Comunicação na Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social
Por Joaquim Giovani Mol Guimarães
Este artigo é uma apresentação refletida e discutida do que a encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco, diz sobre comunicação e sobre alguns temas correlatos, como informação e mídia, considerando seus antecedentes, largamente debatidos nas sete mensagens dele para o Dia Mundial das Comunicações, as quais perduram desde que assim foi determinado pelo Concílio Vaticano II. O artigo pretende, além de mencionar alguns perigos do mau uso da comunicação, demonstrar sua missão indispensável na construção de novo modo de vida humana e do planeta, mudança que a Fratelli Tutti preconiza.
Introdução: a comunicação do papa Francisco
Para alcançarmos o que o papa Francisco ensina sobre a comunicação em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, é preciso buscar alguns pontos iluminadores que a precedem. Trata-se de uma análise da comunicação por ele praticada, aplicando algumas teorias subjacentes aos processos comunicacionais que ele empreende.
O papa Francisco, ao se comunicar, identifica-se com a comunicação e, por meio dela, expressa-se por palavras e gestos, pelas expressões do rosto e das mãos, pelas pausas silenciosas que antecedem ou concluem uma ideia mais densa ou que precisa chegar ao coração de todos, também dos mais simples. Sua comunicação possui a marca particular que a corrobora como comunicação autêntica: o fato de, visivelmente, transparecer na fala o que é vivido no interior e na vida cotidiana.
Dessa forma, a comunicação cumpre sua tarefa ferramental, instrumental – porque a mensagem chega ao destinatário –, mas sobretudo ganha o status de estratégica, no sentido de que ela, entendida como um processo, cumpre sua nobre missão de revelar a força da palavra, associada à forma da vida vivida.
O comunicador, portanto, nesse caso emblemático, não é um ser espetaculoso, frequentador de camarins, retocado por blush, mecanicamente treinado nos gestos, meticulosamente iluminado desde pontos cuidadosamente escolhidos, para esconder as marcas da idade, as cicatrizes corporais de uma vida de mais de 80 anos. O papa Francisco não faz shows. Ele encarna a mensagem que se personifica em cada ouvinte, o qual passa a ser interlocutor, alguém que exerce missão importante no processo comunicacional.
Tomemos como exemplo o pronunciamento que ele fez, no dia 21 de novembro de 2020, no evento chamado “Economia de Francisco e Clara”, que reuniu o maior número, na história, de jovens economistas, jovens administradores e jovens que desenvolvem experiências alternativas, em busca de outros modos de economia no mundo, atendendo ao que disse o próprio papa: “Não estamos condenados a modelos econômicos que centram seus interesses imediatos na ganância como padrão de medida” (FRANCISCO, 2020a).
Nesse discurso, um pouco maior do que seus quase sempre breves pronunciamentos, o papa Francisco, por meio de um vídeo, assentado numa cadeira atrás de uma mesa (usada como suporte para as páginas do texto), focalizado de frente todo o tempo num cenário completamente límpido, “vivencia” o pronunciamento. Logo depois, nas redes sociais, constata-se grande quantidade de postagens, com frases tomadas do discurso, comentários, reflexões, agradecimentos. A partir dali, o encontro “Economia de Francisco e Clara” deixa de ser um evento e passa a ser um movimento de transformação da economia. A comunicação aconteceu, porque os frutos já começam a aparecer. De novo: o que ele falou é o que ele vem falando, avançando cada vez mais, e é seu testemunho de vida.
1. A comunicação na Fratelli Tutti
1.1. Fratelli tutti faz parte da doutrina social da igreja
A Fratelli Tutti, título cuja tradução seria “Todos irmãos” – como dizia Francisco de Assis aos seus confrades –, é a carta encíclica do papa Francisco, com data de 3 de outubro de 2020, situada na longa, histórica e preciosa esteira dos ensinamentos que constituem a Doutrina Social da Igreja. É nesse mesmo âmbito que se encontra, entre outras, a encíclica Laudato Si’, a qual cumpre a missão de colaborar com o despertar da humanidade para a ecologia integral, incluindo todos os seres do planeta e empenhando-se em salvá-lo da destruição, tal como a verificada no Brasil, especialmente na Amazônia, nas áreas do agronegócio, nos terrenos de monocultura, nos lugares onde há mineração, em regiões de especulação imobiliária.
