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Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 20-27

Entre a dor que dilacera e a vontade de viver: a memória de Ezequiel no pós-guerra “Abre a boca e come o que te entrego” (Ez 2,8)

Por Cecilia Toseli*

O livro de Ezequiel pode ser lido como um relato de sobrevivente sobre a tomada de Jerusalém pelos babilônios entre 597 e 587 a.C. Versos de julgamento, com expressões de crescente violência, mostram dor extrema e incapacidade de entender a realidade brutal. Versos de consolação, com expressões de fé e esperança, revelam o segredo da sobrevivência. A comunidade de Ezequiel tenta superar o trauma da guerra.

 

Introdução

O livro de Ezequiel pode ser lido como um relato de sobrevivente da tomada de Jerusalém pelos babilônios entre 597 e 587 a.C. No bloco dos capítulos de Ez 1 a 24, predominam versos de julgamento contra Judá, que anunciam a destruição iminente de Jerusalém. No bloco dos capítulos de Ez 33 a 48, predominam versos de consolação, que pressupõem a ocorrência da catástrofe e projetam um futuro promissor. A ligação entre os dois blocos é a referência à queda de Jerusalém. Assim, em Ez 24,25-27, é anunciada a futura chegada de um fugitivo de Jerusalém que trará a notícia da queda da cidade. Em Ez 33,21-22, finalmente, chega o fugitivo, anunciando que “a cidade foi tomada”. Entre esses dois blocos, há vários capítulos que se dirigem contra nações estrangeiras (Ez 25 a 32) (HALS, 1989).

No conjunto, podemos perceber, por trás das palavras do livro de Ezequiel, uma experiência aterrorizante de mulheres, crianças e homens que viveram a dor e a violência de invasões militares, fome, doenças, mortes, destruições e deportações de uma guerra:

“o povo comerá com angústia o pão minguado e beberá apavorado a sua água medida” (4,16).

“A terça parte dos teus habitantes morrerá pela peste e perecerá de fome no meio de ti; outra terça parte cairá à espada em torno de ti; finalmente, a outra terça parte a espalharei a todos os ventos e desembainharei a espada atrás deles” (5,12).

“Os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita. Para nós está tudo acabado” (37,11).

Ao mesmo tempo, a comunidade de Ezequiel mantém sua fé em Javé, afirmando a esperança em um futuro melhor:

“Como o pastor cuida do seu rebanho, quando está no meio das suas ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos os lugares por onde se dispersaram em dia de nuvem e escuridão” (34,12).

“Eles não voltarão a servir de presa às nações e as feras não os devorarão. Habitarão tranquilos, sem que ninguém os amedronte” (34,28).

“Eis que abrirei os vossos túmulos e vos farei subir dos vossos túmulos, ó meu povo, e vos reconduzirei para a terra de Israel” (37,12).

Em geral, os versos de julgamento e os versos de consolação são interpretados separadamente, associados a fases distintas da vivência da comunidade de Ezequiel. Os versos de julgamento são relacionados ao período próximo à guerra e às deportações, como uma advertência diante de iminente catástrofe (33,10-11). Como não teria havido arrependimento nem conversão, de acordo com o relato, veio o castigo: Javé determinou a destruição de Jerusalém e a deportação do povo para a Babilônia. Então, os versos de consolação costumam ser associados a um período posterior à catástrofe, para fortalecer a fé e a esperança na volta do desterro e na restauração do templo e da cidade de Jerusalém.

Proponho, aqui, uma interpretação conjunta dos versos de julgamento e de consolação, situando-os em um período posterior à catástrofe. Nesse sentido, eles são considerados partes integrantes de uma mesma resposta típica de sobreviventes de guerras. Nosso olhar se detém, então, no efeito prolongado dos horrores das invasões e deportações babilônias em Jerusalém. Mesmo após o fim do conflito armado, há uma dor dilacerante, persistente e perturbadora que atinge a todos, durante muito tempo. Esse efeito específico da guerra em um povo pode ser chamado de trauma coletivo (CARR, 2011). Vejamos como a comunidade de Ezequiel buscou superar o trauma da guerra. A primeira reação dos sobreviventes é o “silêncio”.

