de Deus, é despertar, é apresentar, é atrair, mais por testemunho do que por argumentações ou explicações. A pastoral precisa, cada vez com maior urgência, estruturar-se como proposta, como oferta, como processo, como redescoberta, encantamento, apaixonamento.

Estes três verbos – pressupor, impor, propor – apontam para três perspectivas distintas no cotidiano da evangelização.

Ao primeiro verbo, supor, convergem todas as expressões de pastoral de manutenção. Supõem-se a vigência da tradição, a força da instituição, o encontro pessoal com Cristo etc. e, em decorrência disso, negligencia-se um anúncio mais explícito, contagiante, da proposta cristã. Cai-se facilmente na pastoral da suposição.

A segunda orientação, impor, expressa as tendências que ressurgem com força na atualidade. São as tentativas equívocas de responder à crise religiosa. No afã de recuperar o monopólio religioso perdido, tende-se a impor. Não vêm de hoje tentativas equivocadas de resposta à crise de fé. Ganha destaque a pastoral apologética, que, ao defender a instituição, faz frente à secularização, às outras religiões. Trata-se de pastoral não apenas voltada à manutenção da fé, mas também à defesa, ao embate, ao enfrentamento, por entender que as mudanças culturais viriam abalar o catolicismo tranquilo e, consequentemente, a tranquila instituição religiosa.

A terceira via, propor, indica a direção da nova evangelização, porque recupera a maturidade das origens, perdida com a cristandade. Conversão pastoral é a concretização da passagem da pressuposição para a proposição. Não nos é permitido, em tempos de crise religiosa, pressupor a fé, pressupor a dimensão comunitária da fé, a consciência de que a caridade e o amor ao próximo são constitutivos da fé e tantas outras dimensões inerentes ao cristianismo. Para a religiosidade líquida, essas questões não são evidentes. Iniciação à vida cristã é iniciação à totalidade do ser cristão, a qual, se não se pode pressupor, também não se dá por imposição, mas por “atração”, por meio da “alegria do evangelho”.

Outro modo de ler a convocação pastoral “começar a partir de Jesus Cristo”– leitura que, de certa forma, já apareceu neste texto – é como chamada de atenção para a volta ao essencial da fé cristã, ao núcleo do evangelho, à Pessoa de Jesus Cristo. A conversão pastoral tem diante de si a tarefa de resgatar a originalidade da fé cristã. Essa conversão passa necessariamente pela distinção da essência da fé cristã daquilo que é secundário, que só tem sentido à luz do essencial. Não se trata, obviamente, de descartar o doutrinal, mas de perceber que o conjunto de preceitos está a serviço da experiência da fé, e não o contrário. O doutrinal, o ritual, o legal visam expressar e recordar um encontro primeiro, uma experiência fundadora, do contrário s tornariam fins em si mesmos.

Muitas são as expressões do agir eclesial desprovido do querigma. “O querigma não é uma propaganda para ganhar visibilidade. Alguns têm denominado de querigma, por exemplo, um anúncio que se limita a um reavivamento religioso, uma busca por milagres, sem compromisso profético e sem o seguimento” (CNBB, 2017, n. 156).

O tempo atual mostra-se propício à volta ao essencial. O processo de separação ou distinção entre sociedade e cristianismo, o qual chamamos de secularização, apresenta-se como oportunidade única para a recuperaçã da originalidade da fé cristã. Chaves de leitura para entender a lógica da sociedade secular são os conceitos de autonomia e pluralismo. A visão de mundo passa a ser plural, as culturas são policêntricas, as fontes de sentido da realidade são igualmente multiformes, o que significa que já não existe mais um princípio norteador para o todo social. A autonomia das realidades sociais oferece ao cristianismo a possibilidade de novamente ser autônomo, isto é, a oportunidade para a comunidade dos seguidores de Cristo novamente se distinguir da sociedade, no sentido de romper com aquela identificação social que lhes priva da identidade e da missão de serem fermento na massa.Trata-se da volta às fontes, do retorno aos primeiros séculos da era cristã, em que o cristianismo já era secular, isto é, autônomo, com sua lei própria, o evangelho.

A conversão pastoral se concretiza no resgate da identidade cristã, no tornar o cristianismo novamente uma comunidade alternativa. Sem a clareza da necessidade dessa distinção, sem a volta ao essencial, a ação pastoral será vítima de saudosismos, privilégios, acordos, benefícios, entre outras deturpações pastorais. A distinção em questão é, portanto, potencialização para a própria identidade cristã. A autonomia das realidades, a qual a secularização reivindica, requer do cristianismo clareza da própria identidade, de sua lei própria (autonomia).