Acontece que a referida encíclica traz um subtítulo que funciona como um sobrenome importante, definidor e sintetizador de todo o seu conteúdo: “Sobre a fraternidade e a amizade social”. Todos os temas extraídos e derivados da Fratelli Tutti devem passar pelo crivo do trabalho esforçado de todos de gerar fraternidade e amizade social. É o foco que não pode ficar ofuscado.
1.2. Antecedentes das mensagens para o Dia Mundial das Comunicações
O que a Fratelli Tutti nos ensina sobre comunicação faz-nos levantar o cenário das sete mensagens do papa Francisco para o Dia Mundial das Comunicações, uma em cada ano de seu pontificado. O que nessas mensagens foi dito ecoa nas fortes exigências para o campo da comunicação explicitadas na encíclica.
Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2014: “Comunicação a serviço de uma autêntica cultura do encontro”, o papa aponta uma das finalidades mais importantes da comunicação: servir a uma cultura do encontro, com caráter de autenticidade. Consciente da grandeza da mídia de massa, Francisco diz que ela “pode ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros: a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna”. E conclui: “Uma boa comunicação ajuda-nos a estar mais perto e a conhecer-nos melhor entre nós, a sermos mais unidos” (FRANCISCO, 2014).
Isso não quer dizer que o papa tenha uma visão demasiado otimista ou até mesmo ingênua das questões referentes à comunicação. Nessa mesma mensagem, ele cita alguns dos aspectos problemáticos, tais como: a velocidade da informação supera a nossa capacidade de reflexão e discernimento […]. A variedade de opiniões expressas pode ser sentida como riqueza, mas é possível também fechar-se numa esfera de informações que correspondem apenas às nossas expectativas e às nossas ideias, ou mesmo a determinados interesses políticos e econômicos.
Também ensina: “o ambiente da comunicação pode ajudar-nos a crescer ou, pelo contrário, desorientar-nos” (FRANCISCO, 2014). Detendo-se na figura do escriba – considerado um comunicador – que provocou Jesus a contar a parábola do samaritano, Francisco atualiza a pergunta daquela personagem (“E quem é meu próximo?”) da seguinte forma: “Como se manifesta a proximidade no uso dos meios de comunicação e no novo ambiente criado pelas tecnologias digitais?” (FRANCISCO, 2014).
Na mensagem para o Dia das Comunicações de 2015: “Comunicar a família, ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor”, o papa Francisco, no contexto do Sínodo para a Família, ensina que “a família é o primeiro lugar onde aprendemos a comunicar”. E se estende um pouco mais, lembrando que, “quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou-lhe de alegria no seio”, porque comunicar é “um diálogo que se tece com a linguagem do corpo” (FRANCISCO, 2015).
É muito interessante notar como a mensagem relaciona a família com a comunicação religiosa, quando faz referência às nossas próprias experiências de vida: “a maioria de nós aprendeu, em família, a dimensão religiosa da comunicação, que, no cristianismo, é toda impregnada de amor, o amor de Deus que se dá e que nós oferecemos aos outros” (FRANCISCO, 2015). Novamente, toca na dimensão corporal da comunicação: na família, é sobretudo a capacidade de se abraçar, apoiar, acompanhar, decifrar olhares e silêncios, rir e chorar juntos, entre pessoas que não se escolheram e, todavia, são tão importantes umas para as outras… é sobretudo esta capacidade que nos faz compreender o que é verdadeiramente a comunicação, enquanto descoberta e construção de proximidade (FRANCISCO, 2015).
Isso, é claro, sem negar a importância dos meios mais modernos de comunicação, considerados irrenunciáveis para todos, sobretudo para os jovens, e que tanto podem dificultar como ajudar a comunicação em família e entre as famílias. Podem dificultar se subtraem à pessoa a escuta, levando-a ao isolamento de si mesma, ainda que fisicamente presente, e também se inviabilizam o silêncio, parte integrante da comunicação (FRANCISCO, 2015).
