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Publicado em novembro-dezembro de 2024 - ano 65 - número 360 - pp. 18-27

Da Lumen Gentium à sinodalidade reconstruir a Igreja povo de Deus, construindo uma Igreja guardiã dos povos e da Casa Comum

Por Eduardo Brasileiro*

Dedico este artigo aos padres da Igreja que apresentaram o Vaticano II com todo amor, dedicação e compromisso a nós, cristãos leigos e leigas da zona leste de São Paulo:
Pe. Paulo Sérgio Bezerra,
Pe. Manoel José de Godoy,
Pe. Dimas Martins Carvalho, Pe. Devair Carlos Poletto,
Pe. Ticão (in memoriam) e
Pe. Strabelli (in memoriam)

 

Entre a constituição Lumen Gentium (LG) da Igreja e o chamado à sinodalidade, feito pelo pontificado de Francisco, existe uma estrada pela qual caminha o povo de Deus. Neste artigo nos propomos discutir o que reconhecemos como pilares dessa constituição, bem como os impactos e reações que ela gerou. A atualização desse documento, sobretudo à luz da sinodalidade, aponta para a urgente renovação do papel do laicato, nas dimensões de formação, articulação e incidência das comunidades eclesiais, e para o enfrentamento das grandes ameaças do clericalismo e de estruturas já envelhecidas. Assim, a LG sinaliza uma eclesiologia que contribui, como ponto de partida, para desenvolver na sinodalidade novo aggiornamento e encarnação junto às realidades vividas pelo povo, sobretudo na defesa dos povos e da Casa Comum.

 

“A verdade é filha do tempo, e não da autoridade.” (Galileu Galilei)

Introdução

Sessenta anos depois, os ecos do Vaticano II não param de ressoar: por um lado, pela difícil e estimulante concretização desse novo jeito de ser Igreja; por outro, em virtude dos assombros, cada vez mais organizados, de negação ao que fora proposto por esse Concílio. Para mim, como para a maioria dos católicos nascidos após o Concílio Vaticano II, dois horizontes se apresentam: o primeiro é o risco iminente do não resgate de sua memória, colocando o tempo presente diante de um abismo; o segundo é a oportunidade que o papa Francisco oferece, por meio do Sínodo sobre a Sinodalidade, para retomar o espírito do Vaticano II e nos impulsionar rumo a um novo aggiornamento e encarnação.

O papa São Paulo VI, meses antes de assumir o pontificado, sucedendo o papa São João XXIII, afirmava que o Concílio deveria se ocupar de um único problema – a Igreja, sua essência e seu caminho a seguir –, porque ele, como os demais padres conciliares, sentia o ímpeto de atualizar a revelação de Deus de acordo com os novos desafios da modernidade. O Vaticano II não foi, como tentam às vezes apregoar, um concílio apenas de caráter pastoral ou, pior, em contradição com a Tradição da Igreja. Foi, em verdade, um concílio sobre a Igreja na sua totalidade, com propostas que movimentaram as placas tectônicas dessa instituição milenar.  A história se faz com coragem e compromisso, e muito do que vivemos cotidianamente em nossas comunidades de fé não necessariamente foi tão natural sessenta anos atrás. Ontem e hoje, uma das capacidades mais bonitas do cristão é a leitura do tempo histórico e o compromisso que assumimos com a realidade em que vivemos.

O Concílio buscou se aproximar das fontes bíblicas e patrísticas e se empenhou em se distanciar das distorções histórico-institucionais da Igreja do segundo milênio. Dessa forma, introduziu uma transformação na abordagem da Igreja, priorizando seu despojamento para ressaltar, de forma mais proeminente, o mistério de Deus. Entre as inúmeras produções que se debruçaram sobre o Concílio, é comum a percepção de que ele foi tomado por um movimento quenótico-pascal, em referência à passagem de Fl 2,6-11, o que envolve uma dinâmica de descida seguida de exaltação. A dinâmica do Concílio foi, sobretudo, a de construir maior acesso do povo ao mistério de Deus, e esse tema permeia todos os documentos conciliares, encontrando expressão particular na Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG).

