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As raízes indígenas das festas juninas

Por Benedito Prezia

Introdução

Poucos imaginam que as festas juninas do Brasil receberam influência da cultura indígena, sobretudo da cultura tupi, apesar de muitos elementos serem de tradição europeia. Essa incorporação se deu por meio da cultura mestiça e foi se moldando não só ao longo do período colonial, como também em épocas mais recentes. Infelizmente, o desconhecimento das tradições indígenas tem levado a população brasileira a ignorar esse passado, talvez por preconceito e pela dificuldade em aceitar a existência de nossa “cultura misturada”. Como a cultura predominante está eliminando muitas tradições, seria importante fazer uma análise desses elementos ancestrais, para não se perder essa riqueza cultural. Inicialmente, faremos um apanhado das tradições europeias dessas festas, analisando os elementos nativos, e finalizaremos com um olhar sobre as festas juninas atuais.

1. As antigas comemorações de São João na Europa e no Brasil colonial

Para entendermos as raízes indígenas das festas juninas, precisamos voltar às raízes portuguesas das comemorações dos santos de junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – e situá-los no contexto rural. Essas festas já possuíam na Europa elementos do mundo agrário, pois estavam ligadas à semeadura e à colheita.

Por isso, não podemos buscar as figuras desses santos nos relatos dos evangelhos nem em suas biografias eruditas, mas devemos ver como entraram no imaginário popular. À medida que pesquisamos, descobrimos que muitos traços das devoções recuperam cultos antigos, que sobreviveram nos povos recém-cristianizados da Europa.

A festa de São João coincidia, na Europa, com o solstício de verão – o dia mais longo do ano –, ocasião em que eram celebrados rituais agrícolas, pedindo boa colheita e agradecendo as primícias do campo. Como observou Câmara Cascudo em um de seus estudos, era nesse momento que “as populações do campo festejavam a proximidade das colheitas e faziam sacrifícios para afastar os demônios da esterilidade, pestes dos cereais e estiagens” (CASCUDO, 1988, p. 404). Na França, essa festividade estival é chamada de Feu de Saint Jean (“Fogo de São João”), sendo celebrada com fogueiras e danças, tradição que vem se perdendo a cada ano.

O fogo foi elemento muito importante nos rituais de antigas culturas. Os antigos celtas celebravam uma festa no dia 1º de maio para comemorar o início do verão. Nessa ocasião, eram acesas grandes fogueiras, no meio das quais os druidas, seus sacerdotes, faziam passar o gado pela brasa, para livrá-los de doenças (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 441). Talvez esse traço arcaico tenha se mantido na cultura lusitana, que guarda um substrato dos antigos ocupantes da península Ibérica – godos e visigodos –, pois havia o hábito de passar descalço pelas brasas. No Brasil, isso foi mantido pelos “devotos do santo”, geralmente negros e mestiços, que desafiavam a lei natural passando descalços no braseiro da fogueira de São João, como pude presenciar na minha infância, no sul de Minas Gerais. Dessa forma se demonstrava a fé no santo, protetor do corpo e do espírito.

No Brasil colonial, as festas juninas tiveram grande aceitação nas missões jesuíticas e nas vilas luso-brasileiras. O padre Fernão Cardim, no final do século XVI, escreveu que, entre os Tupi do litoral, três festas celebram estes índios com alegria, aplauso e gosto particular. A primeira são as fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro. A segunda é a festa de ramos […], a terceira, que mais que todas festejam, é dia de cinza (CARDIM, 1978, p. 191).

Para descobrir a figura do São João das festas juninas, não podemos buscar o João Batista dos evangelhos, um personagem austero e rígido – como se vê nas pregações que fazia à beira do rio Jordão –, cujas denúncias contra o concubinato do rei Herodes o levaram à prisão e à morte. Temos, antes, de procurá-lo na Europa recém-cristianizada, sobretudo na península Ibérica. Lá o precursor do Messias assumiu outro perfil, incorporando certamente qualidades de algum herói mítico celta ou gótico e tornando-se “um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, danças, músicas, bebidas e uma marcada tendência sexual nas comemorações populares” (CASCUDO, 1988, p. 404). Isso se deve às comemorações tradicionais dos cultos agrários, que ocorriam nesse período estival, com o aquecimento do clima e com o aparecimento dos primeiros frutos. É possível também que essa comemoração de verão levasse aos namoros, que podiam terminar em encontros amorosos e na fecundidade matrimonial.