A mensagem para o Dia das Comunicações de 2016: “Comunicação e misericórdia, um encontro fecundo”, inspirada pelo sensível e indispensável Ano Santo da Misericórdia, a fim de contrapor-se ao abrutalhado e tosco modo de viver hodierno, marcado por tantas expressões de malquerença no mundo, situou-nos na cena final dos que queriam matar a mulher, pecadora pública, quando foram interrompidos por Jesus, que os colocou no devido lugar ao determinar: “Os que não têm pecado desfiram a primeira pedra”. Ali restaram a mísera e a misericórdia, a mulher e Jesus, nossa miséria humana e o infinito amor misericordioso de Cristo. Extraordinariamente belo.
Naquele ano, o papa revelou seu desejo de que “nosso modo de comunicar e também nosso serviço de pastores na Igreja nunca expressassem o orgulho soberbo do triunfo sobre o inimigo nem humilhassem aqueles que a mentalidade do mundo considera perdedores e descartáveis!” (FRANCISCO, 2016).
Na parte final dessa mensagem, ele explicita algumas das formas de comunicação e, sabiamente, as reconhece, ao mesmo tempo que nos alerta: “os e-mails, sms, redes sociais, chats podem ser formas de comunicação plenamente humanas” (FRANCISCO, 2016), exprimindo o esforço de todos os que fazem comunicação com pretensões humanistas, pois não é a tecnologia que determina se a comunicação é autêntica ou não, mas o coração do homem e a sua capacidade de fazer com o uso dos meios ao seu dispor […]. O ambiente digital é uma praça, um lugar de encontro, onde é possível acariciar ou ferir, realizar uma discussão proveitosa ou um linchamento moral (FRANCISCO, 2016).
Na mensagem para o Dia das Comunicações de 2017: “‘Não tenhas medo, que Eu estou contigo’ (Is 43,5) – comunicar esperança e confiança no nosso tempo”, o papa Francisco ajuda as pessoas a fazer o discernimento entre as notícias boas e as ruins, entre as verdadeiras e as falsas, pondo no centro uma certeza: não podemos temer, porque Ele está conosco. O papa recorre a uma analogia já distante, hoje, de muitos: diz que os antigos na fé comparavam a mente humana à mó do moinho movido a água, o qual não pode parar, mas cujo dono, o moleiro, tem possibilidade de decidir se quer moer trigo ou joio. Assim Francisco revela o desejo de essa mensagem ser uma palavra de encorajamento aos que sempre “moem” informações, como os profissionais da comunicação e os que zelam pelas relações pessoais. Dessas informações moídas pode sair um pão perfumado e bom, em proveito de todos os que se alimentam da sua comunicação (FRANCISCO, 2017).
Mais uma vez, como todos os anos, ele reforça o cuidado a ser tomado no campo da comunicação, dessa vez com a analogia dos óculos, ao afirmar que “para nós, cristãos, os óculos adequados para decifrar a realidade só podem ser os da boa notícia: partir da Boa Notícia por excelência, ou seja, o ‘Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus’ (Mc 1,1). […] A boa notícia é o próprio Jesus” (FRANCISCO, 2017). Por isso são confiáveis as sementes do Reino e a lógica da Páscoa do Senhor, que nos moldam aos poucos e moldam nosso modo de praticar a comunicação.
Na mensagem para o Dia das Comunicações de 2018: “‘A verdade vos tornará livres’ (Jo 8,32) – fake news e jornalismo de paz”, o papa Francisco aborda um dos principais problemas da comunicação – na realidade, um problema de caráter dos seus operadores: as fake news, que não se encerram num jogo de mentiras, mas, por meio delas, atuam fortemente, com interesses de todo tipo, também políticos, interferindo em eleições, na economia, na moral. As chamadas fake news são notícias falsas, bem planejadas, com um objetivo específico, normalmente de grande monta. São uma perversidade, de natureza mimética, que fascina e é tida como plausível, sendo disparada por manipuladores das redes sociais e dos meios de comunicação em grande velocidade e com danos incomensuráveis. Nessa mensagem, o papa Francisco afirma que “nenhum de nós se pode eximir da responsabilidade de contrastar essas falsidades. Não é tarefa fácil”, mas necessária, pois se trata de “desmascarar uma lógica que se poderia definir como a lógica da serpente, […] o mais astuto dos animais (FRANCISCO, 2018).
