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Publicado em julho-agosto de 2023 - ano 64 - número 352 - pp.: 24-31

CEBs: o lugar da espiritualidade libertadora e da sinodalidade

Por Emerson Sbardelotti*

O presente artigo pretende apresentar as CEBs como locus theologicus da espiritualidade libertadora e da sinodalidade, no seguimento de Jesus de Nazaré, reafirmando o que, desde sua gênese, foram e são vocacionadas a ser: discípulas, missionárias, em saída, samaritanas, servidoras e proféticas.

 

1. Sinodalidade e espiritualidade

Depois de 48 anos da realização do 1º Intereclesial das CEBs, em Vitória-ES, que teve como tema “Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus”, as CEBs do Brasil promovem em 2023, dentro das comemorações dos sessenta anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, grande celebração da esperança que jorra do sangue derramado dos(as) mártires da caminhada latino-americana e caribenha, os quais nos antecederam e mostraram o caminho, como testemunhas e profetas do Reino da vida: o 15º Intereclesial das CEBs. Este artigo é singela homenagem a D. Pedro Casaldáliga e Reginaldo Veloso – o presbítero das CEBs –,
que caminham junto de Deus e vivem em nosso coração.

As CEBs, enquanto lugar social, são o espaço da sinodalidade e da espiritualidade libertadora, pois caminham juntas com as novas mulheres e os novos homens, produzindo dentro delas e deles uma transformação, empurrando-as, empurrando-os para o mundo:

Na literatura teológica, canonística e pastoral dos últimos decênios surgiu o uso de um substantivo criado recentemente, “sinodalidade”, correlato do adjetivo “sinodal”, ambos derivados da palavra “sínodo”. Fala-se, assim, da sinodalidade como “dimensão constitutiva da Igreja e tout court de “Igreja sinodal”. Esta novidade de linguagem, que pede uma atenta e precisa definição teológica, atesta uma aquisição que vem amadurecendo na consciência eclesial a partir do magistério do Vaticano II e da experiência vivida nas Igrejas locais e na Igreja universal desde o último Concílio até hoje.

Ainda que o termo e o conceito de sinodalidade não se encontrem, explicitamente, no ensinamento do Concílio Vaticano II, pode-se afirmar que a instância da sinodalidade está no coração da obra de renovação por ele promovida (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2018, p. 13).

Segundo o Dicionário do Concílio Vaticano II:

A raiz etimológica da palavra sínodo (syn+hodós) sugere a ideia de caminhar juntos. A sinodalidade é uma característica da Igreja: ela é uma reunião de pessoas que, tendo Jesus como guia, procuram caminhar juntas; já conforme o Antigo Testamento, ela é uma assembleia convocada por Deus (kahal, ekklesia). Estar juntos, em comunhão (koinonia), sempre foi uma das características da Igreja. Se isso está na raiz de sua natureza, por outro lado se manifesta principalmente quando se reúne, seja para celebrar, orar, comemorar, seja para refletir e tomar decisões importantes em conjunto. É sobretudo nesse último sentido que mais se fixou o significado de sínodo na tradição eclesial. Sínodo e Concílio possuem a mesma origem para significar essa realidade de partilha das mesmas preocupações e conjuntamente decisões sobre elas tomar (LIMA, 2015, p. 909).

A palavra “espiritualidade” tem sua raiz na palavra “espírito” (ruah, que significa ventania, hálito de vida, sopro). Karl Rahner (apud SBARDELOTTI, 2019, p. 177) dizia que “espiritualidade é viver pelo Espírito”. Jon Sobrino (1992, p. 7) afirma que “espiritualidade é viver com o Espírito”. A espiritualidade acompanha o ser humano desde seu nascimento e pode evoluir ou não com o passar do tempo. A certeza que se tem é que é ela que alimenta a caminhada no seguimento de Jesus de Nazaré. A espiritualidade inspira, evocando mais liberdade e criatividade.