No Brasil, a festa junina, como registra Mello Moraes Filho, tinha também o “banho de São João”. Ocorria aos primeiros raios do sol, “porque depois as águas perderiam de sua virtude” (MORAES FILHO, ca. 1900, p. 110). Esse banho “gozava de propriedades preservativas e miraculosas” (idem, ibidem) e, certamente, levava a encontros casamenteiros.

No Pará foram identificadas rezadeiras e cartomantes que “tiravam a sorte de São João”. A prática consistia em encher um copo com água “na noite do dito santo e lançar no mesmo copo um ovo quebrado, isto é, clara e gema, fazendo uma cruz, rezando um Pai-Nosso e uma Ave-Maria ao dito santo, para que mostrasse o que havia de suceder a tal e qual pessoa”, como se lê numa denúncia feita ao Santo Ofício na visitação realizada em 1769 (DEL PRIORE, 1994, p. 125).

Em outras regiões, como em Itapira, interior de São Paulo, não há registro dessas ações mágicas e João Batista assume uma postura mais séria. Foi tido como “padrinho de Jesus”, segundo o depoimento de um morador, registrado por Carlos Rodrigues Brandão: “Padrinho de Jesus é João Batista. Ele [Jesus] respeita João Batista. Ele é Deus, ele é nosso Deus, mas respeita João Batista. Quem não respeita seu padrinho?” (BRANDÃO, 1986, p. 182).

Não deixa de ser curiosa sua representação iconográfica, em que aparece não como um jovem dos cultos agrários nem de maneira mais formal, como nas imagens das igrejas, mas como criança abraçada a um cordeiro, como se vê nas estampas erguidas no mastro da festa junina tradicional. Valeria a pena pesquisar melhor essa representação.

2. As celebrações de Santo Antônio e São Pedro

Outro santo do ciclo junino é Santo Antônio, que chegou ao Brasil com os primeiros colonos portugueses, tornando-se muito popular. Sua festa costuma ser preparada com uma trezena, isto é, com encontros religiosos, que terminam no dia 13 de junho. Chamado “pai dos pobres”, na sua festa é distribuído o pão bento, que as pessoas levam para casa, pedindo que nunca falte o alimento.

É invocado para encontrar não só objetos perdidos, como também o marido ideal. Por excelência, trata-se de “santo casamenteiro”. Seria uma reminiscência dos cultos romanos ou góticos? É mais uma dúvida a ser resolvida numa pesquisa sobre as religiões ibéricas.

Essa ligação com a busca do amado explica por que, no Brasil, o Dia dos Namorados ocorre na véspera de sua festa. Uma tradição portuguesa faz que as mulheres em busca de marido o amarrem num poço ou na janela da casa até que o pretendente apareça.

A proximidade com a festa de São João fez que Santo Antônio recebesse também a tradicional fogueira, fogos de artifício e mastro.

Outra dimensão pouco conhecida localizei num livro de rezas populares, em que se pede ao santo que torne “invisível” quem o invoca e o livre de malefícios:

Meu glorioso Santo Antônio, num caminho escuro caminho eu. Meus inimigos encontrarei, se tiverem olhos não me verão; se tiverem boca, não falarão; se tiverem corda, não me amarrarão; os braços dos meus inimigos para mim enfraquecerão; os corações dos meus inimigos para mim brandos são, porque eu vivo amparado no hábito do meu glorioso Santo Antônio (SALES, 2006, p. 54).

Esses pedidos mostram influências da religiosidade indígena e, talvez, africana.

O terceiro santo junino é São Pedro. Embora o calendário litúrgico o comemore juntamente com São Paulo, este último não entrou nas comemorações populares.

Na devoção popular brasileira, São Pedro foi identificado como o guardião do céu, aquele que controla a entrada dos falecidos ao paraíso. A iconografia o representa com chaves às mãos, numa alusão à passagem do evangelho em que Cristo diz que lhe dará as chaves do céu. A farta literatura de cordel do Nordeste explora esse seu atributo, pelo qual o santo disputa com o demônio as almas dos falecidos.