Finalmente, ele indica o “antídoto mais radical ao vírus da falsidade, que é deixar-se purificar pela verdade”: Jesus, tal qual ele mesmo se apresenta em Jo 14,6: “Eu sou a verdade” (FRANCISCO, 2018). Considera ainda que se equivocam os que buscam combater as notícias falsas só com estratégias, mesmo que bem elaboradas, porque é preciso incluir o antídoto das pessoas, “pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas pelo bem, mostram-se responsáveis no uso da linguagem” (FRANCISCO, 2018).
Depois de indicar o antídoto acima, ele se refere, explicitamente, ao jornalismo; dirige-se aos jornalistas e lhes faz o apelo por um “jornalismo de paz […], que se comprometa na busca das causas reais dos conflitos, para favorecer a compreensão das suas raízes e sua superação através do avivamento dos processos virtuosos” (FRANCISCO, 2018).
Na mensagem para o Dia das Comunicações de 2019: “‘Somos membros uns dos outros’ (Ef 4,25) – das comunidades de redes sociais à comunidade humana”, Francisco desce à base da constituição da Igreja, a comunidade, para investigar a necessidade de transcender comunidades de redes sociais. O cerne dessa reflexão é que o ser humano não é solitário e não foi feito para a solidão nem para encerrar-se em si mesmo. A rede, diz o papa,
é um recurso do nosso tempo: uma fonte de conhecimentos e relações outrora impensáveis. […] Mas é necessário reconhecer que se, por um lado, as redes sociais servem para nos conectarmos melhor, fazendo-nos encontrar e ajudar-nos uns aos outros, por outro, prestam-se também a um uso manipulador dos dados pessoais, visando obter vantagens no plano político e econômico, sem o devido respeito pela pessoa e seus direitos. As estatísticas relativas aos mais jovens revelam que um a cada quatro adolescentes está envolvido em episódios de cyberbulling (FRANCISCO, 2019).
A metáfora da rede remete à comunidade, se pensarmos antropologicamente. Comunidade tem significado teológico-pastoral paradigmático. A comunidade dos cristãos é formada por aqueles que aderiram à pessoa de Jesus Cristo e, sacramentalmente, selaram essa adesão no batismo. Não obstante, “uma comunidade é tanto mais forte quanto mais for coesa e solidária, animada por sentimentos de confiança” (FRANCISCO, 2019). Isso, como numa rede, não se dá automaticamente. “A rede é uma oportunidade para promover o encontro com os outros, mas pode também agravar o nosso autoisolamento, como uma teia de aranha capaz de capturar” (FRANCISCO, 2019). Por isso é necessário trazer à mesa da nossa identidade a ideia de que “somos membros uns dos outros” (Ef 4,25), um corpo cujos membros são irmãos. Essa metáfora bíblica, utilizada pelo papa Francisco, está embasada na vivência da comunhão e da alteridade ao mesmo tempo. A cabeça desse corpo é Jesus Cristo, e não há diferença entre o sangue que corre na Cabeça e o que corre nos membros, que somos nós. “A própria Igreja é uma rede tecida pela Comunhão Eucarística” (FRANCISCO, 2019). Somos membros uns dos outros!
Finalmente, na mensagem para o Dia das Comunicações de 2020: “‘Para que possas contar e fixar na memória’ (Ex 10,2) – a vida faz-se história”, um pouco antes de tornar pública a Fratelli Tutti, o papa Francisco resgata um aspecto inerente à comunicação – a história –, porque o homem é um ente narrador de pequenas e longas histórias. […] Ele não só é o único ser que precisa de vestuário para cobrir a própria vulnerabilidade (Gn 3,21), mas também o único que tem necessidade de narrar-se a si mesmo, ‘revestir-se’ de histórias para guardar a própria vida. Não tecemos apenas roupas, mas também histórias: de fato, servimo-nos da capacidade humana de ‘tecer’, quer para os tecidos, quer para os textos” (FRANCISCO, 2020b).