Essa conhecida constituição sobre a Igreja é o documento-síntese do Vaticano II, sua espinha dorsal, representando, no âmbito da eclesiologia, efetiva revolução. Composta de oito capítulos, a LG aprofunda um caminho inovador para a Igreja até aquele momento. No primeiro capítulo, apresenta o “mistério da Igreja”, retratando-a como a expressão do Reino e a presença do povo unido à Trindade.

O segundo capítulo aborda o desenvolvimento histórico da Igreja, destacando-a como um povo uno e universal, formado por todos os que creem, convocados à missão de evangelização. Os capítulos seguintes descrevem a estrutura da Igreja, destacando a igualdade fundamental de todos os batizados na missão e a vocação dos cristãos leigos de buscar o Reino de Deus no mundo. Valoriza-se cada vez mais a participação e a formação dos cristãos leigos na vida da Igreja.

1. Caminhada eclesial latino-americana: memória, compromisso e verdade

A Igreja é um corpo místico. Essa é a eclesiologia que a LG impulsionou e provocou em todos os continentes. Especificamente para nós, latino-americanos, tiveram protagonismo nesse impulso as Conferências Episcopais Latino-americanas e do Caribe, ao tratarem dos aspectos a serem desenvolvidos pela Igreja em cada país com base em conceitos que se tornaram “práxis”: “opção pelos pobres” e “libertação” (Medellín, 1968), “participação” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana (Aparecida, 2007).

A LG é um grande documento, e seu texto foi fruto de cerca de quatro mil emendas, sendo promulgada em 21 de novembro de 1964, com 2.151 votos a favor e apenas 5 contra. Ela chegou à minha vida em razão do compromisso com um brado de resistência e esperança na zona leste de São Paulo. Essa região foi também soterrada pelo freio puxado em muitas dioceses e arquidioceses do Brasil, no período entre 1990-2010, que buscavam recrudescer as atualizações do Concílio. A resistência de padres, religiosas/os e leigas/os de origem da região episcopal São Miguel, no tempo de dom Paulo Evaristo Arns e dom Angélico Sândalo Bernardino, fez nascer um coletivo de paróquias chamado Igreja Povo de Deus em Movimento (IPDM), comprometido com a formação, a articulação e a incidência dessas comunidades, embrenhadas em uma das regiões mais desiguais do Brasil.

Esse coletivo tinha como objetivo desenvolver a eclesiologia da LG, tema já tratado na Vida Pastoral.[1] Foi em um dos mais de vinte encontros formativos realizados pelo IPDM, de novembro de 2011 até meados da pandemia da Covid-19, que conheci o frei Carlos Josaphat, op, que havia sido assessor do Pe. Chenu durante o Concílio e tinha profundo conhecimento sobre a LG. Ele afirmava que a Igreja, com o Concílio, apostou no amor universal, quando fez a passagem do poder/hierarquia, que promulga dogmas e se defende de heresias e adversários, para uma Igreja reconciliadora, acolhedora e cuidadora.

São as questões sobre a natureza e a missão da Igreja que permeiam toda a produção da LG:  “A Igreja é expressão da graça de Deus na qual seus membros são convidados, a exemplo do Cristo, a servir uns aos outros” (LG 13) – portanto, um lugar de comunhão de caridade. A expressão povo de Deus (LG, cap. II), abundantemente citada, devolve uma concretude de Igreja participativa, de diálogo e de serviço, perdida pela cristandade. Ademais, na Igreja “[…] reina, contudo, entre todos verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum a todos os fiéis na edificação do corpo de Cristo” (LG 32) – muito embora a LG pontue os diferentes serviços e o Concílio dedique um documento para desenvolver o apostolado dos leigos (Apostolicam Actuositatem).