São Pedro teve direito a comemoração semelhante às festas de São João, com fogueira e fogos de artifício, e, por sua posição entre os santos, os fogos eram abundantes. Parece que antigamente a comemoração pirotécnica era muito mais acentuada do que nos dias atuais. É o que relatou o pastor estadunidense Daniel Kidder, quando de sua viagem pelo interior de São Paulo, em 1855. Ao chegar a Campinas, no dia 28 de junho, foi surpreendido pelos festejos:

Era a “véspera de São Pedro”; e todo homem, que tinha um Pedro ligado a seu nome, sentia-se na obrigação de acender uma imensa fogueira diante de sua porta e soltar uma porção de foguetes, além de descarregar inúmeras pistolas [revólveres], mosquetes e morteiros. […] Os clarões e o barulho eram tais, que sem qualquer esforço de imaginação, ter-se-á acreditado estar perto de alguma cidade sitiada, durante um violento bombardeio (KIDDER; FLETCHER, 1941, v. 2, p. 107).

Em regiões litorâneas, pelo fato de ter sido pescador, sua festa é muito celebrada por pescadores com procissão de barcos, diferentemente das comemorações interioranas.

Por ser guardião do paraíso, São Pedro é invocado para pedir esclarecimento de situações duvidosas, como revela esta oração popular, cuja região de origem infelizmente não foi citada pelo autor que a compilou:

Meu glorioso Pedro, vós a Deus negastes três vezes antes do galo cantar; correstes e vos escondestes até vos arrependerdes; sentastes num lazeiro de pedra e vos pusestes a chorar. Deus mandou um anjo atrás de vós, dizendo: Pedro, Pedro, Pedro, a chave do céu é vossa. Assim, meu glorioso senhor São Pedro, como estas palavras são santas e verdadeiras, mostrai-me em sonho o que desejo ver em águas claras, campos verdes, casas caiadas e cavalheiros bem trajados. Se não for verdade, mostrai-me águas turvas, campos secos, casas velhas e cavalheiros mal trajados. Rezar um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e uma Salve-Rainha até o “nos mostrai” (SALES, 2006, p. 76).

Outros traços característicos dessas festas são as bandeirinhas coloridas e o levantamento do mastro. Este último remonta à cultura europeia, com sua tradição de erguer mastros comemorativos nas festas da família real. Foi o que ocorreu na Bahia em 1718, por ocasião das celebrações pelo aniversário do filho mais velho do conde de Vila Verde, quando se ergueu um mastro “pintado de branco e carmesim e coroado de uma grinalda dourada” (DEL PRIORE, 1994, p. 33). Depois, passou-se a levantá-lo em festas religiosas, como a de São Gonçalo, realizada pela Irmandade dos Pardos de Nossa Senhora do Livramento (DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).

Com o tempo, essa tradição permaneceu apenas nas festas juninas, ocasião em que nos mastros eram amarrados os frutos da terra e, sobretudo, espigas de milho. Em algumas regiões, havia o hábito de queimar o mastro, guardando os carvões, que poderiam dar proteção contra raios e trovões (DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).

As festas juninas foram as únicas que conservaram essa tradição. Sobre os mastros se colocam estampas de pano dos três santos juninos. Em alguns lugares, havia também um mastro para brincadeira, o chamado “pau de sebo”. Era besuntado de graxa e, na sua ponta, se colocava uma nota de alto valor, prêmio para quem a alcançasse. Essa brincadeira ainda presenciei em minha infância, no interior paulista.

3. Contribuições indígenas às festas juninas

As celebrações religiosas populares de matriz portuguesa, com o tempo, passaram a receber da cultura nativa elementos indígenas, por serem festas comemoradas por mestiços, os chamados caboclos ou caipiras, isto é, “moradores do mato” ou moradores do interior.

Mesmo com o processo de urbanização, até meados do século passado, as cidades mantiveram essas comemorações com o colorido mestiço.

Os santos juninos, sobretudo São João e São Pedro, passaram a receber atributos dos heróis míticos de matriz tupi-guarani, como Tupã e Karaí ou Karaíba. É possível que São João fosse identificado com Karaí-ru-ete ou Karaí, entidade que se manifesta no fogo, no corisco e no “crepitar da chama”. É uma das quatro divindades do panteão guarani (GODOY, 2003, p. 74-75). Daí a importância da fogueira e da brasa nessas comemorações.