1. “Sem palavras”

Eventos históricos como invasões militares, fome, pestes, massacres, deportações e destruições decorrentes de guerras são realidades cuja violência e horror afetam a capacidade humana de atribuir significado aos acontecimentos. As vítimas de uma guerra vivem um tipo específico de sofrimento, extremo, que geralmente afeta a memória e o comportamento das pessoas por gerações. Esse tipo de sofrimento pode ser definido como trauma. O trauma se caracteriza por ser uma dor tão intensa, profunda e perturbadora, que as pessoas afetadas têm dificuldade ou mesmo incapacidade de falar e pensar diretamente sobre a experiência de violência e horror que vivenciaram (CARR, 2011; FRECHETTE; BOASE, 2016).

Nesse sentido, uma cena muito expressiva no livro de Ezequiel é aquela em que Javé obriga o profeta a “comer o rolo” que continha “lamentações, gemidos e prantos” (POSER, 2016). Diz Javé: “Abre a boca e come o que te entrego”; “Filho do homem, ingere este rolo que te estou dando e sacia-te com ele” (2,8-3,3). Ao “comer o rolo”, Ezequiel sentiu-se “amargurado”, “consternado” (3,14-15). Pouco depois, Javé anuncia: “Pregarei a tua língua ao teu palato, ficarás mudo […]” (3,26).

De fato, ao longo dos capítulos 1 a 24, em imagens cada vez mais violentas, constata-se que o profeta já não suporta ver o cerco de Jerusalém, o massacre dos habitantes, a conquista e a destruição da cidade. Ele fica mudo diante dos horrores da guerra. Sem palavras. Ele desvia o olhar diante do que está para acontecer (POSER, 2016, sobre Ez 9-10; 24-25). Essa é uma reação típica diante de eventos de extrema violência. Resta-lhe somente o gemido: “E tu, filho do homem, geme com o coração partido e com amargura, geme aos seus olhos” (21,6[11]).

Assim, “comer o rolo” pode representar, para a comunidade de Ezequiel, a necessidade dramática de aceitar a destruição de Jerusalém como um fato. Afinal, somente após ouvir a notícia da queda de Jerusalém, Javé “abriu-me a boca e fiquei livre da minha mudez (33,21-22). A partir de então, predominam, no texto, os versos de consolação. Ou seja, o passado não se modifica. Contudo, para conseguir seguir em frente, é preciso “digerir”, confrontar a dura realidade dos fatos, “abrir a boca” e falar sobre a própria dor, atribuir um sentido à catástrofe e integrá-la à própria história. Como a comunidade de Ezequiel “falou” sobre o terror de deportações, fome, sede, doenças, massacres? Como contou sua história? Que sentido atribuiu à catástrofe?

2. Vergonha e culpa

A comunidade de Ezequiel falou de seu passado como uma história de erros, culpa e vergonha, desde o começo da aliança com Javé (20,5-6). Muitas foram as advertências proféticas, mas persistiram no erro e não se arrependeram. Por isso, foi justo, merecido e inevitável o castigo divino que se abateu sobre esse povo “rebelde” (2,6; 3,9):

“Sim, atirarei a fome e animais ferozes que vos deixarão sem filhos; a peste e o sangue passarão pelo meio de ti; trarei a espada contra ti. Eu, Javé, o disse” (5,17; cf. 16,42; 21,8[1-12]).

“Tornar-te-ás objeto de escárnio e zombaria […]. Ficarás cheia de vexame e de embriaguez. Receberás uma taça de horror e desolação. […], roerás os seus cacos e dilacerarás teus peitos, porque eu o disse” (23,32b-34).

Essa foi a explicação apresentada em Ezequiel para a catástrofe que se abateu sobre Judá com a invasão dos babilônios.