Trata-se de espiritualidade libertadora, pois leva a viver segundo o Espírito de Jesus de Nazaré e ter a mesma prática dele. Nas palavras de Pedro Casaldáliga, é a espiritualidade do amor comprometido com os pobres da terra. Um amor político, com suas consequências diárias. A cruz do conflito assumida pascalmente. A solidariedade como expressão real desse amor, pobre com os pobres, fraterno na igualdade efetiva (CASALDÁLIGA, 1988, p. 219).

2. Lugar teológico

As CEBs, como lugar teológico (locus theologicus), são pontes onde passa, perpassa e se encontra o mundo dos pobres, dos oprimidos, dos invisíveis, dos descartáveis. Desde seu surgimento, as CEBs são comunidades de discípulas e discípulos de Jesus de Nazaré, são comunidades em saída, missionárias, samaritanas, servidoras e proféticas. A relação entre fé e vida, experimentada a partir das periferias sociais e existenciais, revela o papel decisivo que essas comunidades desempenham na construção de uma sociedade mais justa e fraterna, de um outro mundo, novo, possível e melhor.

Todavia, é preciso lembrar que há desafios e perspectivas que não devem ser omitidos no atual momento das CEBs. Francisco de Aquino Júnior faz um alerta:

Fato é que esse jeito de ser Igreja foi sendo progressivamente sufocado e marginalizado no conjunto da Igreja. […] Temos uma Igreja profundamente autocentrada e clerical. Isso ajuda a compreender, inclusive, as resistências que o papa Francisco tem encontrado em seu projeto de renovação eclesial – um verdadeiro “cisma branco” em que, mesmo quando não se fazem críticas abertas e até se tecem elogios a ele (“o santo padre”) e o citam (muito seletivamente!), não se levam a sério ou mesmo se boicotam suas orientações pastorais. E tudo isso desafia as CEBs a repensar seu lugar (cada vez mais marginal) e sua atuação (cada vez mais profética) no conjunto da Igreja.

[…] Mais do que nunca têm que assumir características de “fermento”, de “sal”, de “luz”, de “semente”. E isso num contexto social e eclesial adversos. Não dá para fazer de conta que nada mudou e continuar organizando grandes encontros intereclesiais como se as CEBs fossem a base de toda a Igreja. […] Não adianta criticar e lamentar os “novos” rumos da Igreja sem se dispor a viver e construir na base o jeito de ser Igreja das CEBs.

[…] Importa atualizar crítica e criativamente esse jeito de ser Igreja no contexto eclesial e social em que estamos inseridos. Sempre nos passos de Jesus de Nazaré, na fidelidade ao Evangelho do Reinado de Deus, na força do Espírito, no serviço aos pobres e marginalizados (AQUINO JÚNIOR, 2019, p. 119; 122-123).

O tema do 15º Intereclesial das CEBs, marcado para os dias 18 a 22 de julho de 2023 em Rondonópolis-MT, já não deixa dúvidas do compromisso e da estética evangélica assumida nesta sociedade que as engloba: “CEBs: Igreja em saída na busca da vida plena para todos e todas”.

O lema do evento – “Vejam! Eu vou criar novo céu e uma nova terra” –, retirado da profecia de Isaías em seu capítulo 65, versículo 17 e seguintes, é uma lufada de esperança, uma certeza de que o Deus da vida tem um presente reservado a todos, todas nós.

De acordo com o Marco Referencial do 15º Intereclesial das CEBs:

Levou-se em consideração a solicitação do papa Francisco para tornar concreta e real “uma Igreja em saída, que vai ao encontro das periferias sociais e existenciais”. É a Igreja presente, que anuncia o Evangelho, atinge o coração, para que “todos tenham vida plena”, vida não para poucos privilegiados, mas vida para todos e todas, para o planeta, para os povos, independentemente de raças, culturas ou credos.

O motivo da escolha do tema quer ser, em primeiro lugar, resposta a Jesus Cristo e seu Evangelho, acolhendo seu projeto “que todos tenham vida em plenitude”. Em segundo lugar, as CEBs querem assumir o compromisso de ser uma Igreja em saída, desejada pelo papa Francisco. As CEBs constatam, com alegre surpresa, que é possível mudar a utopia em “topia”. O tema e o lema, que nos vem do profeta Isaías, são palavras que ressoam em nós criando imagens, pisando realidade, acordando sonhos e utopias. A utopia nasce da realidade. O sonho que ela encerra brota da ausência. Realidade marcada pela ausência do que se sonha. Ausência de vida, terra, céu. Realidade sofrida. Realidade dura, violenta, até com colorido de morte, mas que não mata a esperança (ENCONTRO INTERECLESIAL DAS CEBs, 15., 2021, p. 12).

O mais significante, em todos os intereclesiais já realizados e os que estão por vir, é a partilha de experiências. É a oportunidade de fazer o relato e refletir sobre como está a caminhada: as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias. É uma fonte inesgotável de animação para as CEBs (SBARDELOTTI, 2022, p. 310).

Uma Igreja que não é sinodal não faz parte da herança de Jesus de Nazaré!

Uma Igreja que não está em saída para as periferias não consegue modificar suas estruturas.

Uma Igreja que não se deixa conduzir pelo Espírito libertador de Jesus de Nazaré está fadada a desaparecer.

Há sessenta anos a Igreja se deixou conduzir e uma grande bênção foi derramada sobre todos(as) os(as) católicos(as): o Concílio Ecumênico Vaticano II.

O Vaticano II é o maior evento histórico da Igreja no século XX e suas inspirações continuam pujantes. Suas constituições, decretos e declarações continuam revivificando a Palavra viva de Deus, no Evangelho de Jesus de Nazaré, na própria vida da Igreja. E o eixo para compreender com clareza isso é o estudo da Constituição Dogmática Lumen Gentium e da Constituição Pastoral Gaudium et Spes.

Seis décadas depois, novas perguntas devem ser feitas ao Vaticano II, porém a tentação de não serem respondidas ou receberem respostas velhas ronda nossas CEBs.

Ney de Souza afirma:

No século XXI retornam perguntas antigas e novas no contexto da sociedade globalizada: Como evangelizar a sociedade atual? Como viver o Evangelho nesta sociedade? Que Evangelho anunciar a esta sociedade? E em que Igreja? O catolicismo está aberto ao diálogo com a sociedade e com as religiões? Diante da ausência de clero em várias regiões do planeta, é possível pensar em alternativas dentro de um ministério ordenado? O Vaticano II foi um porto de partida. A comunidade católica está disposta a dialogar com as enormes diferenças que surgiram no pós-concílio na Igreja e na sociedade? Dependendo das respostas e posturas assumidas diante destes e milhares de outros questionamentos se poderá verificar, ou não, se o catolicismo já adentrou o novo século ou permanece oferecendo respostas que não são mais adequadas, como aquelas oferecidas no âmbito do Vaticano I (SOUZA, 2022, p. 26).

Com base nesses questionamentos, é necessário estar disposto a viver e animar o cotidiano das pessoas com esse jeito das CEBs de ser Igreja.

3. Tudo pelo Reino[1]

“Tudo pelo Reino” foi o tema da recente Romaria dos Mártires da Caminhada Latino-americana, em Ribeirão Cascalheira, prelazia de São Félix do Araguaia-MT, realizada nos dias 16 e 17 de julho de 2022. O tema nasceu de conversas com o bispo Pedro Casaldáliga, no final da romaria de 2016.

Tudo pelo Reino, pois o Reino é vida em defesa das vidas. Tudo pelo Reino, pois a sinodalidade é o resgate das intuições do Vaticano II. Tudo pelo Reino, pois a caminhada se faz com espiritualidade libertadora e se faz com canção. Somos todos romeiros, todas romeiras e vamos em procissão, em mutirão, ao som de violas, violões, violinos, flautas, pandeiros, atabaques, tambores, casacas e nossas vozes. Tudo é Páscoa. Testemunhas do Reino. Vidas pelo Reino. Profetas do Reino. Tudo pelo Reino… Tudo pelo Reino… Tudo pelo Reino.