Os portugueses foram chamados de caraíbas no século XVI, nome genérico dado aos demiurgos tupis (THEVET, 2009, p. 56). Sua pele branca, as armas de fogo que traziam e sua procedência, vindos pelo mar, levaram-nos a serem identificados como demiurgos.

Esse substrato ancestral talvez explique por que cada família, sobretudo no Nordeste, costuma fazer sua fogueira em frente da casa, numa maneira de homenagear o santo e pedir-lhe proteção.

Não é de estranhar a tradição “casamenteira” – encontrada nessa região pelo barão de Studart no século passado – que associa o fogo à adivinhação. Tomava-se um ramo de manjericão e, depois de passá-lo pela fogueira, ele era jogado pela moça casadoura sobre o telhado. Se no dia seguinte continuasse verde, o noivo seria um jovem; se murchasse, seria um velho (CASCUDO, 1988, p. 405).

A festa de São João fundiu-se no Brasil com a festa tupi do milho, celebrada em agosto, quando se comemorava o início do ano-novo, tradição ainda conservada entre os Guarani Mbyá. Este povo denomina essa época de Ara Pyaú (Tempo Novo). Segundo Luciana Galante, “os fortes ventos (yvytu) iniciam o período, anunciando a chegada da primavera. É chegada a hora de realizar o batismo da erva-mate, o ka’a nheemongaraí, cujas projeções sobre o ano-novo são interpretadas pelo Xeramoi [pajé]” (GALANTE, 2011, p. 57). É o momento não só de realizar o “batismo” da erva-mate, como também de celebrar o nheemongaraí, cerimônia de nominação, quando as crianças recebem o nome guarani dado pelo pajé. Devido a influências católicas, esse ritual é chamado de “batismo guarani”.

Nesse período, em algumas aldeias, ocorre a “festa do milho”, quando se reúnem a comunidade e os parentes de aldeias vizinhas numa comemoração que pode durar vários dias. É o que constatamos na aldeia Tekoá Ytu, da terra indígena do Jaraguá, na capital paulista.

Dessa tradição nativa permaneceu, em nossa cultura mestiça, não o “batismo do milho”, ligado à bênção das primícias agrícolas, mas o “batizado da boneca de milho”, como pude identificar numa foto, da década de 1950, de um antigo morador de minha terra natal (Acervo fotográfico de Águas da Prata, 1992). Nesse caso, houve uma transposição de significantes, permanecendo o significado subjacente. Essa festa rural, que caiu em desuso, era uma oportunidade para as famílias realizarem um encontro de vizinhos.

Não se pode esquecer o papel do milho nas culturas indígenas, sendo um dos alimentos mais ricos da agricultura da América. Entre os Maia do México e Guatemala, é reverenciado como uma divindade, Yum Kaax, o senhor do milho (CENAMI; CCD, 1993, p. 33-36).

No Sudeste e Nordeste, as comemorações são marcadas por comidas à base de milho – numa recuperação da antiga festa do milho, de tradição tupi –, cujos nomes são também de origem tupi: a canjica (do guarani: kangy = mole + kaa = planta), feita com milho seco despolpado e cozido; o curau (kure = ralado + u = comida), creme de milho ralado; a pamonha (pomonga = pegajoso), creme de milho cozido na água fervente e servido, já endurecido, na casca de milho, fazendo lembrar pratos indígenas assados em folha de bananeira.

Outros alimentos elaborados com milho também aparecem, como o bolo de fubá, a pipoca e o milho verde assado na brasa. No Nordeste, com a influência africana, a canjica passou a ser chamada de munguzá, termo de língua banto.

O quentão lembra o cauim indígena, que antigamente era feito com mandioca ou milho fermentado e servido morno, como ocorre ainda hoje entre os Guarani Mbyá. Atualmente, na ausência da fermentação natural, faz-se o quentão com cachaça e gengibre.

Além do milho, encontram-se nessa festa outros alimentos de origem indígena, como a batata-doce e a mandioca, servida de diversas formas, assada, cozida ou como bolo. Em Minas Gerais são acrescentados o famoso pé de moleque e a paçoca de amendoim, alimento indígena. No Sul, é agregado o pinhão, alimento básico do povo Kaingang e de outros povos que viviam da coleta desse fruto no Sudeste, como os Guaianá e Guarulho, hoje extintos.

Quanto a São Pedro, foi identificado com Tupã, a todo-poderosa entidade indígena, o “senhor da chuva e dos trovões”. Embora não fosse o deus maior do panteão tupi, muitas vezes assumiu o papel primordial, como se lê nos registros de missionários e cronistas coloniais. O deus maior, que seria Monã ou Monhã, não tinha culto e era um “deus escondido”. Como registrou o capuchinho Thevet, “os selvagens deste lugar mencionam um Grande Ser, cujo nome em sua língua é Tupan, acreditando que viva nas alturas e faça chover e trovejar” (THEVET, 1978, p. 99).

Essa ligação entre Tupã e São Pedro manifesta-se em várias regiões do Brasil, quando se identifica São Pedro com o responsável pela chuva: é frequente dizer que se precisa “pedir chuva a São Pedro”, quando há estiagem, ou que “São Pedro exagerou na chuva”, quando há muita água. Existe até a expressão popular “mandachuva”, com duplo significado: no sentido original, atualmente desconhecido, devia referir-se a Tupã; no sentido analógico, refere-se a um chefe, isto é, “àquele que manda”.

São Pedro aparece também num conto popular baiano que o aproxima dos heróis míticos tupis. Foi recolhido por João da Silva Campos, no Recôncavo Baiano, na década de 1920, e publicado por Basílio de Magalhães.

Num povoado vivia um velho com uma filha e três filhos. Certo dia, apareceu um rapaz que pediu a moça em casamento. Pedido aceito, o jovem levou-a para sua casa. Nem imaginava ela que era São Pedro. Ela vivia bem, mas sentia falta do marido, que passava muito tempo fora, cuidando das ovelhas. Um dia um dos irmãos veio visitá-la, e ela reclamou do marido. O irmão sugeriu então ao cunhado fazer, em seu lugar, as tarefas de pastor, de modo que o outro tivesse mais tempo para ficar com a esposa. O marido aceitou, mas no caminho surgiram dificuldades que não foram enfrentadas pelo rapaz. Este, ao voltar, foi enviado para casa, pois São Pedro lhe disse que não tinha dado conta da tarefa. O mesmo ocorreu com o segundo irmão. Só o terceiro conseguiu enfrentar os desafios. E, voltando para a casa da irmã, foi bem acolhido pelo cunhado. A história termina com São Pedro, depois de lavar os pés da mulher e do cunhado, colocando-os nas palmas da mão e subindo com eles para o céu (MAGALHÃES, 1939, p. 300-303).

Tal narrativa assemelha-se muito aos mitos tupis, recolhidos no século XVI pelo capuchinho André Thevet, nos quais os diversos Karaíba convivem com os humanos, protegendo-os ou castigando-os, e transitam com facilidade entre a terra e o céu (THEVET, 2009, p. 66-75).

Quanto ao mastro português, encontramos um similar na tradição tupi, como registrou o capuchinho Claude d’Abbeville. Ele escreveu sobre o hábito dos Tupinambá do Maranhão de “fincar, à entrada de suas aldeias, um madeiro alto com um pedaço de pau atravessado por cima; aí penduram quantidade de pequenos escudos feitos de folha de palmeira e do tamanho de dois punhos. Neles pintam com preto e vermelho um homem nu”. Ao serem indagados sobre o objetivo daquele mastro, os indígenas responderam que “seus pajés haviam recomendado para afastar os maus ares” (D’ABBEVILLE, 1975, p. 253).

4. As festas juninas atuais

Com a urbanização, essas celebrações foram levadas para a cidade, e no Sudeste, especialmente no estado de São Paulo, tornaram-se festas carregadas de preconceitos, reproduzindo o estereótipo do “caipira”: o homem aparece com roupas velhas e remendadas, dente cariado, chapéu de palha velho, cigarro de palha na orelha, botina velha… A mulher, com trança, vestido de chita e pintura do rosto exagerada.

Contudo no Nordeste, que conserva traços fortes da cultura indígena, essa festa felizmente conseguiu cidadania, sem sofrer representação preconceituosa. Não há “roupas caipiras”, mas vestidos bem confeccionados e de bom gosto. É a festa mais importante em vários estados, atraindo turistas, como se vê em Caruaru, em Pernambuco ou em Campina Grande, na Paraíba. Em todo o Nordeste, as férias escolares do meio do ano foram antecipadas para junho, para que alunos e professores organizem essas festas e delas participem. Até deputados e senadores promovem um recesso branco para se fazerem presentes nessas comemorações.