Ao desenvolver de forma interessante o raciocínio, Francisco não se esquece de dizer que “nem todas as histórias são boas” e que há uma história considerada a “História das histórias”: a própria Sagrada Escritura, em cujo coração está a pessoa de Jesus Cristo. Tal história se expande por ser sempre atual, não meramente uma narrativa passada. É nesse ponto que o papa Francisco diz que a história de Jesus Cristo se renova e também nos renova (FRANCISCO, 2020b).
1.3. Da ilusão à cultura do encontro
A encíclica Fratelli Tutti soma oito capítulos. Destes, a comunicação é abordada em cinco, além de ser mencionada em 16 parágrafos e merecer um dos subtítulos do capítulo I. A comunicação é elemento importante da encíclica.
1º) A comunicação nas sombras de um mundo fechado (números 42-43, 46-47, 49, 52)
No capítulo I, intitulado “As sombras de um mundo fechado”, o papa Francisco trata da comunicação como uma ilusão. Ao fechamento e intolerâncias do mundo correspondem a diminuição das distâncias e até o direito à privacidade. “Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham. Esvai-se o respeito pelo outro (FRANCISCO, 2020b, n. 42).
No parágrafo seguinte, a Fratelli Tutti denuncia o uso da comunicação para alimentar o ódio e também o perigo de criar uma legião de pessoas dependentes, isoladas e esquizofrênicas, por perderem o contato com a realidade como ela é de fato e, ao mesmo tempo, perderem também o desenvolvimento das relações interpessoais, de pessoa a pessoa, sem mediações. É nesse sentido que o papa valoriza os “gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana”. E conclui: “A conexão digital não é suficiente para construir pontes, não é capaz de unir a humanidade” (FRANCISCO, 2020b, n. 43).
O papa Francisco aplica um corretivo claro aos meios de comunicação católica – que precisamos levar a sério – quando admite que até neles “é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia”. Faz então uma pergunta incômoda, que precisa ser respondida: “Agindo assim, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?” (FRANCISCO, 2020b, n. 46). Ele ainda ensina que “a verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade”, para que não haja uma espécie de “seleção” de conteúdos e pessoas, baseada simplesmente nos gostos pessoais. É muito forte quando a Fratelli Tutti, cujo nome é um programa de vida, afirma que “as pessoas ou situações que feriam nossa sensibilidade ou nos causavam aversão hoje são simplesmente eliminadas nas redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola do mundo em que vivemos” (FRANCISCO, 2020b, n. 47).
Atenção, porém, porque a Fratelli Tutti não pretende nivelar a condição de cada realidade e cada pessoa, como se tudo e todos – independentemente do bem ou do mal que praticam – formassem, sem de fato serem, uma unidade. Essa é a única encíclica que esclarece, de forma magistral, sobre o “amor aos inimigos” ensinado por Jesus. É bom que memorizemos esta citação (FRANCISCO, 2020b, n. 241):
Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa dignidade. Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano. Perdoar não significa permitir que continuem a espezinhar a própria dignidade e a do outro, ou deixar que um criminoso continue a fazer mal. Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama. Se um delinquente cometeu um delito contra mim ou contra um ente querido, ninguém me proíbe de exigir justiça e me acautelar para que essa pessoa – ou qualquer outra – não volte a lesar-me nem cause a outros o mesmo dano. Compete-me fazê-lo, e o perdão não só não anula esta necessidade, mas reclama-a.
Nessa mesma perspectiva, a comunicação é alertada gravemente para que não faça desaparecer o silêncio e a escuta por meio de cliques e mensagens rápidas e ansiosas, a fim de que a estrutura básica de uma comunicação humana sábia não seja posta em risco; tampouco se permita a tendência de uniformização do mundo, por trás da qual se revelam interesses de poder, que aproveitam a baixa autoestima das pessoas e colocam os meios de comunicação e redes a serviço dos mais poderosos (FRANCISCO, 2020b, n. 49 e 52).