O reconhecimento dos cristãos leigos como sujeitos, e não rebanho, é a característica da Igreja povo de Deus. Este é o sujeito da missão em que, na comunidade, se constrói “fé, esperança e caridade”. Emerge, assim, desse sujeito – que não é individual, mas coletivo, porque é fruto da comunidade – o “sacerdócio comum dos fiéis” (LG 10), com fundamento no batismo. O capítulo IV da LG é dedicado à fundamentação dos cristãos leigos, sobretudo com a identificação de que o cristão leigo é também Igreja, sendo esta não apenas a hierarquia criada com o sacramento da ordem e suas nomeações – compreensão que, sessenta anos depois do Concílio, ainda persiste, na prática, em muitos níveis episcopais e clericais. O contraste reside justamente em haver Igrejas particulares em que o bispo e/ou o padre se faz distinto dos fiéis.

Em termos históricos, a LG mostra claramente que a Igreja, até aquele momento, não dava conta de sua missão universal e o que realmente a impedia era a coragem de assumir uma imagem e uma prática de povo de Deus, formado por todos aqueles que detêm a cidadania batismal. A Igreja, portanto, com base em todo o conjunto do Concílio, reconhece-se como sacramento, mostrando a realidade humana de Cristo encarnado na história (LG 8) e já não se compreendendo como perfeita, e sim como realidade complexa, visível e invisível, (LG 8) a apontar caminhos: “a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo” (LG 8).

Para frei Josaphat, op, a grande contribuição do Concílio foi propor uma Igreja sacramento da reconciliação e em diálogo crítico, mas afetuoso, com o mundo (Josaphat, 2015). Foi preciso tempo, e sobretudo metodologia, para que a LG fosse compreendida e sua vocação eclesial, apontada no Concílio, fosse vivida. Para isso, foi necessário garantir um substrato metodológico capaz de dar consistência ao conjunto inteiro. O impulsionador da Lumen Gentium e dos demais documentos conciliares, na realidade latino-americana, foi o método ver-julgar-agir. Por esse método, abandonou-se a leitura do documento na perspectiva de premissas teológicas a priori e simplesmente indutivas, válida para qualquer tempo e lugar, mas pouco aderente à realidade atual da América Latina e Caribe, e se abraçou um compromisso de atualização da experiência de ser Igreja em nosso tempo e lugar, o que não foi isento de confrontos. Os confrontos para consolidar novos processos fazem parte da história. Passa-se do confronto ao consenso, do consenso ao compromisso; no entanto, quando uma estrutura milenar como a Igreja se movimenta, todos sentem e muitos reagem.

Foi o que aconteceu com a investida de um “inverno rigoroso”, comandada pela Cúria romana e pelas Igrejas particulares na fase posterior ao Concílio, sobretudo com a volta da “grande disciplina”, ocorrida no papado de São João Paulo II. A cada década, os documentos como um todo avançaram pouco na cultura eclesial, por conta das estruturas enrijecidas e da cultura fortemente patriarcal e hierárquica que predomina no seio eclesial. Resistentemente, a graça de Deus sempre esteve presente no carisma comunitário da Igreja, e sua mística, ou seja, sua manifestação, está na essência da simplicidade, o que torna importante lembrar e reverberar experiências de Igreja que, vividas no âmbito da “comunidade de comunidades” (Fernandes, 2023), são verdadeiro oxigênio eclesiológico. São muitas as experiências no Brasil que sustentam uma adesão local e às vezes arqui/diocesana, mas o clericalismo (da parte de bispos, padres e religiosos) afeta a plena realização dos desígnios da LG, por mais que tenhamos tido, à frente da CNBB, lideranças bastante relevantes e construtoras do espírito do Vaticano II (dom Helder, cardeal Aloísio Lorscheider, dom Ivo
Lorscheiter, dom Luciano Mendes de Almeida, dom Celso Queiroz, entre muitos outros).