Nos festejos juninos, a quadrilha, com o “casamento caipira”, é sempre presente. Este último pode ser analisado como uma paródia do cerimonial católico, própria do teatro popular colonial, na qual um padre bêbado tenta casar um noivo ingênuo com uma noiva sirigaita e, após a cerimônia, o público é surpreendido por um delegado que leva presos os convidados bêbados. Contra esse tipo de representação jocosa, a Igreja católica do século XVIII foi muito severa, proibindo encenações que pudessem depor contra a instituição (DEL PRIORE, 1994, p. 91-104). Entretanto a sátira contra o clero perdurou por todo o século XIX, como relata John Lucook, comerciante inglês que esteve no Brasil entre os anos de 1808 e 1818 e pôde assistir a peças teatrais nas quais os clérigos eram ridicularizados (LUCCOCK, 1975, p. 61).

Pode-se também ver aí uma sátira contra a nobreza, deposta com a República. A quadrilha, baile das festas da corte imperial do Rio de Janeiro, foi parodiada, sendo mantidas, inclusive, palavras francesas como en avant e en arrière (CASCUDO, 1988, p. 646).

As músicas da quadrilha não eram evidentemente as dos bailes da corte imperial, e sim das regiões interioranas, que elaboraram melodias regionais com certa influência indígena, como as músicas do Nordeste que tiveram a contribuição da cultura do povo Kariri, entre as quais o baião, o forró e o xaxado (PREZIA; JOSIVAN, 2006, p. 218). No Sudeste, as músicas “caipiras” ou sertanejas foram influenciadas pela tradição tupi-guarani, sendo mais chorosas e lentas (PREZIA; JOSIVAN, 2006, p. 180). No entanto, hoje predominam as músicas nordestinas, que se tornaram típicas, sendo identificadas como “músicas de quadrilha”.

Se na festa junina o casamento é geralmente visto como paródia, em algumas regiões do interior o casamento das festas juninas era encarado de forma mais séria, como uma espécie de contrato provisório, já que a presença do padre católico não era constante. Falava-se então de “casamento na fogueira”. Artur Neiva e Belizário Pena narram esse tipo de casamento nos “gerais” do Piauí e Goiás, que ocorria na noite de São João. Era realizado “junto à fogueira, em presença dos pais dos noivos, padrinhos, pessoas da família e convidados”, e “considerado válido para todos os efeitos” (CASCUDO, 1988, p. 407).

Havia também o compadrio de fogueira, quando alguém se tornava “padrinho” de uma criança, como forma de comprometê-lo num futuro batizado, a ser realizado posteriormente pelo padre, na cidade.

Conclusão

Por tudo que se apresentou, vê-se que, diante da sociedade urbana, tradições de raiz, como as festas juninas, vão perdendo elementos importantes ou até desaparecendo, num empobrecimento da cultura nacional. Hoje essas festas estão restritas às escolas e paróquias católicas, com certa descaracterização, a ponto de nelas encontrar-se até “cachorro quente”. Por isso, é importante conhecer esse passado cultural, para que essa festa se realize de forma conveniente, resgatando a manifestação folclórica e procurando entender as contribuições das culturas nativas. Fica aqui também o recado para o agente de pastoral estar atento ao catolicismo popular, para que possa compreender esse universo religioso mestiço e não se excluam essas manifestações como elementos nocivos ou atrasados. É o “Brasil profundo” que se esconde no interior de muita gente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

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LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil, 21).

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THEVET, André. A cosmografia universal de André Thevet, cosmógrafo do rei. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2009. (Coleção Franceses no Brasil, séc. XVI e XVII, 2).

Benedito Prezia

Benedito Prezia é doutor em Antropologia pela PUC-SP, pesquisador em História Indígena e autor de História da resistência indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2017), entre outras publicações. Desde 1983 atua junto aos povos indígenas e atualmente coordena o Programa Pindorama para indígenas universitários na PUC-SP. Foi professor de Religiões Indígenas nas Faculdades Integradas Claretianas (São Paulo) e de Fenômeno Religioso no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).