Publicado em maio-junho de 2025 - ano 66 - número 363 - pp. 4-11
FIDELIDADE DA IGREJA À FÉ EM JESUS CRISTO PROCLAMADA PELO NOVO TESTAMENTO: OS 1.700 ANOS DO CONCÍLIO DE NICEIA
Por Eliseu Wisniewski*
A celebração dos 1.700 anos do Concílio de Niceia oferece-nos a oportunidade de revisitar esse marco miliário na história da Igreja. Ao condenar a doutrina ariana, esse evento adotou uma profissão de fé cristã que, ao afirmar solenemente a divindade de Cristo, convida os cristãos a se unirem no louvor e agradecimento à Santíssima Trindade e, particularmente, a Jesus Cristo, o Filho de Deus, “consubstancial ao Pai”, que nos revelou esse mistério de amor.
Na esteira dos 21 concílios realizados pela Igreja Católica, estamos celebrando, neste ano de 2025, os 1.700 anos do primeiro concílio ecumênico da história da Igreja: Niceia. O concílio foi realizado no período de 20 de maio a 25 de julho de 325 d.C., na cidade de Niceia da Bitínia, atual Iznik (Turquia), província de Anatólia (Ásia Menor), localizada próximo a Constantinopla.
Cientes de que as datas comemorativas despertam a memória para fatos passados, cujo significado merece ser conservado, revisitado e transmitido, nas páginas que compõem este texto, buscaremos olhar especificamente para o Concílio de Niceia e, com o auxílio de diferentes autores, verificar como, no decurso da história da Igreja, esse evento possibilitou o desenvolvimento e o aprofundamento da proclamação da fé em Jesus Cristo na fidelidade à fé neotestamentária.
Iniciaremos mostrando que a Igreja Católica se orientou historicamente pelos concílios como um recurso para estabelecer consensos de fé na comunidade, quando se via sob o risco de dissensos internos e ameaças externas. Num segundo momento, tendo em conta que as decisões conciliares não podem ser compreendidas fora do contexto da época, olharemos para a problemática enfrentada em Niceia. Na sequência, considerando a resposta dada pelo concílio, pontuaremos elementos da cristologia nicena. A fim de ajudar no discernimento pastoral, concluiremos chamando a atenção para as consequências das orientações cristológicas que desintegram a relação entre o divino e o humano em Jesus Cristo.
1. “Ecclesia semper renovanda”: o Concílio de Niceia como momento de definição e esclarecimento da identidade da Igreja
Desde os primeiros séculos da Igreja, os bispos, postos à frente das igrejas particulares, movidos pela comunhão da caridade fraterna e por amor à missão universal conferida aos apóstolos, associaram suas forças e vontades para procurar o bem comum e das igrejas particulares. Por esses motivos se constituíram os sínodos, os concílios provinciais e os concílios plenários, nos quais os bispos estabeleceram uma norma comum que deveria ser observada em todas as Igrejas, tanto no ensinamento das verdades de fé como na ordenação da disciplina eclesiástica.
Essa primeira aproximação, recolhida do Decreto Christus Dominus sobre o ministério pastoral dos bispos do Vaticano II, n. 36, oferece-nos ampla visão panorâmica do fato conciliar, além de nos informar sobre sua riqueza e complexidade.
O termo “concílio” designa a assembleia de bispos e dirigentes de várias ou de todas as igrejas particulares que se reúnem para tomar decisões vinculantes em questões relativas à fé e à vida cristã. Em geral, aos concílios é atribuído poder dogmático e disciplinar. Considerando que todo concílio é um “fato no devir histórico eclesial” (Vidal, 2014,
p. 11), a Igreja Católica reconhece 21 concílios ecumênicos, dos quais os sete primeiros constituem um patrimônio espiritual comum a católicos, ortodoxos, anglicanos, luteranos e outros cristãos. Grosso modo, as assembleias conciliares que tiveram gigantesca importância na formulação da fé cristã são divididas em quatro períodos tradicionais da história da Igreja: primeiro milênio, medieval, o da época da Reforma e o da Idade Moderna.
Desconsiderando o Concílio de Jerusalém (48/50 d.C.), os
concílios do primeiro milênio foram convocados para estabelecer regras doutrinárias visando combater a heresia. Os concílios medievais e os que ocorreram na época da Reforma foram convocados para reformar a Igreja e para esclarecer algumas questões doutrinárias. Na Idade Moderna, os dois concílios do Vaticano foram convocados por razões bastante distintas: o primeiro para estabelecer uma definição da infalibilidade papal; o segundo para renovar a Igreja, que, durante muito tempo, se defasara em relação aos desenvolvimentos contemporâneos (Bellitto, 2016, p. 15-16.)
Como dito acima, a Igreja Católica orientou-se historicamente pelos concílios como recurso para estabelecer consensos na fé da comunidade, quando se via sob o risco de dissensos internos e ameaças externas. Esses 21 concílios são marcos essenciais da história da Igreja, pois, por meio deles, ela reflete sobre si. João Décio Passos (2014, p. 5-30), ao responder à pergunta sobre o “fôlego histórico de um concílio para a Igreja” (p. 21), descreve que a figura do concílio apareceu quando a comunidade cristã começou a sofrer crises de consenso quanto a alguma doutrina ou alguma prática, ou seja, quando o carisma começou a ser rotinizado e já não tinha a força consensual espontânea nem a força da palavra do líder ou dos líderes da primeira geração. Para o estabelecimento do consenso, já não bastava a experiência da salvação vivenciada pela comunidade, agora distante de seu nascedouro original. Era necessário, então, que a razão entrasse em cena para esclarecer, fundamentar e definir o que devia ser aceito como bom e verdadeiro pela comunidade de fé, de modo que ela permanecesse fiel às suas origens e preservasse vivo o carisma que daí recebera.
Ainda segundo o referido autor, os concílios são momentos de revisão, afirmação e transmissão da Igreja feitos pelo magistério, o qual, em seu múnus de ensinar, exerce o mandato evangélico de levar a Boa-nova a todos os povos (cf. Lc 24,47-48), sob a guia do Espírito, que conduz os discípulos à verdade (cf. Jo 16,13), e a coordenação primeira do sucessor de Pedro, a quem compete confirmar os cristãos na fé (cf. Lc 22,32) em comunhão com o colégio apostólico dos bispos de toda a Igreja. Portanto, na maioria das vezes, os concílios tiveram a função de criar consensos de fé, corrigindo, para tanto, desvios de posturas, reagindo a erros e definindo regras e rumos para o conjunto da Igreja.
A figura dos concílios, conclui o professor Passos, expressa certamente a vocação histórica do cristianismo católico, ou seja, sua capacidade de manter o carisma cristão em cada contexto, fazendo revisões, adaptações e discernimentos. Os 21concílios realizados pela Igreja construíram e reconstruíram a identidade cristão-católica; assim sendo, a Igreja, como instituição portadora de um carisma religioso, tem de responder às dinâmicas da história com conteúdos fortes o suficiente para fazê-la subsistir em cada contexto como legítima, verdadeira e relevante para a sociedade. Para concretizar essa resposta, ela se serve da matéria-prima de sua Tradição e também da história, tendo como resultado novo conteúdo institucional, uma identidade definida e afirmada perante o mundo e perante si mesma.
2. Um concílio para restabelecer a paz perturbada pela pregação de Ário: considerações sobre o Concílio de Niceia
O desenvolvimento da teologia cristã no século IV foi determinante no combate ao arianismo. A crise ariana dividiu a hierarquia eclesiástica, pondo os bispos uns contra os outros e envolvendo a coluna central do Império Romano: “nas primeiras décadas do século IV, em Alexandria, um presbítero chamado Ário voltou a levantar a questão que buscava saber se o logos de Deus poderia ser perfeitamente Deus como o próprio Deus Pai” (Lange, 2020, p. 25; Lenoir, 2024, p. 214-216). Negando a divindade de Cristo, sua pregação causou problemas porque “considerava Cristo uma criatura; não uma criatura como as outras, senão privilegiada, mas criatura afinal. Sua preocupação fundamental era a afirmação da unicidade de Deus, comprometida, segundo ele, se fosse aceita a divindade do Filho” (Ladaria, 2012, p. 183).
O arianismo atacava o centro da doutrina cristã, pois, se o Filho de Deus (Jesus Cristo) não fosse Deus, a obra de redenção perderia seu valor e, consequentemente, toda a revelação cristã não representaria nada. Esse problema, gerado pelo arianismo, foi enfrentado em Niceia. Na primeira tentativa de resolver a disputa relativa à posição defendida por Ário e, com isso, restaurar a paz social e religiosa, Constantino convocou os bispos de todo o império (em sua totalidade das províncias orientais) para se reunirem no Concílio de Niceia:
realizado num período de tempo que vai de maio a agosto de 325, o primeiro concílio ecumênico da história da Igreja é convocado, organizado e até presidido pelo imperador, através do seu homem de confiança, Ósio de Córdova, ajudado logo em seguida por dois presbíteros representantes do papa Silvestre, que não pôde intervir nos debates por causa da idade avançada (Pierini, 2024, p.149).
Em relação ao perfil histórico desse concílio, “de notável importância revestem-se os relatórios de Atanásio (Sobre os sínodos 19-10), embora escritos a distância no tempo e por pessoa que, decerto, estava plenamente envolvida na polêmica” (Dell’Orto; Xeres, 2024, p. 281). Por sua vez, o professor de história do cristianismo Lorenzo Perrone (2020, p. 11-45) destaca que o estado lacunoso de informações, de documentação e de atas sinodais condiciona amplamente as tentativas de reconstrução histórica, sendo possível “apenas uma reconstrução amplamente conjetural” (p. 27). Diante disso, Perrone nota que a fonte mais importante para conhecer o desenvolvimento do referido concílio são as informações de Eusébio de Cesareia, em Vida de Constantino. O número de participantes não é fornecido, fazendo com que os estudiosos oscilem entre 194 e 237; até mesmo os próprios contemporâneos do concílio oferecem cifras discordantes. Elas oscilam entre os 250 de Eusébio de Cesareia, os 200 ou 270 de Eustáquio de Antioquia e os 300 de Constantino, até o número altamente simbólico de 318, que depois se tornou tradicional. Inspirando-se nos 318 servidores de Abraão de Gn 14,14, a partir da segunda metade do século IV, o Concílio de Niceia será comumente indicado como o “concílio dos 318 padres”.
No tocante ao desenvolvimento, Perrone (2020, p. 26-28) enfatiza que o concílio se reuniu no dia 20 de maio de 325, no palácio imperial de Niceia, onde Constantino presidiu a sessão inaugural, passando em seguida a presidência dos trabalhos a Ósio de Córdova, não porque fizesse parte do legado romano, mas porque se tratava de alguém em quem o imperador tinha confiança. Dos assuntos debatidos, há os que atribuem peso condicionante aos resultados do concílio antioqueno, que precedeu o de Niceia, sustentando que os padres conciliares enfrentaram a questão da readmissão dos que tinham sido temporariamente excluídos da comunhão eclesial, ao passo que outras fontes sugerem que os primeiros a intervir na discussão a respeito dos temas centrais da controvérsia ariana teriam sido os defensores de Ário, que propuseram uma fórmula de fé não conhecida. Isso gerou os mais vivos protestos da assembleia, com a intervenção de Eusébio de Cesareia, que propôs como solução o credo professado pela sua Igreja, sendo este o ato mais importante do Concílio de Niceia: a redação e a aprovação de fé na forma de símbolo.
Por algum tempo, Ário havia sustentado que Jesus não era eterno nem incriado como Deus Pai. O Concílio de Niceia condenou o erro de Ário, afirmando que o Filho foi gerado da mesma substância do Pai e não foi criado do nada, por isso é Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Ao enfrentarem o problema do arianismo, os bispos presentes
redigem um novo símbolo de fé no qual aparece claramente enunciada a unidade de natureza entre o Pai e o Filho, através da fórmula do “omoúsios” (= consubstancial), e golpeiam com anátemas as principais teses arianas; em seguida, estabelecem vinte cânones disciplinares a respeito da vida e da organização do clero, da concordância entre divisão administrativa eclesiástica, tratam da solução de alguns problemas penitenciais e a fixação da data da Páscoa segundo a praxe alexandrina e romana (Pierini, 2024, p. 150).
As decisões de Niceia determinaram as décadas subsequentes até que, por volta do final do século IV, a ortodoxia nicena se impôs como norma de fé (Dünzl, 2023, p. 63-93). Depois do Concílio de Niceia, o “credo assumiu uma nova função, tornando-se a expressão de fé ortodoxa, com a exclusão de posições errôneas. Começa a servir como critério de pertencimento ao colégio dos bispos e, portanto, à comunhão de suas Igrejas” (Wicks, 2024, p. 118).
3. “O Filho pertence à mesma natureza do Pai”: o significado da cristologia de Niceia
Os concílios “constituem uma marca que atravessa toda a secular história cristã” (Alberigo, 2020, p. 5) e foram vividos sempre na Igreja como ponto final, clarificador de uma dificuldade teológica e pacificador de uma dimensão eclesial. Niceia teve como questão central aclarar a relação entre Cristo e Deus, definida como geração, filiação, consubstancialidade, divindade. Em outros termos, “o concílio retoma de novo o ponto de partida bíblico, o relacionamento do Pai e do Filho, porém agora não só em sua realidade histórico-salvífica, mas também em sua profundeza intradivina essencial” (Kessler, 2022, p. 306). O que se define é que o Filho de Deus é tão divino quanto o Pai e igual a ele na divindade; consubstancial ao Pai indica que o Filho de Deus não tem nenhuma semelhança com as criaturas que foram feitas; ele é em tudo semelhante ao Pai que o gerou e não deriva de outra hipóstase ou substância, mas do Pai.
Ainda hoje, quando há uma preocupação com a inculturação do Evangelho, a resposta dada em Niceia tem algo a dizer. O teólogo Jacques Dupuis (1999, p. 114-119) acentua que uma autêntica inculturação da fé deve respeitar a linguagem da cultura circunstante e as diferenças de conteúdo entre a fé cristã e os conceitos filosóficos culturais correntes. Foi precisamente o que fez Niceia diante da cultura helenista. Melhor dizendo, se o arianismo representa uma helenização do conteúdo da fé cristológica da Igreja, contra ele, o credo niceno enfatizou claramente a diferença entre o mistério de Jesus Cristo e os conceitos da filosofia helenista. Isso porque, “em Ário, o Deus dos filósofos se impôs ao Deus vivo da história. A doutrina bíblica do Logos de tipo soteriológico se converteu em especulação cosmológica e moral. Sua teologia é uma aguda helenização do cristianismo” (Kasper, 2002, p. 293).
As importantes conquistas cristológicas de Niceia trazem implicações para o conceito cristão de Deus e encaminham-nos para novas intuições a respeito do mistério de Deus. Dupuis (1999, p. 116-117) destaca que a cristologia nicena ressalta sua peculiaridade em níveis diferentes: Deus se autocomunica, pessoalmente, na existência humana do homem Jesus; essa autocomunicação de Deus em seu Filho encarnado revela o que ocorre entre as três pessoas da Trindade, no mistério da vida íntima de Deus. Essa autocomunicação divina com a humanidade, por sua vez, descortina-nos nova perspectiva de Deus em si mesmo, vista como autocomunicação eterna do Pai com o Filho.
Em consonância com isso, o teólogo Olegario Gonzáles de Cardedal (2022, p. 282-289) assinala que a fé católica é a fé de Niceia, ou seja, a confissão cristológica de Niceia é a primeira definição dogmática da Igreja e continua a ser o texto eclesial de maior autoridade, já que expressa a concepção cristã de Deus e, ao definir a relação de Cristo com Deus, define também sua natureza como Filho. Para Cardedal, a cristologia de Niceia é decisiva em seus pressupostos, tanto pelo fato de decidir quanto pelo conteúdo decidido; assim sendo, a significação perene desse concílio é múltipla: hermenêutica, teológica, soteriológica e eclesiológica.
Dimensão hermenêutica. Na medida em que interpreta a Sagrada Escritura, Niceia fala sobre Cristo. No entanto, o concílio não se propõe oferecer uma exegese melhor do que a de Ário, e sim responder às novas questões à luz da regra de fé e da Tradição apostólica da Igreja. A resposta dada emprega termos filosóficos e não bíblicos, assumindo uma terminologia familiar aos seus ouvintes para transpor o universo bíblico e propor um universo filosófico novo. Por essa razão, não realiza uma helenização da fé, mas uma extensão das palavras e conceitos humanos para significar algo até então não intuído pela razão humana.
Dimensão teológica. O Deus cristão é comunicação em amor constituinte; comunicação em si mesmo (Trindade imanente) e comunicação para fora de si (Trindade econômica). Não existe eternamente Deus sem o Filho; consequentemente, já não é possível uma compreensão cristã de Deus que prescinda de Cristo como Filho, visto que ele pertence à própria constituição de Deus. Não há Deus sem o Verbo eterno, uma vez que o originário não é o silêncio, mas a Palavra. Essa eterna comunicação intradivina de Deus é que se revela no mundo pela encarnação; e, transcendendo-se na existência de Jesus, a partir dele e por ele, ela se inscreve em cada ser humano.
Dimensão soteriológica. A salvação se dá a partir de dentro da história, por alguém que restaura a humanidade, fazendo nova a existência; quer dizer, a salvação humana se fundamenta na pessoa divina e encarnada do Filho. A consubstancialidade com o Pai e sua participação em nossa humanidade fundam a potência redentora do Filho.
Dimensão eclesiológica. Se o acesso à verdade passa pela comunidade – por uma comunidade com autoridade para interpretar as Sagradas Escrituras e decidir seu conteúdo –, Niceia, oferecendo uma resposta normativa a toda a Igreja, não quis ser outra coisa senão uma releitura atualizadora, inteligível e salvífica do Evangelho.
4. Discernimento pastoral: a necessária revisão da imagem e da apresentação de Jesus Cristo
A Igreja, em cujo seio se formaram os diversos escritos que compõem o Novo Testamento, foi fiel, durante sua caminhada histórica, à fé em Jesus Cristo, tal como vem expressa no Novo Testamento. Nesse itinerário, viu-se na necessidade de definir como verdade de fé aquilo que o Novo Testamento confessa com clareza: Jesus Cristo é de condição humana real e, simultaneamente, também de condição divina real.
A salvação mediante Jesus Cristo, único mediador, supõe, portanto, a união do divino e do humano nele. No entanto, esta perspectiva de integração não recebeu a devida consideração. Alfonso García Rubio (2024, p. 135-166) chama a atenção para as consequências da penetração crescente no cristianismo do dualismo herdado do pensamento platônico/neoplatônico, do estoicismo e do gnosticismo. Nessa perspectiva dualista, as dimensões humanas são vistas mediante uma relação em que predomina a exclusão de uma dimensão em nome da importância atribuída à outra. Com efeito, à medida que foi sendo aplicada a Jesus Cristo essa antropologia dualista, as relações entre o divino e o humano – bem como a etapa de fragilidade e a etapa de glorificação do homem Jesus – foram guiadas pela tendência a excluir uma dimensão para valorizar outra.
Essa tendência tem predominado na Igreja até os nossos dias. Segundo Rubio, algumas orientações cristológicas têm descuidado de uma dimensão para valorizar a outra, com consequências negativas para a pastoral e a espiritualidade cristãs. Por exemplo, nas celebrações litúrgicas que prescindem do caminho do serviço assumido por Jesus, observam-se a importância dada às aparências, ao que é secundário e pomposo, e o total apagamento da perspectiva do amor-serviço, especialmente aos mais desprotegidos da sociedade e das comunidades de fé. Em teoria, os cristãos confessam que Jesus é o único mediador da salvação, mas parece que, na prática, muitos preferem outros mediadores, supostamente mais próximos da limitação humana. Sem falar que a utilização ideológica do Cristo glorificado, separado das suas escolhas e prioridades, serve frequentemente para justificar o exercício do poder dominador, levando a uma sacralização de estruturas eclesiásticas de poder.
Obviamente, não se trata de descuidar da condição divina de Jesus, diz o aludido autor, e sim de ajudar a perceber, na densa e real humanidade de Jesus, a plena revelação de Deus, a realidade surpreendente da sua condição divina. Para isso, seria necessário, pastoralmente, ajudar no encontro com um Jesus Cristo vivo e próximo, muito distinto de um Jesus abstrato, distante, perdido na complexidade de formulações dogmáticas, incompreensíveis para a maioria dos cristãos/cristãs.
Com efeito, a renovação da Igreja não é possível sem a correspondente renovação da cristologia e da reflexão sobre o Deus cristão. Concretamente, quando se acentua a originalidade do Deus cristão, do Deus que se humaniza por meio da encarnação, muda-se a proposta de humanização do ser humano e muda-se o sentido profundo do ser da Igreja.
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Eliseu Wisniewski*
*é presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) – província do Sul –, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professor na Faculdade Vicentina em Curitiba-PR. E-mail: [email protected]