2º) A comunicação para pensar e gerar um mundo aberto (número 114)
Quando deparamos com o objetivo geral da Fratelli Tutti, bem sintetizado no título do seu capítulo III, “Pensar e gerar um mundo aberto”, encontramos aí a tarefa da comunicação (FRANCISCO, 2020b, n. 114), numa feliz identificação com a tarefa das pessoas revestidas de responsabilidades no campo da educação e da formação: as famílias, como lugar de vivência e transmissão de valores, destacadamente os da solidariedade e do cuidado, pela ajuda mútua, e o da fé; a escola, por meio dos educadores e formadores, cuja delicada tarefa de educar crianças, adolescentes e jovens exige uma visão complexiva, porque deve articular as dimensões moral, espiritual e social da pessoa, numa perspectiva de educação integral.
Nesse ponto sensível, a Fratelli Tutti inclui sabiamente a comunicação, porque a ela são conferidas responsabilidades no campo da educação e da formação na sociedade contemporânea, na qual se difunde, cada vez mais, o acesso a instrumentos de informação e comunicação.
3º) A comunicação no contexto da melhor política (número 156)
No capítulo V, “A melhor política”, a comunicação é mencionada logo no início (FRANCISCO, 2020b, n. 156), para constatar que os termos “populismo” e “populista” invadiram os meios de comunicação e também a linguagem de um modo geral.
Trata-se de um capítulo forte e belo, porque os limites dos modelos populistas e liberais são mapeados, para gerar a consciência de que o caminho da política é outro e passa não só pela possibilidade de um “poder internacional”, capaz de pensar e atuar conjuntamente na superação dos males presentes na humanidade, mas também pelos caminhos da “caridade social e política”, ou seja, por aquele caminho que o papa chama de “amor político, que integra e reúne”. Na implementação desses caminhos, a comunicação, por sua natureza, tem tarefa importante.
4º) A comunicação no diálogo e amizade social (números 199, 200, 201, 204, 208)
O capítulo VI reserva seis números para inserir a comunicação no “Diálogo e amizade social”, como é intitulado. Esse é um capítulo propositivo, afirmativo e assertivo, porque o diálogo e a amizade social expressam a ambiência da comunidade humana, em que todos precisamos nos reconhecer como irmãos.
O diálogo é elemento crucial para a configuração dos países, cujo crescimento se dá “quando dialogam, de modo construtivo, suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura artística e tecnológica, a cultura econômica e familiar, e a cultura dos meios de comunicação” (FRANCISCO, 2020b, n. 199-200). No n. 200, a Fratelli Tutti chama a atenção para a confusão existente entre o que é diálogo e o que são opiniões publicadas em redes sociais, muitas vezes apoiadas em informações de uma mídia nem sempre confiável, marcada por interesses bem definidos. A hiperdifusão de fatos e informações duvidosas nas mídias de comunicação pode obstruir os canais para o diálogo.
O papa Francisco tem defendido, constantemente, para efeito de reflexão filosófica e também de orientação teológico-pastoral, que o todo é maior do que a parte, que o todo não é simples soma de cada uma das partes. Isso fica claro também quando ele se manifesta, como o fez na Fratelli Tutti, a favor da interdisciplinaridade a ser aplicada à comunicação – “uma vez que a realidade é uma só, embora possa ser abordada sob distintas perspectivas e com diferentes metodologias” (FRANCISCO, 2020b, n. 204) – para facilitar a busca da verdade, que não se esgota na comunicação dos fatos pelo jornalismo (FRANCISCO, 2020b, n. 208), e a construção comum da amizade social, marcada pela recuperação do prazer de reconhecer o outro e da amabilidade, como uma libertação da crueldade e da ansiedade (FRANCISCO, 2020b, n. 223).