Conversão eclesial é, antes de tudo, conversão de fé, volta ao essencial, com base na qual surgem outras conversões, as saídas pastorais, a missionariedade. O movimento mais importante da saída pastoral é, portanto, para “dentro”. Antes de quaisquer outros movimentos, mais do que multiplicar pastorais e serviços, a Igreja em saída aponta primeiramente para a volta ao essencial como condição de toda ação eclesial.

  1. Mistagogia, paradigma de conversão pastoral

Querigma e mistagogia são, em nosso entender, as duas colunas da inspiração catecumenal. Nas páginas anteriores, debruçamo-nos sobre o querigma e suas implicações na conversão eclesial e pastoral. Cabe-nos agora mergulhar na dimensão mistagógica da evangelização. Enquanto o paradigma doutrinal tem como representante máximo o argumento, a explicação, a doutrina, o paradigma catecumenal tem como chave hermenêutica o querigma, a mistagogia, a experiência, a iniciação, o encontro.

4.1. Relação entre querigma e mistagogia

Mistagogia, antes de ser a última etapa do processo da iniciação à vida cristã de inspiração catecumenal, é sua característica maior, do mesmo modo que “o querigma não é somente uma etapa, mas o fio condutor de um processo que culmina na maturidade do discipulado de Jesus Cristo” (DAp 278).

Apesar de o último tempo do percurso catecumenal receber o nome de mistagogia, é decisivo não perder de vista que todo o processo catecumenal é mistagógico, vivencial, experiencial, por colocar o iniciante, do início ao fim do itinerário, em contato vital com Jesus Cristo e com a comunidade de fé. Decorre dessa afirmação uma possível definição de mistagogia. A palavra, de origem grega, composta do substantivo mystes (mistério) e do verbo agein, tem o sentido de conduzir. Mistagogia é, portanto, o ato de conduzir alguém ao mistério, revelado em Jesus Cristo. Refere-se a tudo aquilo que conduz ao encontro com Cristo, que gera experiência de fé, conversão, discipulado, missão. A mistagogia, na metodologia catecumenal, está na linguagem, nos ritos celebrativos, na gradualidade do processo, na densidade da experiência, na acolhida, na comunidade, no catequista, no introdutor, no padrinho, na Palavra, nos sacramentos celebrados e vividos, enfim, está em cada instância ou elemento que auxiliam no encontro com Cristo e com a comunidade eclesial. Todas essas dimensões são canais de encontro e de experiência.

Querigma, por sua vez, é a proclamação da Pessoa de Jesus Cristo, de seu mistério salvífico, a qual não pode ser feita de qualquer modo, sob o risco de não ser ouvida nem experimentada. A proclamação do querigma, da Boa-Nova, tem como exigência a mistagogia; ou seja, é necessário proclamá-los mistagogicamente. Vigora, portanto, uma relação inseparável entre querigma e mistagogia, comparável à relação entre palavra e som.

O anúncio querigmático não é uma proclamação doutrinarista. Ele é realizado mistagogicamente, torna-se algo contagiante e envolvente, apaixonante, provocativo, dinâmico, convicto; essa é a lógica, o modo do “anúncio claro e inequívoco de Jesus Cristo” (EN 22). Há que lembrar que nem todo anúncio do querigma tem sido mistagógico. Há formas de anúncio que não condizem com a riqueza do conteúdo anunciado. Não há novidade em afirmar que muitos ruídos pastorais e eclesiais dificultam, quando não impossibilitam, o eco do querigma na vida e no coração de quem está sendo iniciado. Muitas são as expressões pastorais dessa natureza; geralmente são proclamações autorreferenciais, focadas mais na instituição do que na espiritualidade. São ações de preceitos, de assimilação de verdades religiosas, obcecadas pelo ritualismo e pelo legalismo desumanizantes. Podem estar presentes na homilia, no atendimento, na acolhida, na formação, na liturgia, no confessionário, enfim, podem entrar por todas as portas do ser e agir da Igreja. São atitudes ou ações pastorais por demais predeterminadas que enquadram, quando não aniquilam, a individualidade.

4.2. O tempo da mistagogia, o último do itinerário catecumenal, e seu significado para a conversão pastoral

Se até aqui enfatizamos a dimensão transversal da mistagogia na metodologia catecumenal, cabe igualmente agora uma palavra específica sobre a mistagogia enquanto último tempo do percurso catecumenal e sua inspiração para uma nova evangelização.

O significado teológico e pastoral do tempo da mistagogia, o último do percurso catecumenal, é de uma atualidade inquestionável, ainda a ser descoberta e explorada em muitos ambientes eclesiais. Conquanto todo o itinerário catecumenal seja mistagógico, a última etapa do processo recebe o mesmo nome, cujos objetivos são “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” (RICA 38), “aprofundamento das relações com a comunidade dos fiéis” (RICA, 7d), “conhecimento mais completo e mais frutuoso” do mistério (RICA 38).

Chama a atenção o destaque que o Ritual da iniciação cristã de adultos, denominado RICA, dá ao tempo da mistagogia, à conclusão do processo de iniciação: “Para encerrar o tempo da mistagogia, realiza-se uma celebração ao terminar o tempo pascal, nas proximidades do domingo de Pentecostes, até mesmo com festividades externas” (RICA 237). Não há dúvida de que igualmente o tempo da mistagogia, por meio de seus objetivos específicos, tem algo para dizer à nova evangelização. Ele convoca a pastoralidade para o investimento no constante processo de formação permanente, para a continuação do acompanhamento pastoral após a administração dos sacramentos, quando este geralmente é interrompido.

O tempo da mistagogia inspira a evangelização a pensar a pastoral de modo mais conjunto e gradual e superar as lacunas no acompanhamento e projetos pastorais pós-sacramentos, as quais são consequência da herança sacramentalista, que visa aos sacramentos em si e por si. Nessa lógica, após conquistá-los, não há espaço para nem necessidade de aprofundamento, de continuação da formação permanente, em vista da crescente maturação da vida cristã. Citemos como exemplo o acompanhamento pós-matrimônio, cujo vazio é reconhecido em Amoris Laetitia:

Também não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são (AL 36).

 Fato é que, se a paróquia precisa ser lugar da iniciação à vida cristã, necessita igualmente assumir o compromisso com o contínuo aprofundamento da fé dos já iniciados, caso contrário, correria o risco de, conforme um ditado bastante brasileiro, “morrer na praia”, ou seja, todo o esforço da transmissão da fé, de iniciar na vida cristã torna-se em vão, quando não se oferecem estruturas comunitárias para viver essa mesma fé e aprofundá-la continuamente (REINERT, 2015, p. 188).

Conclusão

Se a pastoral catequética fala, com razão, de inspiração catecumenal para toda forma de iniciação à vida cristã, deve-se, com a mesma pertinência, falar de inspiração catecumenal para o todo da pastoral. A isso denominamos dimensão catecumenal transversal da pastoralidade. A inspiração catecumenal é um paradigma evangelizador, e iniciação à vida cristã é mais do que um setor pastoral da Igreja. Em tempos de crise de fé, de religiosidade líquida, não se pode simplesmente pressupor que os “iniciados” já estejam iniciados na fé e nas demais dimensões da vida cristã. Portanto, urge a cada atividade eclesial assumir renovada compreensão de iniciação. Urge, na nova etapa evangelizadora, tomar sempre maior consciência daquilo que compete à iniciação, ou seja, da sua tarefa de gerar filhos na fé e do seu esforço para tornar cristãos adultos.

Referências bibliográficas

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______. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019. Brasília, DF: CNBB, 2015. (Documentos da CNBB, 102).

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus/Paulinas, 2007.

FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia sobre o amor na família. Brasília, DF: CNBB, 2016.

______. Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus/Loyola, 2013.

GEVAERT, J. Primera evangelización. CCS: Madrid, 1992.

PAULO VI. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo.Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1975.

REINERT, J. F. Paróquia e iniciação à vida cristã: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumenal. São Paulo: Paulus, 2015.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Ritual da iniciação cristã de adultos. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1972.

TABORDA, F. Apresentação.In: PARO, Thiago Faccini. As celebrações do RICA: conhecer para bem celebrar. Petrópolis: Vozes, 2017.

João Fernandes Reinert, ofm

Frei João Fernandes Reinert, ofm, mestre e doutor em Teologia pela PUC-Rio. Professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis). Pároco da Paróquia Santa Clara de Assis, em Duque de Caxias-RJ. Autor de Pode hoje a paróquia ser uma comunidade eclesial? (Vozes),Paróquia e iniciação cristã e Inspiração catecumenal e conversão pastoral (Paulus). E-mail: [email protected]