A eclesiologia proposta pela LG foi profundamente ofuscada pelo clericalismo ultramontano. Nas últimas décadas, o que se viu, cada vez mais, foram as vestes litúrgicas e as liturgias como um todo começarem a se avultar nos presbitérios e nas comunidades, com discursos mais voltados aos costumes (promovendo estilos de vida conservadores e ressentidos com a realidade, por entenderem que nela não há lugar para os valores cristãos). Há um desafio claro ao cristianismo que é refletir, à luz da Palavra de Deus e do magistério da Igreja, sobre a grande aceleração do tempo causada pela globalização financeira e cultural, o avanço da secularização da sociedade e a emergência climática. Não obstante, o clero nascido após o Concílio opta, em sua maioria, por uma vida menos engajada nas causas do povo de Deus, mais adaptada aos caprichos do capitalismo neoliberal, compreendendo o sacerdócio como profissão, e não tanto como missão-causa, e abstraindo os temas emergentes apontados acima. A LG aponta que o sujeito da missão é o povo de Deus e situa o clero nesse lugar; contudo, os movimentos, cada vez mais crescentes, de espetacularização litúrgica e de divinização dos padres e bispos buscaram enfraquecer a pedagogia que desenvolve a consciência de ser povo de Deus (educação popular) mediante a domesticação dos cristãos leigos e leigas.

A tradição das comunidades eclesiais de base (CEBs), das pastorais, dos organismos do povo de Deus e de outras experiências eclesiais nascidas com o Concílio e com as Conferências Episcopais, aliando os documentos e as perspectivas de missionariedade dos cristãos, não menosprezou o papel do cristão leigo e da missão da Igreja nos lugares de fronteira. Enquanto alguns reivindicam a sacralidade de um Jesus distante, na Tradição da Igreja, retomada pelo Vaticano II na LG, a centralidade da missão está em anunciar que Deus é amor. O Concílio inova em tratar da operacionalidade desse anúncio, buscando respostas para as seguintes perguntas: O que é o mundo de hoje? O que é um protestante ou fiel de outra religião? O que é a política? O Vaticano II procurou ajudar a Igreja a ver todas as realidades à luz do amor universal de Deus, dos efeitos e sinais de Deus na história, por meio do método de escuta da realidade, da acolhida e da pluralidade.

2. A sinodalidade como caminho de retomada da Lumen Gentium

As experiências ricamente desenvolvidas na Igreja latino-americana encontraram no papa Francisco uma “primavera eclesial” (Aquino Júnior; Souza, 2022), e a sensibilidade desse pontificado apontou a novidade que culmina no tripé: 1) “Igreja em saída” (EG 20-24), com a busca de uma ação mais corajosa dos/as leigos/as, religiosos/as
e clero, e de maiores compromissos da Igreja na atualidade, sobretudo da experiência como povo de Deus; 2) “Cultura do encontro” (Francisco, 2016), que consiste no esforço da Igreja de encontrar-se com a humanidade em suas mais diversas realidades e garantir a cidadania eclesial aos descartados, como as pessoas LGBTQIA+, as mulheres, as juventudes, as periferias (há uma Igreja anticonciliar que busca dizer até hoje como os jovens e as mulheres devem ser e não enxerga a existência das periferias e das pessoas LGBTQIA+); 3) “Sinodalidade”, desenvolvida pelo papa Francisco como resposta à grande crise na Igreja, que tem andado timidamente mesmo com as reformas na Cúria romana, em decorrência das resistências ao seu pontificado por parte de grande parcela do clero no mundo. Francisco aliou a esse tripé duas ações estratégicas de agitação da ideia-força sinodalidade: a experiência do Sínodo para a Amazônia (2018) e a Assembleia Eclesial Latino-americana (2021). Os dois eventos, ocorridos ambos no contexto da América Latina, apontaram para uma Igreja católica que ainda não é o que deve ser: sinodal.

O Concílio Vaticano II indicou efetivo exercício de sinodalidade, com base na colegialidade episcopal, como uma forma de colaboração com o papa, promovendo a instituição de sínodos para subsidiar e enriquecer o exercício do ministério papal. Essa colaboração se manifestou, através de décadas, por meio de reflexões, debates teológicos sobre diversos temas e um aprofundamento das realidades emergentes que influenciam a vida dos fiéis católicos.

A sinodalidade agora provoca um passo a mais, em que a colegialidade episcopal seja atravessada pela comunhão com o povo de Deus, e os bispos e padres, cada vez mais, comunguem de espaços comuns com os cristãos leigos/as, tendo uma opção eclesiológica clara. Ou seja, a diferença entre a colegialidade episcopal e a sinodalidade eclesial é justamente que a primeira tem operado em cada vez maior tendência à autoconservação, enquanto a outra provoca o encontro de iguais, entre cristãos leigos e bispos, no amadurecimento dos desafios socioeclesiais. Para pensar a colegialidade episcopal e as Conferências Nacionais, veja-se, por exemplo, no âmbito social, que a CNBB, nos anos 1960 a 1980, se pronunciava e era escutada, ao passo que atualmente ela silencia ou se omite diante de muitas situações de sofrimento do povo. No âmbito eclesial, vê-se que seus pronunciamentos pastorais são cada vez menos lidos, seus debates e agendas menos considerados e a autoridade de bispos e padres é questionada por instâncias de ultraconservadores organizados. As Conferências Episcopais realmente são instituições jovens no contexto da Igreja, mas cabe a elas serem atravessadas por novas composições, incluindo o conjunto do povo de Deus.

O encontro do pontificado de Francisco com a Amazônia carrega caminhos possíveis para a crise institucional do episcopado e dos entraves diante do conservadorismo. O Sínodo para a Amazônia, iniciado pelo próprio Francisco com os povos originários, em Porto Maldonado, no Peru, constituiu um movimento de escuta comprometedor. Desenvolvido pela Repam (Rede Eclesial Pan-amazônica), recém-criada na época, a escuta deu voz a um apelo por novas experiências eclesiais da Igreja diante do extrativismo da floresta, do garimpo de mineradoras, do narcotráfico, dos megaprojetos financeiros de lucro e exploração e, sobretudo, de uma evangelização descontextualizada. O papa Francisco, inadvertidamente, provocou a Igreja local e regional a pensar sobre si mesma e trazer os bispos do mundo inteiro a pensar com ela: comunhão, participação e missão. Não era Roma falando ao mundo, mas a Igreja local contribuindo com Roma e falando, assim, ao mundo. Todo cristão, adicionado à comunidade eclesial em virtude do batismo, torna-se solidariamente responsável, com os demais batizados, por toda a Igreja (LG 12; 17): “Se assim não fosse, a Igreja não seria uma Igreja de Igrejas, mas uma mera casta de bispos” (Brighenti, 2020).

Francisco provoca a retomada de uma Igreja povo de Deus ao assumir o desafio de uma Igreja “acidentada, ferida e enlameada” (EG 49) na complexa e urgente realidade amazônica; Igreja atenta às dores e sofrimentos do povo em um momento de colapso econômico, político e ambiental, em meio a propostas distintas e controversas de transição energética e ao debate sobre os recursos da Amazônia. A Igreja reconciliadora, acolhedora e cuidadora, anunciada no Vaticano II, precisa reconhecer seu papel, ao descer à realidade dos oprimidos, decisivamente mais uma vez, e povoar suas reflexões com as vozes das periferias, ter o tom de anúncio e denúncia em favor da vida dos povos e do planeta, nutrida pela encíclica Laudato Si’, que a convida a ser uma Igreja guardiã dos povos e da Casa Comum.

O papa Francisco, forçando a Igreja à vivência sinodal, tem mobilizado encontros mundiais com movimentos populares; de outra parte, não se tem visto nenhuma iniciativa semelhante por parte do conjunto do episcopado, nem mesmo o confronto de questões centrais, como a privatização dos bens comuns (água e solo) e os assuntos de natureza econômica em tempos neoliberais. É um tempo de mudança profunda, em que a Igreja deverá ser, cada vez menos, a autocentrada dona da palavra e, cada vez mais, uma colaboradora no fomento de espaços de diálogo, na transformação de situações de injustiça e na promoção de ampla agitação nas estruturas diocesanas e paroquiais, em busca da sinodalidade.

Uma dimensão sinodal que remonta à LG é a comunitarização da Igreja. A Igreja altamente curial e paroquial necessita do exercício comunitário, e isso passa por uma recentralização das comunidades em torno de prioridades como defender e incluir os pobres e miseráveis, desenvolver uma ministerialidade viva, construtora da cidadania eclesial, reconhecer nova centralidade nas relações, baseada no chamado dos cristãos para serem guardiões da Casa Comum, e, finalmente, ter como foco o crescimento da dimensão amorosa de Jesus no seio da comunidade (comunidades agapicocêntricas) (Guimarães, 2022).

Esses desafios são trilhas para o caminho eclesial de uma Igreja sinodal, desde o reconhecimento e aproximação do mundo natural  (LS 2015) até a opção pelo serviço da fraternidade (FT 2020). Perceber-se como uma entre as outras – portanto, irmã – levá-la-á a fazer comunhão mais profunda com os desafios ecológicos e socioeconômicos com que nos deparamos no mundo.

3. Caminhos para uma Igreja povo de Deus, sinodal e periférica

Finalmente, as luzes da LG confirmam a vocação sinodal da Igreja, em mais um caminho em que encontramos frestas para ver a cidadania batismal do povo de Deus ter lugar, de modo que a renovação pretendida pelo pontificado de Francisco possa frear o ciclo de conforto da Igreja e provoque uma reforma profunda no seu jeito de ser e estar. Isso passará pelo confronto com estruturas ultraconservadoras que residem em seu interior e garantem a manutenção da pompa curial, de uma Igreja cada vez mais branca, cheia de privilegiados e descomprometida com os pobres e com a mãe terra.

O canto das comunidades que diz “Caminheiro, você sabe que não existe caminho; passo a passo, pouco a pouco o caminho se faz” é uma lição constante para o povo de Deus que caminha nas estradas de Jesus. A LG é expressão institucional plena do que a Igreja deve ser, viver e crer, como também sua sucessiva atualização diante do “espírito do tempo” que convida a constante aggiornamento e encarnação nas realidades. A sinodalidade, de fato, não será a resposta para todas as grandes aflições do povo de Deus neste tempo da Igreja católica no mundo; que ela seja, contudo, o espaço que conseguir ser de concretização da fraternidade universal (com os pobres e a terra), ansiada por todos os que constroem comunidades de fé.

Dessa maneira, o clamor em vista da memória, do compromisso e da verdade sobre todos os frutos produzidos no Concílio Vaticano II, incluindo as resistências ao freio conservador das décadas seguintes a esse evento, será concretizado pelo desenvolvimento de novas arquiteturas eclesiais que movimentem e provoquem o protagonismo das comunidades. Terá lugar, assim, uma Igreja povo de Deus alicerçada em uma missionariedade que não será exercida para a autopreservação, e sim para o comprometimento com as causas de promoção do bem comum e de cuidado da Casa Comum.

Referências bibliográficas

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COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A Sinodalidade na Vida e na Missão da Igreja. 2018. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_po.html. Acesso em: 10 jun. 2024.

FERNANDES, R. M. Paróquia, “comunidade de comunidades”, na sociedade em transformação: um estudo no contexto das reflexões eclesiológicas da CNBB. São Paulo: Paulus, 2023.

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GUIMARÃES, J. G. M. Da assembleia eclesial ao Sínodo da Sinodalidade. In: AQUINO JÚNIOR, F. de; MORI, G. L. de. Igreja em saída sinodal para as periferias: reflexões sobre a I Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2022.

JOSAPHAT, C. Vaticano II: a Igreja aposta no amor universal. São Paulo: Paulinas, 2015.

[1]  BEZERRA, P. S. Pastoral em tempo de crise. Vida Pastoral, São Paulo, ano 59, n. 320, p. 9-17, mar./abr. 2018. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/wp-content/uploads/2018/02/VP_320_web_FINAL.pdf. Acesso em: 10 jun. 2024.

Eduardo Brasileiro*

*é doutorando e mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; pesquisador de pastoral nas áreas de economia e ecologia. É ministro da Palavra e do batismo da paróquia Nossa Senhora do Carmo em Itaquera, São Paulo, e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara.