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Francisco e o pluralismo religioso

Por Faustino Teixeira

O papa Francisco tem assumido o protagonismo neste século XXI, diante de um mundo que avança perigosamente para os nacionalismos mortíferos e para os fundamentalismos. A grande riqueza de seu pensamento está em defender o desafio dialogal, o respeito à consciência e o direito ao pluralismo religioso, como expressões de um jeito novo de evangelizar pontuado pelo testemunho, pela solidariedade e pela acolhida.

Introdução

O pluralismo religioso emerge hoje como uma das questões mais essenciais do século XXI. Não há como pensar nosso tempo fora desse desafio fundamental, que insere as pessoas num novo campo de relação, envolvendo a consciência num jeito peculiar de lidar com o outro e com as espécies companheiras. A teologia se deu conta da importância desse tema, situando-o como o novo horizonte da reflexão e entendendo-o como algo que “corresponde a uma vontade misteriosa de Deus” (GEFFRÉ, 2004, p. 135). São inúmeros os caminhos que levam ao mistério maior, e nem sempre são caminhos religiosos, mas também seculares, e todos são situados num mesmo abraço misericordioso. Eis por que se fala com maior pertinência, em nosso tempo, em diálogo interconvicções, um modo mais apropriado de lidar com um tempo que é secular e plural. É bonito compreender o mundo com esse olhar plural, de “existir numa situação em aberto” (OZ, 2017, p. 45), reconhecendo a riqueza de uma vida compartida em liberdade. Esse traço de multiplicidade certamente concorre “para uma melhor manifestação da plenitude inesgotável do Espírito de Deus” (GEFFRÉ, 2004, p. 138).

1. Um tempo difícil

Esse desafio plural ainda permanece em aberto, na medida em que o século XXI sofre as sequelas de um período doloroso da história humana, marcado por tantas obscuridades e violências. Como apontou com razão o historiador inglês Eric Hobsbawm, o século XX terminou num “estado de inquietação”, sendo “o século mais assassino” de que se tem registro, tanto na frequência e extensão das guerras como no volume impressionante de catástrofes diversificadas, envolvendo igualmente a violência com a Terra (HOBSBAWM, 1995, p. 22). E o século XXI vai pelo mesmo caminho crepuscular e sombrio (HOBS-BAWM, 2002, p. 448).

Entre as ameaças presentes neste tempo, situa-se o crescimento considerável dos fundamentalismos e fanatismos, que brilham neste período de afirmação radical do pensamento identitário e xenófobo. Assiste-se com preocupação ao revigoramento de “guerras religiosas” relacionadas com esse retorno preocupante de novos fundamentalismos religiosos (HOBSBAWM, 2007, p. 128). Trata-se de algo que sensibiliza sobremaneira o papa Francisco, o qual fala em “ecumenismo do ódio” (POLITI, 2019, p. 53), bem como de extremismos intolerantes que espocam por todo lado, sinalizando a presença de uma “terceira guerra mundial aos pedaços” (FRANCISCO; AL-TAYYEB, 2019).

O mais triste é perceber que esse fanatismo já começa em casa, expandindo-se vigorosamente por outros espaços. São movimentos que crescem afirmando certezas, diante do risco ameaçador de uma sociedade plural. O pluralismo provoca temor, inquietação e insegurança, na medida em que enfraquece as convicções petrificadas e abre um horizonte novidadeiro de escolhas (BERGER, 2017, p. 33.52). Os fundamentalistas temem isso e reagem com vigor e violência, na busca de “proteção” da comunidade. E o que mais preocupa, no tempo atual, é a ação fundamentalista liberada. Os fanáticos atuam “com o rosto descoberto, quase com orgulho”. É como se enfraquecesse o efeito parcial da vacina contra a anterior presença nazifascista e os novos fanáticos recobrassem vigor na luz do dia (ARIAS, 2019).

Essa nova sede de comunidade, de busca de mônadas protegidas e isoladas, é também um fenômeno de nosso tempo. A identidade, como lembra com acerto Zygmunt Bauman, é a “palavra do dia e o jogo mais comum da cidade” (BAUMAN, 2003, p. 20), e ela grugueja com muito som e fúria, com violência e sangue. A cada esquina surgem novas fronteiras que demarcam a proteção comunitária. Na comunidade protegida, os indivíduos encontram um lugar “cálido” e “aconchegante”, que fornece proteção contra a “chuva pesada” que acompanha o mundo plural.