Esse tema inspira e fortalece a caminhada das comunidades eclesiais de base na preparação e realização do 15º Intereclesial das CEBs. Com o coração cheio de nomes, preparamos esse encontro, que será um divisor de águas, pois as CEBs precisarão se refundar, levando em consideração cinco atitudes urgentes: 1) manutenção da opção pelos pobres; 2) ministério e participação das mulheres; 3) superação do clericalismo; 4) diálogo ecumênico e inter-religioso e a luta pela defesa da vida e da natureza; 5) maior empenho em relação aos jovens.

Tais atitudes são de suma importância para a sobrevivência das CEBs enquanto lugar teológico, socioeconômico e político, pois representam não só resistência profética, mas também enfrentamento de tudo que vai na contramão do Evangelho de Jesus de Nazaré.

Optar pelos pobres é manter vivo o seguimento radical de Jesus de Nazaré.

Optar pelos pobres é transformar o seguimento em inspiração, pois evoca maior liberdade e criatividade.

Devem-se valorizar ainda mais os serviços realizados pelas mulheres e os diversos ministérios que assumem nas CEBs; com sua fé e garra, com sua disponibilidade e carinho, elas dinamizam as comunidades e as fazem funcionar. Sem as mulheres, não teríamos Igreja em saída nem o olhar preciso e a voz inquieta contra o clericalismo, grande doença dos dias atuais, junto com o individualismo, o fanatismo religioso e a discriminação.

O diálogo ecumênico e inter-religioso é inevitável para o fortalecimento da Igreja. Dialogar, respeitar e ir ao encontro não diminui em nada a identidade da Igreja; e a luta pela defesa da vida e da natureza se torna uma missão mais leve, pois no caminho encontraremos outras pessoas na mesma sintonia. Respeitar para caminhar juntos. Dialogar para caminhar juntos. Encontrar para caminhar juntos.

É imprescindível apoiar as juventudes e incentivá-las a exercer seu protagonismo juvenil à frente dos serviços, das equipes e dos ministérios existentes nas CEBs. Afinal, Deus faz morada nas juventudes. As juventudes são lugares teológicos. Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta. As juventudes querem ser escutadas, reconhecidas, acompanhadas. As juventudes querem ser amadas, como amam a Igreja.

Tudo pelo Reino, para que as CEBs sejam sempre Igreja em saída, na busca da vida plena para todos e todas.

Tudo pelo Reino.

Tudo é Páscoa!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Renovar toda a Igreja no Evangelho: desafios e perspectivas para a conversão pastoral na Igreja. São Paulo: Santuário, 2019.

CASALDÁLIGA, Pedro. Na procura do Reino: antologia de textos 1968/1988. São Paulo: FTD, 1988.

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. A Sinodalidade na Vida e na Missão da Igreja. Brasília, DF: Ed. CNBB, 2018. (Documentos da Igreja, 48).

ENCONTRO INTERECLESIAL DAS CEBs, 15. Marco referencial do 15º Intereclesial das CEBs. Rondonópolis: Secretariado do 15º Intereclesial das CEBs, 2021.

LIMA, Luiz Alves de. Sínodo dos bispos. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (org.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas: Paulus, 2015.

SBARDELOTTI, Emerson. Por uma Igreja dos pobres: teologia da libertação. São Paulo: Fonte Editorial, 2019.

SBARDELOTTI, Emerson. Teologia da libertação: arte e espiritualidade. In: GUIMARÃES, Edward; SBARDELOTTI, Emerson; BARROS, Marcelo. 50 anos de teologias da libertação: memória, revisão, perspectivas e desafios. São Paulo: Recriar, 2022. v. 1.

SOBRINO, Jon. Espiritualidade da libertação: estrutura e conteúdos. São Paulo: Loyola, 1992.

SOUZA, Ney de. Breve história do Vaticano II: notas sobre o Concílio e sua recepção na América Latina. São Paulo: Recriar, 2022.

[1] Cf. IRMANDADE DOS MÁRTIRES. Disponível em: https://irmandadedosmartires.com.br/romaria-dos-martires-2022-carta1. Acesso em: 3 fev. 2023.

Emerson Sbardelotti*

*é doutorando e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de pastoral leigo da paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Cobilândia, Vila Velha, arquidiocese de Vitória do Espírito Santo. Membro do Grupo de Pesquisa em Literatura, Religião e Teologia – LERTE. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]