Publicado em julho-agosto de 2023 - ano 64 - número 352 - pp.: 14-23
Eclesiologia das comunidades eclesiais de base
Por Pe. Benedito Ferraro*
As comunidades eclesiais de base (CEBs) nascem e se desenvolvem no mesmo terreno da preparação do Concílio Vaticano II. Com a superação do divórcio entre Igreja e sociedade, sobretudo a partir da Gaudium et Spes, as CEBs abrem-se, com base na ligação da fé com a vida, para ampla participação social, econômica, política, cultural e, mais recentemente, também ecológica.
Em sua caminhada nestas últimas décadas, as CEBs apontam, com sua prática, para um novo modelo eclesial, que se pauta sobretudo pela vivência da sinodalidade e preconiza cinco características (notas) fundamentais para a vivência da fé cristã no mundo de hoje: o seguimento de Jesus de Nazaré e o projeto do Reino de Deus, a centralidade da Palavra de Deus com a força do Espírito, a espiritualidade profética e libertadora, a opção pelos pobres, o compromisso com as transformações estruturais da sociedade.
As CEBs são uma experiência eclesial nascida no continente latino-americano e caribenho. São Igreja a partir da base e buscam responder às questões vindas do cotidiano. Como o próprio Jesus e as primeiras comunidades cristãs, elas enfrentaram e enfrentam oposições, quer no interior da própria Igreja, quer na sociedade, razão da presença de tantos mártires em nosso continente. As CEBs são Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus.
Introdução: nova compreensão da vivência cristã a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965)
O Concílio Vaticano II, mais do que um evento, é um processo que ainda hoje está em curso em virtude das contínuas interpretações, nem sempre coincidentes. Teve longa preparação, não somente imediata, com três anos de trabalho, mas nas décadas anteriores, com a busca de nova apropriação da Palavra de Deus como companheira de caminhada, a compreensão do Reino de Deus como anúncio central da pregação de Jesus de Nazaré, a compreensão da Igreja como povo de Deus, a renovação litúrgica, a abertura ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, a ação profética nas lutas dos pobres, a importância do dinamismo missionário, o protagonismo dos leigos e leigas, a redescoberta da colegialidade e sinodalidade exigidas na perspectiva do trabalho em equipe.
Esses aspectos, suscitados pela ação do Espírito e vivenciados em diferentes graus e dimensões em muitas partes do mundo, foram recolhidos e consignados nas constituições, decretos e declarações do Vaticano II, influenciando também as comunidades eclesiais de base, que nascem no Brasil por volta de 1957 e início da década de 1960 e se fazem presentes também em vários países da América Latina e do Caribe. As CEBs fazem a ligação da fé com a vida em suas dimensões econômica, social, política, cultural e ecológica e, por meio da articulação com a Palavra de Deus, agem social e politicamente em busca da justiça, fazendo surgir “um novo modo de ser Igreja” (CNBB, 1999, n. 3).
As CEBs bebem do mesmo contexto do Vaticano II. Estão em sintonia com ele, na medida em que nascem no e do terreno preparado pelo movimento bíblico, pelo movimento litúrgico e pela Ação Católica – especialmente em seus diversos ramos juvenis: Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Independente Católica (JIC), Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Universitária Católica (JUC) –, com a renovação da Doutrina Social da Igreja.
A Ação Católica abriu o caminho para a participação política dos cristãos e cristãs e pôs em prática o método ver, julgar e agir, dinamizando-o no sentido de uma prática crítica e transformadora, como já estava delineado na Mater et Magistra, n. 235-236, de João XXIII (1961). A Gaudium et Spes (GS) indica a superação do divórcio entre Igreja e mundo e aponta para a mútua relação entre essas instâncias, mostrando que pode dar sua contribuição para a construção de uma sociedade que respeite a dignidade da pessoa humana. A introdução da referida constituição pastoral do Concílio indica essa nova relação:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos e discípulas de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração (GS 1).
Abre-se também para a defesa dos direitos humanos: “A Igreja, portanto, por força do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos humanos dos homens e mulheres e admite e aprecia muito o dinamismo do tempo de hoje, que promove estes direitos por toda a parte” (GS 41)
1. Ligação fé-vida nas CEBs: fé-economia / fé-política / fé-culturas / fé-ecologia integral
As comunidades eclesiais de base já estão, de forma latente, presentes no Vaticano II e podem ser consideradas como um de seus frutos: “Nestas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres, ou vivendo na dispersão, está presente Cristo, por cuja virtude se consocia a Igreja una, santa, católica e apostólica” (Lumen Gentium, n. 26). Elas se estruturam mais fortemente a partir da Conferência de Medellín (1968):
A comunidade cristã de base é, assim, o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve em seu próprio nível responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também do culto que é sua expressão. Ela é, pois, célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana e do desenvolvimento (CELAM, 1969, 15,10).
Na recepção criativa do Vaticano II no continente latino-americano e caribenho, as CEBs buscaram nos documentos do Concílio orientações para sua ação evangelizadora e missionária:
1. Uma espiritualidade bíblica (Dei Verbum);
2. Ação transformadora no mundo (Gaudium et Spes);
3. Coordenação partilhada na perspectiva da colegialidade e da sinodalidade (Lumen Gentium);
4. Celebração dominical coordenada por um/a participante (Sacrosanctum Concilium);
5. Abertura ao diálogo ecumênico e inter-religioso (Unitatis Redintegratio, Dignitatis Humanae e Nostra Aetate).
A eclesiologia das comunidades eclesiais também se baseia nos documentos de Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007) e, mais recentemente, na exortação do papa Francisco Evangelii Gaudium (2013) e em suas encíclicas Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020), bem como na Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021). Também colaboram com a compreensão da eclesiologia das CEBs os encontros intereclesiais das comunidades de base, como o 15º Intereclesial, em Rondonópolis-MT, de 18 a 22 de julho de 2023, e, no continente latino-americano e caribenho, o 12º Encontro Continental de CEBs, em El Salvador, de 12 a 17 de novembro de 2024.
Com esses fundamentos, aos quais se associa o alicerce da Palavra de Deus, por meio da leitura orante e popular da Bíblia, as CEBs fazem a ligação da fé com a vida em todas as suas dimensões, suscitando nova forma de viver, transmitir e celebrar a fé cristã no mundo de hoje:
A inserção nas lutas populares pela libertação tem sido – e é – o início de um novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé para muitos cristãos da América Latina. Provenham eles das próprias camadas populares ou de outros setores sociais, em ambos os casos observa-se – embora com rupturas e por caminhos diferentes – uma consciente e clara identificação com os interesses e combates dos oprimidos do continente. Esse é o fato maior da comunidade cristã da América Latina nos últimos anos. Esse fato tem sido e continua sendo a matriz do esforço de esclarecimento teológico que levou à teologia da libertação (GUTIÉRREZ, 1981, p. 245).
1.1. Ligação fé-economia
Sabemos que sem trabalho não há vida. Sem trabalho, não podemos celebrar a Eucaristia, pois sem pão e vinho não há liturgia. Cada sociedade produz seus meios de subsistência e se reproduz materialmente, tanto na dimensão biológica como social. Nesse sentido, o trabalho está na base da produção e reprodução da vida. Ele é a chave essencial de toda questão social (João Paulo II, Laborem Exercens, n. 3 – sobre o trabalho humano; cf. Laudato Si’, n. 128; Fratelli Tutti, n. 162). O capitalismo, em sua fase neoliberal (Fratelli Tutti, n. 168), está destruindo a centralidade do trabalho e gerando uma multidão de excluídos, que são impedidos de ter suas necessidades básicas satisfeitas. Estamos diante de grande paradoxo: quanto maior o desenvolvimento tecnológico, maior o número de excluídos. A teologia, por ser fiel às raízes fundantes da fé cristã, não pode se calar diante desse fato maior da exclusão (ASSMANN, 1994, p. 129; cf. também Documento de Aparecida, n. 61.65). Calar significaria aceitar uma sociedade onde não caibam todos e todas. Retomando a tradição bíblica, devemos relembrar que quem tira os meios de vida acaba matando o próximo (Eclo 34,22). Por isso, a teologia não deve se calar diante do processo de exclusão, mas, profeticamente, denunciar a idolatria do mercado e anunciar que a vida, antes de ser agradável, tem de ser possível: “A satisfação das necessidades básicas torna a vida possível; a satisfação dos desejos a torna agradável. Mas para poder ser agradável, antes tem de ser possível” (HINKELAMMERT, 1984, p. 241).
1.2. Ligação fé-política
Sabemos que a vida é fruto de decisões. Decisão de nossos pais, sobretudo de nossa mãe. Contudo, além dessa decisão em nível pessoal, somos fruto das decisões sociopolíticas. Quantos morrem antes de atingir a idade adulta! “Morrem antes do tempo”, na expressão retomada por Gustavo Gutiérrez das denúncias de morte presentes no início da conquista na América Latina e Caribe (GUTIÉRREZ, 1981, p. 110ss). Assim se expressa Bartolomé de las Casas, para demonstrar que o projeto político da conquista era injusto e desumano: “[…] e quando os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses bárbaros, viram-se tratados pior que animais e como se fossem menos ainda que o excremento das ruas; e assim morreram… tantos milhões de pessoas” (LAS CASAS, 1985, p. 30). Essa realidade de morte continua presente no Brasil e nos países da América Latina e Caribe, sem falar nos países do continente africano e asiático e, também, nos pobres que vivem nos países ricos! Pobreza e exclusão significam, em última instância, morte! Na verdade, falar do relacionamento fé-política implica entendermos que a vida é fruto de decisões políticas que podem viabilizá-la ou não. Dessa forma, a falta de alimentos e de moradia, o não atendimento das necessidades mínimas de educação e saúde, a exploração no trabalho e, hoje, o desemprego estrutural, além do desrespeito à cidadania, à liberdade de expressão no campo político, cultural e religioso, configuram uma realidade de morte (GUTIÉRREZ, 1991, p. 304).
A ação política dos cristãos e cristãs deve se pautar pela opção pelos pobres, pois o essencial é salvar a pessoa humana, especialmente a que está sendo excluída, pois Deus clama por meio dos excluídos: “Descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (Mt 25,31-46) é algo que desafia todos os cristãos a uma profunda conversão pessoal e eclesial” (Santo Domingo, n. 178; cf. Documento de Puebla, n. 31-39). A opção pelos pobres é, em última instância, uma opção teológica. É isso que nos afirma G. Gutiérrez:
O motivo último do compromisso com os pobres e oprimidos não está na análise social que utilizamos, em nossa compaixão ou na experiência direta que possamos ter com a pobreza. Todas essas razões são válidas e desempenham um papel importante no nosso compromisso, porém, como cristãos, este se embasa fundamentalmente no Deus de nossa fé. É uma opção teocêntrica e profética que lança suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é exigida por ela (GUTIÉRREZ, 1991, p. 309-310).
O pobre e o excluído são preferidos não por serem moral ou religiosamente melhores, mas por causa da desumanidade de sua situação!
A opção política dos cristãos e cristãs deve decorrer dessa opção teológica. Os cristãos são chamados a transformar essa realidade injusta e, alicerçados na gratuidade de Deus, fazer que essa opção teológica se torne radicalmente política, ao preservar o humano que está sendo destruído na pessoa dos pobres e excluídos.
1.3. Ligação fé-culturas
A cultura é o lugar da identidade. É o lugar onde se faz a experiência de Deus. Do ponto de vista antropológico, não existem culturas superiores ou inferiores. Existem culturas diferentes. Portanto, com relação à fé, as culturas todas são merecedoras de respeito. Todas buscam defender a vida. Na verdade, são como que um segundo meio ambiente, construído pelo ser humano e em contínua construção para poder realizar projetos históricos de vida. Nesse sentido, nenhuma cultura é normativa para a outra (SUESS, 1994, p. 84). Pode haver intercâmbio cultural, mas não pode haver a substituição de uma cultura por outra. Isso seria, na verdade, a negação do outro. Em termos teológicos, seria a negação da encarnação, a negação da epifania de Deus no diferente. Hoje, o fenômeno da globalização da economia, ao homogeneizar o mercado, busca também homogeneizar as culturas. Certamente estamos diante de mais uma ideologia legitimadora da expansão do capitalismo internacional, em sua nova forma neoliberal. Diante dessa avalanche neoliberal, é importante ressaltar a importância das culturas para a fé e, sobretudo, estar atentos para a evangelização das culturas e a inculturação do Evangelho nas culturas.
Como afirma o papa Francisco, “o ser humano está sempre culturalmente situado: natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas. A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (Evangelii Gaudium – EG –, n. 115). Essa afirmação nos faz compreender que
quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural, mas “permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à Tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar”. Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime sua genuína catolicidade e mostra “a beleza deste rosto pluriforme” (EG 115).
Neste sentido, compreendemos também que
não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural (EG 117).
1.4. Ligação fé-ecologia integral. A defesa da natureza: tudo está interligado
As CEBs estão assimilando, vivenciando e assumindo o respeito à natureza, mediante sua participação nas lutas ecológicas, como um dos frutos da própria opção pelos pobres, pois toda e qualquer agressão à natureza – “nossa irmã mãe terra” – repercute em primeiro lugar na vida dos pobres, especialmente mulheres, camponeses e indígenas. A crise social e a crise ambiental são conexas:
É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e simultaneamente, cuidar da natureza (Laudato Si’ – LS –, n. 139).
Por isso, como afirma o papa Francisco, “hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (LS 49).
2. Características (notas) da Igreja dos pobres
Queremos terminar esta reflexão com a contribuição do caminho feito pelas comunidades eclesiais de base no continente latino-americano e caribenho, ao explicitarem, com base em sua prática eclesial, as cinco características (notas) que as acompanham em seu caminhar nestas últimas décadas e que mostram serem as CEBs “uma experiência de Igreja sinodal” reconhecida pela Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe.[1]
2.1. O seguimento de Jesus de Nazaré e o projeto do Reino de Deus
Seguem Jesus de Nazaré, aquele que, “sendo de condição divina, se abaixou e se fez escravo” (Fl 2,7) e, vivendo sua condição humana na realidade pobre da Galileia, realizou sua missão, sempre em saída (Mc 1,10.38; 13,1). O centro da missão de Jesus Cristo está no anúncio do Reino de Deus. Jesus indica que o Reino está no meio de nós e caminha até a plenitude. Com esse Jesus, que experimentou a perseguição, conheceu a dor e o sofrimento e, morrendo, abriu, pela sua ressurreição, novo horizonte de vida, as CEBs querem continuar o projeto do Reino de Deus.
2.2. Centralidade da Palavra de Deus com a força do Espírito
As CEBs sentem-se impulsadas pelo Espírito de Deus, a quem Jesus chamava Abba e com quem se relacionou como Filho amado. Nessa experiência de proximidade, sentem-se convocadas para escutar e acolher a Deus na vida, nos acontecimentos do dia a dia e do mundo. Elas reconhecem os sinais dos tempos, que o Espírito lhes segue indicando, para continuar a missão. É com base nessa dinâmica que as CEBs assumem os textos da Bíblia, buscando neles luz e força para reconhecer a vontade de Deus, o caminho que têm de seguir e as ações que devem implementar. A Sagrada Escritura, Palavra de Deus, é caminho em que pode se reafirmar hoje a esperança de um mundo onde mulheres e homens, jovens e crianças vivam com dignidade no amor.
2.3. Espiritualidade profética e libertadora
As CEBs expressam sua fé por meio do anúncio e da denúncia profética, rompendo com as correntes injustas e assumindo a dimensão libertadora. Sua espiritualidade está encarnada nas realidades cotidianas, onde experimentam a presença de Deus na própria vida. Essa espiritualidade é vivida no seguimento de Jesus, a exemplo de Maria do Magnificat, e é impulsionada pelo testemunho dos(as) mártires, que são modelo de ação na defesa da vida e dos direitos dos pobres. As CEBs saboreiam e celebram a fé e a vida em todas as suas dimensões – econômica, social, política, cultural e ecológica –, e o fazem de forma festiva, criativa e participativa, cultivando a memória pascal de Jesus.
2.4. Opção pelos pobres
As CEBs vivem sua opção pelos pobres entre eles e com eles, compartilhando as alegrias e dificuldades do dia a dia, na busca de uma sociedade sem desigualdade, injustiça e opressão. Os pobres conhecem o sofrimento, mas sabem que Deus não os abandona nunca. A opção pelos pobres é teológica, cristológica, pneumatológica e eclesiológica. Como diz o papa Francisco:
A opção pelos pobres é uma categoria teológica antes que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus lhes outorga “sua primeira misericórdia”. Essa preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos, chamados a ter “os mesmos sentimentos de Jesus Cristo” (Fl 2,5) (EG 198).
As CEBs reconhecem a força histórica dos pobres e, a exemplo de Jesus, assumem suas causas, vendo neles os protagonistas das transformações estruturais da sociedade e apontando para um projeto que garante a vida plena, em harmonia com a mãe Terra.
2.5. Compromisso com as transformações estruturais da sociedade
As CEBs:
- Buscam responder aos sinais dos tempos, ao denunciar a injustiça institucionalizada e o pecado social que mata a vida por meio de uma economia de exclusão, da idolatria do dinheiro que domina em vez de servir, gerando violência contra os pobres (EG 53-60).
- Assumem que a luta social e ecológica é uma única luta, porque estão convencidas de que “outro mundo é possível, urgente e necessário”. Isso implica tríplice mudança: pessoal, coletiva e estrutural. Não é possível, como diz o papa Francisco, haver famílias sem teto, sem trabalho e sem terra.
- Participam de projetos alternativos, sustentáveis e equitativos e os reforçam, apontando para novo modo de produção e consumo socioambiental.
- Identificam-se com a proposta do bem viver, do bem conviver, que vem dos povos originários, assumindo-a e indicando valores e estilo de vida contrapostos ao atual sistema.
- Procuram participar das lutas dos movimentos sociopopulares e políticos que assumem o compromisso com a transformação estrutural.
Esse modo de ser e viver a Igreja e anunciar uma sociedade alternativa é um processo inacabado, aberto ao Espírito, até que cheguem os novos céus e a nova terra (Ap 21).
Referências bibliográficas
ASSMANN, Hugo. Crítica à lógica da exclusão. São Paulo: Paulus, 1994.
CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio: conclusões de Medellín. Petrópolis: Vozes, 1969.
CELAM. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus: Paulinas; Brasília, DF: Ed. CNBB, 2007.
CNBB. Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil. 6. ed. São Paulo: Paulinas, 1982. (Documentos da CNBB, 25).
FRANCISCO. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013.
FRANCISCO. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus: Loyola, 2015.
GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Pobres y opción fundamental. In: ELLACURÍA, Ignacio; SOBRINO, Jon (ed.). Mysterium Liberationis: conceptos fundamentales de la teología de la liberación. San Salvador: UCA, 1991. t. 1.
HINKELAMMERT, Franz. Crítica a la razón utópica. San José de Costa Rica: DEI,1984.
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens: Carta Encíclica sobre o trabalho humano. São Paulo: Loyola, 1981.
LAS CASAS, Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das Índias: o paraíso destruído. 3. ed. Porto Alegre: LPM, 1985.
SUESS, Paulo. O paradigma da inculturação: em defesa dos povos indígenas. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, n. 7, p. 84, abr./jun. 1994.
[1] Cf. o texto integral da Articulação Continental das CEBs: http://paroquiasaogeraldo.com.br/noticia/articulacao-continental-latina-americana-e-caribenha-aponta-aspectos-sobre-identidade-das-comunidades-eclesiais-de-base/. Acesso em: 2 fev. 2023.
Pe. Benedito Ferraro*
*é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e presidente do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular. Tem experiência na área de teologia, com ênfase em teologia sistemática. É assessor continental das comunidades eclesiais de base e membro da Ampliada Nacional das CEBs. E-mail: [email protected]