2. Francisco em rota de contramão

O papa Francisco emerge, assim, neste tempo difícil, com uma linguagem e prática inovadoras, que trazem “tumulto” às consciências acomodadas. Sua proposta não é a fixação identitária, mas de saída, de compromisso e solidariedade. Por isso perturba a tantos e provoca resistências que a cada dia crescem, mesmo dentro do cenário eclesial. Ele rompe com o discurso tradicional da Igreja católica e traz um desafio novo: “deixar-se surpreender por Deus” (FRANCISCO, 2013a, p. 24). Seu discurso é pontuado pela abertura ao secular e pelo diálogo com o tempo e as religiões, bem como com todo o cosmos. Traz na sua vida e testemunho a marca da coragem e da ousadia. A ele não interessa o proselitismo tradicional, mas a defesa intransigente da consciência, em linha de continuidade com o que há de mais arrojado no Concílio Vaticano II. O proselitismo para ele é um “pecado” problemático, pois fere o direito da consciência (FRANCESCO; SPADARO, 2017, p. 162; FRANCESCO; SCALFARI, 2013, p. 55). O Deus que ele proclama é um Deus que surpreende, acolhedor e misericordioso. Não é um “Deus católico”, mas um Deus que vem colorido pela diversidade (FRANCESCO; SCALFARI, 2013, p. 68). É um Deus que acolhe com doçura e gratuidade a pluralidade. A ele ninguém pode apreender com certeza cerrada ou total, pois ele é dom que advém a cada momento e de forma surpreendente. Não pode haver “prova” de Deus, e nenhuma religião ou crença é portadora de sua verdade. Ele é alguém que escapa a qualquer convicção. Em entrevista ao padre Antonio Spadaro, Francisco foi claro:

Se alguém tem a resposta a todas as perguntas, esta é a prova de que Deus não está com ele. Quer dizer que é um falso profeta, que usa a religião para si próprio. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a dúvida. Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas (FRANCISCO, 2013c, p. 27-28).

O caminho para entender a proposta evangelizadora de Francisco só se descortina para aquele que tem humildade. Ele diz com tranquilidade: “Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas. É necessário ser humilde” (FRANCISCO, 2013c, p. 28). O traço de seu projeto transborda gratuidade, como expressou de forma tão singela às crianças que se preocupavam com o destino de seus parentes não católicos. Numa resposta a um jovem chinês de 13 anos, Ivan, preocupado com seu avô, Francisco afirmou com clareza: “Jesus nos ama muitíssimo e quer que todos vamos para o céu. A vontade de Deus é que todos nos salvemos” (FRANCISCO, 2016, p. 19; POLITI, 2019, p. 3-6).

3. O pluralismo como um valor irrevogável

Em momento de grande felicidade, em sua exortação apostólica sobre a alegria do evangelho, Francisco sublinhou que “a diversidade é bela” (EG 230). Não era uma expressão qualquer, mas algo que provinha do mais íntimo da alma, uma convicção arraigada na dinâmica de seu pontificado. Francisco tem plena consciência de que o pluralismo não é um mal, mas algo de profundo e bonito, que advém do querer mais sagrado de Deus. O pluralismo é, sobretudo, um valor sagrado. No recente documento sobre a fraternidade humana, assinado por Francisco e o grão-imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinala-se que

a liberdade é um direito de toda pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos (FRANCISCO; AL-TAYYEB, 2019).

Em um exemplo bonito, expresso no diálogo com os judeus e em sintonia com João Paulo II, o papa Francisco recorda que “a Aliança com Deus nunca foi revogada” (FRANCISCO, 2013b, p. 138 – EG 247). Algo semelhante tinha dito João Paulo II aos representantes da comunidade judaica de Roma, em abril de 1986, quando assinalou que os judeus são portadores de uma “vocação irrevogável” (PCDI, 1994, p. 395). Era o passo que preparava a consciência de abertura da Igreja católica ao pluralismo religioso. Assim como o judaísmo, as religiões são igualmente portadoras de um patrimônio irrevogável. Sábia é a percepção do Talmude, em sua vocação hermenêutica e sua explosiva leitura da palavra do Senhor: “Palavra de uns e de outros, palavras do Deus vivo” (QUAKNIN, 2001, p. 64; OZ, 2017, p. 66).

O novo logotipo dessa busca de paz é o ramo de oliveira, como indicou Francisco em seu discurso no importante encontro inter-religioso de Abu Dhabi, em fevereiro de 2019 (FRANCISCO, 2019a). Ele explica essa simbologia:

Segundo a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus pede a Noé para entrar na arca com sua família. Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a arca da fraternidade (FRANCISCO, 2019a).

Nesse mesmo encontro, Francisco fala da importância atual de uma “coragem da alteridade”, para além dos fundamentalismos e afirmações identitárias. Este é o desafio maior: um “diálogo diário e efetivo” que, sem desconhecer o essencial valor das convicções, possa igualmente acontecer na abertura plural e no “pleno reconhecimento do outro” e da sua liberdade (FRANCISCO, 2019a). O caminho que se apresenta é o da abertura à pluralidade religiosa, que convoca à “coragem da alteridade”, e não se confunde nem com a “uniformidade forçada” nem com o “sincretismo conciliador”.

4. O caminho do diálogo e da acolhida da alteridade

Em seu encontro com os núcleos intelectuais e dirigentes do Brasil no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em julho de 2013, o papa Francisco falou com vivacidade acerca de sua convicção sobre uma “cultura do encontro”. De forma expressiva, sublinhou que, quando os líderes de diferentes setores lhe pedem um conselho, a resposta é sempre a mesma: “Diálogo, diálogo, diálogo” (FRANCISCO, 2013a, p. 82-83). Para essa disposição essencial, requer-se muita humildade, bem como uma atitude permanente de abertura e disponibilidade, longe de qualquer preconceito. E esse diálogo não é só com as religiões, mas também com as espiritualidades. O que é mais essencial é a “obediência à própria consciência”. É um diálogo que se abre a todos aqueles de “boa vontade”, que têm uma “alma nobre”, para utilizar aqui uma expressão cara ao compositor e cantor Gilberto Gil. O diálogo requer profundo respeito “aos caminhos misteriosos de Deus no coração das pessoas” (GEFFRÉ, 2004, p. 176). Diz Francisco em seu diálogo com Eugenio Scalfari: “o mundo vem percorrido por estradas que nos avizinham e distanciam, mas o importante é que nos levem ao Bem” (FRANCESCO; SCALFARI, 2013, p. 55; POLITI, 2019, p. 9). Esse imprescindível caminho dialogal não é simples, mas requer “paciência, ascese e generosidade” (FRANCISCO, 2015, p. 161 – LS 201).

Não há como julgar o outro com clareza e respeito senão mediante um novo olhar, pontuado pela acolhida e largueza (GEERTZ, 2001, p. 85). Esse aprendizado, que vem da antropologia, deve regar o mundo da teologia e da pastoral, sobretudo no caso daqueles que buscam se dedicar ao diálogo. Falando aos teólogos da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, em Nápoles, em junho de 2019, o papa Francisco discorreu sobre uma “teologia da acolhida”, uma “teologia em rede”, solidária “com todos os náufragos da história” (FRANCESCO, 2019b). Com base em sua bela imagem de uma Igreja “em saída”, Francisco tem advertido sempre contra o risco de domesticar as fronteiras. Há que abraçar e acolher com carinho e abertura as diferenças. Ele adverte contra o risco do fechamento nas mônadas peculiares. Há que ter a audácia de “viver nas fronteiras” e deixar-se transformar por elas (FRANCESCO; SPADARO, 2017, p. 71-72).

Conclusão

O desafio maior de construir pontes é o que marca o pontificado de Francisco. No coração de todo o seu empenho evangelizador está o diálogo. Aliás, a ideia que move Francisco nessa missão é a que bem definiu Paulo VI na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo (1975), identificando-a como um compromisso de “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). O modo mais bonito de amar a Deus, diz Francisco, é o que ocorre no caminho do ágape, do amor. Este é que situa o ser humano diante do núcleo da pregação de Jesus. O amor aos outros “é o único modo de amar a Deus”, aquele que “Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças” (FRANCESCO; SCALFARI, 2013, p. 56).

Com a notável carta encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato Si’ (2015), Francisco expande a sensibilidade dialogal para toda a criação, animado por uma reverência essencial à vida em todas as suas formas de expressão: os humanos, as espécies companheiras e toda a criação. É o grande salto de Francisco para o Mistério sempre maior, capaz de perceber o rosto de Deus numa “folha, em uma vereda, no orvalho, no rosto do pobre” (FRANCISCO, 2015, p. 184 – LS 233). Tudo é vida e mistério, tudo necessita de cuidado reverencial. E todos esses seres queridos por Deus estão estreitamente interligados (FRANCISCO, 2015, p. 15 – LS 16). O que se requer como pista fundamental de uma nova espiritualidade da criação é a disponibilidade para ouvir cada movimento e som deste mundo, como expressou o mestre espiritual Ali Al-Khawwas, citado pelo papa em nota da Laudato Si’ (FRANCISCO, 2015, p. 184, nota 159 – LS 233).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Faustino Teixeira

Faustino Teixeira é professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). É pesquisador do CNPq. Dentre suas linhas de pesquisa, destacam-se: teologia das religiões, diálogo inter-religioso e mística comparada das religiões. É autor de vários livros, entre os quais Buscadores cristãos no diálogo com o islã, publicado pela Paulus. E-mail: [email protected]