Naquela época, dizer que a catástrofe de Jerusalém fora castigo de Javé era uma maneira de dar sentido aos horrores da guerra. Significava afirmar que o imenso poder visto na avassaladora destruição de Jerusalém continuava nas mãos do Deus de Judá. Ele não havia sido derrotado. Os babilônios e seus deuses eram apenas instrumentos nas mãos de Javé. Ademais, assim como Javé tem o poder de destruir, ele tem o poder de reconstruir a vida de seu povo (33,10-11). Desse modo, acreditava-se que ainda podia haver alguma esperança em meio a tamanha desolação.

Ao mesmo tempo, os versos de julgamento fazem recair sobre o povo toda a culpa, humilhação e vergonha pela catástrofe. Essa era uma maneira de dizer que Javé continuava a ser um Deus justo e inocente, pois o castigo fora merecido. Javé, ele, sim, fora vítima do abandono do seu povo. Inocentar Javé e apresentá-lo como vítima, de alguma maneira, transmitia aos sobreviventes a percepção de que Javé era o único capaz de se solidarizar com a dor e o abandono que sentiam. Ele era o único capaz de reconhecer o sofrimento de uma comunidade que nem sequer conseguia falar (POSER, 2016).

Embora pareça contraditório, desse modo se recompunha a imagem de Javé como um Deus em quem se podia confiar, apesar da violência e brutalidade do seu castigo. E insistir na própria culpa era uma maneira de entender a “causa” do desastre e assumir algum “controle” sobre uma realidade caótica, imprevisível e sem explicação razoável (CARR, 2011; FRECHETTE; BOASE, 2016).

O trauma das deportações e dos horrores da guerra tem outro efeito prolongado: a atitude de “fechamento” das vítimas em seus próprios grupos.

3. Nós versus eles

Pessoas que sofrem traumas coletivos tendem a polarizar as relações sociais na dinâmica “nós versus eles”. Por exemplo, quando pessoas deportadas são estabelecidas em um único local, o assentamento é considerado, muitas vezes, um lugar de purificação do sofrimento e de identidade. Então, as pessoas que não pertencem a esse grupo ou assentamento são consideradas impuras ou até inimigas. Nesse sentido, é comum surgir uma série de acusações contra nações estrangeiras, responsabilizadas ​​por desastres militares e regimes de opressão (CARR, 2011). Há também, contudo, acusações recíprocas entre grupos “irmãos”, que vivenciaram experiências semelhantes.

No livro de Ezequiel, há acusações contra nações estrangeiras (Ez 25-32) e há também acusações entre grupos “irmãos”. Por exemplo, os moradores de Jerusalém dizem a judaítas deportados: “Vós estais longe de Javé; foi a nós que Deus deu a terra como patrimônio” (11,14-15). Por sua vez, o grupo de deportados de Ezequiel na Babilônia afirma que Javé continua a protegê-los e a eles foi feita a promessa de retorno e posse da terra: “Eu vos ajuntarei de entre os povos, reunir-vos-ei das terras nas quais fostes espalhados e vos darei a terra de Israel” (11,17).

A tragédia atingiu a todos. Tanto as pessoas deportadas de Jerusalém quanto as que permaneceram em Judá foram vítimas da guerra. Porém, o “fechamento” na própria dor e o “isolamento” no próprio grupo levaram à polarização das relações, também entre os judaítas. Quando isso acontece, os grupos deixam de dialogar. Tornam-se cegos e surdos às necessidades e à dor das outras pessoas. Têm dificuldade em negociar um acordo em vista do bem comum. No pós-guerra, o projeto de reconstrução de Jerusalém proposto pela comunidade de Ezequiel (Ez 40-48) reproduziu o passado de opressão, exclusões e violência entre grupos “irmãos”, mesmo que todos tenham vivenciado os horrores da guerra.

Ao lado de acusações, dor, culpa, vergonha e “polarizações”, no livro de Ezequiel há versos de fé e esperança em Javé.

4. Confiança e esperança

Experiências extremas de dores pessoais e coletivas, como as de uma guerra, destroem o sentimento de confiança de uma pessoa e de uma comunidade em si mesma e em seu futuro. Assumir a responsabilidade e mudar o comportamento pode ajudar a prevenir outras catástrofes. Entretanto, o sentimento exagerado de uma culpa desproporcional pode paralisar a capacidade de seguir em frente. Assim, no processo de superação de um trauma, tanto a ênfase na culpa quanto a esperança na restauração das condições de vida caminham juntas (CARR, 2011; POSER, 2016):

“Contudo, lembrar-me-ei da aliança que fiz contigo na tua juventude e estabelecerei contigo uma aliança eterna” (16,60).

“E vós, montes de Israel, produzireis para o meu povo de Israel os vossos ramos e os vossos frutos, pois que ele há de voltar em breve. […] As cidades serão habitadas e as ruínas, reedificadas. Multiplicarei sobre vós os homens e o gado” (36,8-12).

As sentenças de crescente violência nos versos de julgamento, atribuídas ao “castigo divino”, mostram o impacto da brutalidade da guerra na comunidade de Ezequiel e a intensidade de sua dor. Ao mesmo tempo, as expressões de fé e esperança nos versos de consolação revelam o segredo de sobreviver em meio a um sofrimento que os deixava paralisados, impotentes, “sem palavras”. Assim, apesar de parecerem contraditórios, julgamento e consolação não se excluem nem se opõem entre si em relatos de sobreviventes. Integram a mesma resposta de uma comunidade traumatizada, como a de Ezequiel, que tenta lidar com os efeitos “duradouros e perturbadores” de uma guerra (FRECHETTE; BOASE, 2016, p. 13).

Para continuar a conversa

O livro de Ezequiel nos leva a refletir sobre a violência das guerras e seus prolongados efeitos na vida dos sobreviventes e de suas comunidades. Olhando o contexto do mundo de hoje, onde estamos vendo essa mesma situação? Qual é nossa resposta? Qual é a responsabilidade coletiva do Estado e nossa responsabilidade individual nas questões de violência e nos conflitos, por exemplo, nas famílias, nas escolas, nos ambientes de trabalho? O que é necessário fazer para que a solução de um conflito crie um futuro novo para as pessoas envolvidas, comprometendo-nos com o bem comum? Uma sugestão: conhecer os fundamentos e práticas da Justiça Restaurativa que ajudam as pessoas a lidar com seus traumas individuais e coletivos e a prevenir a violência nas relações sociais (cf. www.cdhep.org.br).

Referências bibliográficas

CARR, David. Reading into the gap: refractions of trauma in Israelite prophecy. In: KELLE, Brad. E.; AMES, Frank R.; WRIGHT, Jacob L. Interpreting Exile: displacement and deportations in biblical and modern contexts. Atlanta: Society of Biblical Literature Press, 2011. p. 295-308.

FRECHETTE, Christopher G.; BOASE, Elizabeth. Defining “trauma” as a useful lens for biblical interpretations. In: BOASE, E.; FRECHETTE, C. G. Bible through the lens of trauma. Atlanta: Society of Biblical Literature Press, 2016. p. 1-23.

HALS, Ronald. Ezekiel. In: COATS, George W. et al. Forms of the Old Testament literature series. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1989. v. 19.

POSER, Ruth. No words: the book of Ezekiel as trauma literature and a response to Exile. In: BOASE, E.; FRECHETTE, C. G. Bible through the lens of trauma. Atlanta: Society of Biblical Literature Press, 2016. p. 27-48.

Cecilia Toseli*

*é doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Sua tese, intitulada Entre o fim e a continuidade: a memória norte-israelita do exílio de Samaria – história, tradição e literatura, recebeu o Prêmio Capes de Tese (menção honrosa), 2023. Assessora cursos bíblicos junto a comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. E-mail: [email protected]