5º) A comunicação nos caminhos de um novo encontro (números 258 e 266)
Já no sétimo e penúltimo capítulo, “Caminhos de um novo encontro”, seguem dois números derradeiros sobre informação e comunicação: o n. 258, em que, com gravidade, se afirma que “facilmente se opta pela guerra, valendo-se de todo tipo de desculpas aparentemente humanitárias, defensivas ou preventivas, recorrendo-se inclusive à manipulação de informação”. A manipulação de informação pode ser como um riscar o fósforo no estopim da guerra ou o apertar o botão vermelho da arma nuclear. Indo à raiz, mediante a constatação de que à guerra foi conferido um poder destrutível incontrolável, afirma que “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!” (FRANCISCO, 2020b, n. 258). Manipulação de informação deveria receber, igualmente, o imperativo “nunca mais”. Outra área de sensibilidade máxima diz respeito à pena de morte. A justiça punitiva, que tem os aplausos populistas e a sarcástica alegria dos autoritários, está prevista em todo o globo, mas a justiça restaurativa, que preconiza a recuperação da pessoa, é uma missão a ser cumprida, uma meta a ser alcançada, porque
os medos e os rancores levam facilmente a entender as penas de maneira vingativa, se não cruel, em vez de as considerar como parte de um processo de cura e reinserção na sociedade. Hoje, tanto por parte de alguns setores da política como de certos meios de comunicação, por vezes incita-se à violência e à vingança, pública e privada […] (FRANCISCO, 2020b, n. 266).
O papa Francisco, em discurso a uma delegação da Associação Internacional de Direito Penal (23/10/2014, citado na Fratelli Tutti), defende a exclusão da pena de morte e também da prisão perpétua, que é uma pena de morte escondida.
Conclusão: comunicação, para a Fratelli Tutti
Deixei por último, pela beleza do texto e pelo seu caráter conclusivo, a citação completa do n. 205, no qual a Fratelli Tutti, no capítulo “Diálogo e amizade social” – condição sine qua non para que todos sejam irmãos –, registra a missão da comunicação:
Neste mundo globalizado, os meios de comunicação podem ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Podem ajudar-nos nisso, especialmente nos nossos dias, em que as redes de comunicação humana atingiram progressos sem precedentes. Particularmente a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isso é uma coisa boa, é um dom de Deus. Mas é necessário verificar, continuamente, que as formas de comunicação atuais nos orientem efetivamente para o encontro generoso, a busca sincera da verdade íntegra, o serviço, a proximidade com os últimos e o compromisso de construir o bem comum. Ao mesmo tempo […], não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e trazer à tona o pior das pessoas (FRANCISCO, 2020, n. 205).
A comunicação é dom e missão. É vocação e tarefa. É instrumento e estratégia. É partícipe da construção de nova forma de viver no mundo e de um novo mundo possível, onde todos sejam irmãos e irmãs. Eis o convite do papa Francisco a nós dirigido por meio da Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social.
Referências bibliográficas
FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social. Brasília: CNBB, 2020.
______. Discurso aos jovens no Encontro Economia de Francisco (21 nov. 2020). Disponível em: <https://youtu.be/P25WDDIH8IE>. Acesso em: 7 dez. 2020a.
______. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. Brasília: CNBB, 2015.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 48º Dia Mundial das Comunicações: Comunicação a serviço de uma autêntica cultura do encontro. Vatican News, 1 jun. 2014.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 49º Dia Mundial das Comunicações: Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor. Vatican News, 17 maio 2015.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 50º Dia Mundial das Comunicações: Comunicação e misericórdia: um encontro fecundo. Vatican News, 8 maio 2016.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 51º Dia Mundial das Comunicações: “Não tenhas medo, que Eu estou contigo” (Is 43,5). Comunicar esperança e confiança no nosso tempo. Vatican News, 28 maio 2017.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 52º Dia Mundial das Comunicações: “A verdade vos tornará livres”(Jo 8,32). Fake news e jornalismo da paz. Vatican News, 13 maio 2018.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 53º Dia Mundial das Comunicações: “Somos membros uns dos outros” (Ef 4,25). Das comunidades de redes sociais à comunidade humana. Vatican News, 2 jun. 2019.
______. Mensagem do Santo Padre Francisco para o 54º Dia Mundial das Comunicações: “Para que possas contar e fixar na memória” (Ex 10,2). A vida faz-se história. Vatican News, 24 maio 2020b.
Joaquim Giovani Mol Guimarães
é bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, reitor da PUC-Minas, teólogo e pastoralista, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB.