Publicado em maio-junho de 2022 - ano 63 - número 345 - pág.: 4-19
Amor à maneira de Deus: Uma entrevista com Pe. Júlio Lancellotti
Por Júlio Lancellotti*
O artigo é fruto de uma live realizada em 5 de outubro de 2021, mediada por Erica Augusto, colaboradora da Paulus, por ocasião do lançamento do livro Amor à maneira de Deus, de autoria de Júlio Lancellotti. O texto foi decupado por Felipe Borges, seminarista paulino, bacharel em Filosofia pela Faculdade Paulus de Comunicação (FAPCOM).
Padre Júlio, para nós, da Editora PAULUS, é uma alegria recebê-lo.
Pe. Júlio Lancellotti: E também para mim é uma alegria. A PAULUS está no meu coração e faz parte da minha vida; aliás, faço muita propaganda de um livro da PAULUS que marca minha vida: A loucura de Deus, de Alberto Maggi, minha fonte permanente de consulta e reflexão.
Já conhecemos sua luta, seu trabalho, mas conte-nos um pouco quais são as recordações do seu tempo de infância.
Pe. Júlio: Sem dúvida, as recordações mais fortes são do meu núcleo familiar – a figura do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos – e de tudo que fui vivendo na infância. O que aconteceu é que a primeira escola à qual eu fui era uma escola religiosa. No tempo da minha infância, as escolas estaduais, as oficiais, eram muito elitizadas, e os pais simples acabavam indo para as escolas religiosas. Minha primeira escola foi o Educandário São José do Belém, das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, da Beata Bárbara Maix. Aí, foi muito marcante para mim a figura de minha primeira professora, bem como as primeiras vivências escolares. Depois fui para o Educandário das Irmãs Servas do Espírito Santo, no Tatuapé, e lá encontrei uma irmã que também marcou muito minha infância: era uma irmã que enxergava com muita dificuldade e se dedicava a cuidar dos alunos mais difíceis. Naquela época, eu era dessa turma, dos mais difíceis. E ela então me chamou. Imagine que me liguei tanto a essa irmã, que se chamava Inezita, que aprendi a responder à missa em latim em uma semana. Eu tinha um amigo com quem ia para a aula de manhã; antes, participávamos da missa conventual nas irmãs e depois tínhamos as aulas regulares. Eu voltava para casa, para almoçar, e depois retornava para a escola, a fim de fazer um reforço e ficar lá com a irmã Inezita. Ela cuidava de nós, e nós cuidávamos dela. Ela marcou muito minha vida.
E de onde surgiu o desejo e a inspiração para o sacerdócio? Dom Luciano teve um papel nesse processo?
Pe. Júlio: Sim, dom Luciano teve um papel decisivo, porque entrei no seminário logo que terminei a quarta série. Fui para Araraquara, para o seminário dos Verbitas, ligado justamente às Servas do Espírito Santo. Araraquara era muito longe, a gente ia de trem para lá, levava muitas horas. Fiquei ali um tempo, era adolescente, senti muita falta do núcleo familiar, também a disciplina era bastante rígida; então não aguentei e acabei voltando para casa. Fiz, em seguida, o ginásio com os Padres Agostinianos e, quando terminei, fui para o ensino médio no seminário agostiniano, em Bragança Paulista, onde cheguei ao noviciado. Fiquei lá quatro anos, até que me disseram: “Você não serve para a vida religiosa; é imaturo, quer saber muito das coisas, então não serve” – e me mandaram embora. Meu pai, diante disso, falou: “Você foi para um e não quis ficar; no outro, foi mandado embora. Então agora você vai trabalhar”. Lá em Bragança, fiz um curso de atendente de enfermagem na Santa Casa e fiquei sabendo que onde fiz o curso e trabalhei com os doentes foi o lugar em que viveu Santa Paulina. Quando voltei, trabalhei por um bom tempo na área de enfermagem no Hospital São José de Belém, hoje Hospital Santa Virgem; depois, fui trabalhar no Serviço Social de Menores, a antiga Febem. No tempo em que já era Febem, não aguentei, porque era demais, eu via situações dramáticas. Era o tempo da ditadura militar, o governador de São Paulo era governador indireto, e eu saí para ficar com dom Luciano Mendes de Almeida. Isso devia ser por volta de 1978. Em 1980, quando São João Paulo II veio para o Brasil, dom Luciano, de certa forma, me pôs contra a parede. Foi interessante, porque tive com dom Luciano o seguinte diálogo na Cúria, onde estava a irmã Maria do Rosário Cintra, do primeiro grupo da Pastoral do Menor, já falecida, e a Ruth, também desse primeiro grupo e igualmente falecida (dos quatro, só eu estou aqui, porque faleceu dom Luciano, a Maria do Rosário e a Ruth); ele me disse: “O papa me fez uma pergunta”. E eu: “É, dom Luciano? O que o papa lhe perguntou?” Ele continuou: “O papa me perguntou quando é que vou ordenar o Júlio padre”. Eu comentei: “Imagine, dom Luciano, o papa nem sabe que existo, ele nunca iria perguntar isso”. Então, ele falou: “Mas eu estou perguntando”. Em 1981, comecei a Teologia. Já tinha formação em Pedagogia, havia cursado a faculdade durante quatro anos, já tinha trabalhado como professor – fui assistente do professor Carlos Alberto Peruzzi em três faculdades – e dom Luciano conhecia minha vida, meu trabalho junto à Pastoral do Menor. Então, em 1985, ele me ordenou padre, com a autorização e o apoio do cardeal Paulo Evaristo Arns. São, portanto, duas figuras que marcaram muito minha geração. Dom Paulo, o arcebispo de São Paulo, o cardeal Arns, figura importantíssima na defesa dos direitos humanos, dos direitos políticos, criador da Pastoral do Menor, do Vicariato do Povo de Rua, da Pastoral Carcerária, da Pastoral do Trabalho, da Pastoral da Saúde; todas essas ações pastorais voltadas para o mundo, para a Igreja em saída, nasceram do coração de dom Paulo Evaristo Arns. E para a Pastoral do Menor, ele designou dom Luciano Mendes de Almeida. Então, são figuras que marcaram muito minha vida nesse itinerário. Olhar para dom Paulo, olhar para dom Luciano e – o que foi muito importante – conviver com dom Luciano.
Que time tinha a arquidiocese de São Paulo naquela época!
Pe. Júlio: Dom Angélico Sândalo Bernardino, dom Celso Queiroz, dom Mauro Morelli eram bispos de muita luta. Temos ainda hoje a presença de dom Angélico Bernardino e de dom Fernando Penteado, já bastante idoso, dom Gaspar… Então vai somando, foi um time muito forte e muito sinodal. É interessante ver que muita coisa que o papa Francisco propõe hoje, dom Paulo já vivia naquele colégio episcopal na arquidiocese de São Paulo. Conviver com dom Paulo, com dom Luciano Mendes de Almeida, foi muito bom. Você sabe que fiz o depoimento para a beatificação de dom Luciano? Fui uma das testemunhas convocadas para fazer o depoimento, que levou quatro horas. Então, falar de dom Luciano não cabe nem num livro de mil páginas, devido a tantas coisas para falar da convivência diária com ele, de tudo aquilo que ele viveu. Foi muito marcante. Lembro bastante o dia em que ele atravessou a rua comigo aqui no [bairro do] Belém e comentou: “Você vai ser ordenado padre e sua vida não vai mudar muito. Vai continuar fazendo tudo aquilo que já faz”. Outra coisa curiosa: no dia em que fui falar com ele para marcar minha ordenação, ele pegou a agenda e me pediu: “Venha à minha casa, no dia 1º de janeiro, às 7 da manhã”. Às 6h30 eu estava na casa dele para marcar e combinar a ordenação.
Que privilégio tivemos de ter esse santo, dom Luciano, de fato um santo aqui na arquidiocese de São Paulo, em Mariana e em tantos lugares. Dom Luciano foi uma grande referência; o senhor falou também de dom Paulo e dedica seu livro a Santa Dulce dos Pobres. Além desses, quais são suas grandes referências na Igreja e na sociedade na questão dos direitos humanos?
Pe. Júlio: Sem dúvida, uma figura importantíssima na minha vida é Paulo Freire, com quem também convivi. Lembro-me de um momento muito marcante, quando recebi o título de doutor honoris causa pela PUC de São Paulo: o Paulo Freire também era doutor honoris causa naquela universidade e estava sentado do meu lado, prestigiando aquele momento; foi uma festa muito bonita com indígenas, crianças de rua e toda aquela situação de grandes desafios. E celebrei a missa de corpo presente do Paulo Freire, acompanhei o cortejo do enterro. Tínhamos muitas reuniões com ele sobre a Pastoral do Menor, então Paulo Freire é uma figura que marca muito minha vida, um grande brasileiro, um grande lutador, o patrono da educação no Brasil. E dos santos, sem dúvida, Santa Dulce dos Pobres é outra figura que marca muito minha vida pela sua luta, pela sua forma de enfrentar a pobreza, a miséria. Gosto muito de um episódio em que Santa Dulce ocupa as casas em Salvador, o prefeito reclama e ela diz: “Enquanto houver gente na rua e casa vazia, vou ocupar mesmo”. Até digo: Santa Dulce, a patrona das ocupações. No rol dos santos, há muitos que marcam minha vida, gosto muito da vida dos santos. Um dia, dom Cláudio Hummes foi lá na paróquia onde estou e disse assim: “Você deve ser o padre que mais gosta de santo aqui na arquidiocese”.
O senhor tem uma devoção muito grande a Santa Marina, não é?
Pe. Júlio: Santa Marina é figura muito marcante na minha vida. Você conhece a história de Santa Marina?
Já ouvi o senhor falar da santa, a história não conheço.
Pe. Júlio: Santa Marina é a padroeira e a protetora dos difamados, caluniados e perseguidos. É uma figura palpitante, principalmente neste momento em que vivemos, porque a Marina teve de viver num mosteiro como monge, como Marino, e por muito tempo a acusaram de ter um filho, e ela nunca se defendeu. Só quando morreu, perceberam que ela era uma mulher, que não era o pai da criança que ela teve de assumir. Aqui na região Belém há uma paróquia dedicada a Santa Marina. Para mim, marcam muito também Santa Edith Stein, São Maximiliano Kolbe, São Bento José Labre, São Martinho de Lima, São Pedro Claver; são muitos os santos que marcam minha vida, assim como minha madrinha, Santa Teresinha do Menino Jesus.
Esses santos todos têm um ponto em comum, que é a opção pelos mais pobres. Por que essa opção que o senhor fez pelos mais pobres e pelos mais excluídos da sociedade? Poderia falar um pouco do trabalho que realiza com o povo de rua aqui da arquidiocese de São Paulo?
Pe. Júlio: Na minha concepção, não há maneira de seguir Jesus sem optar, sem estar do lado dos mais pobres, dos abandonados e – como diz Paulo Freire na Pedagogia do oprimido – dos “esfarrapados”, daqueles que são descartados, considerados lixo. Assim como Jesus comia com os pecadores, com os abandonados, com os excluídos; assim como viveu São Francisco de Assis, assim como viveram esses grandes sinais da Igreja no seguimento de Jesus. Aquilo que Jesus nos diz, quando vemos o capítulo 5 do Evangelho de São Mateus: Jesus se identifica com o faminto, o sedento, o abandonado, o forasteiro. Então acredito que não há uma forma de seguimento de Jesus que não passe pelos mais pobres, pelos abandonados. O papa Francisco, logo no início do seu pontificado, repetiu aquilo que já nos disse São João XXIII: “Como eu quero uma Igreja pobre, para os pobres”. E foi isto que dom Paulo pediu, quando criou o vicariato para a população em situação de rua: “Façam comunidade”. Quando, no ano passado, o papa Francisco, para minha surpresa, me fez uma chamada telefônica, perguntou-me como um jesuíta podia perguntar: “Como é o seu dia?” Falei da convivência com os irmãos de rua, e então ele me disse: “É isso mesmo, é isso que tem que fazer: conviver com os pobres”. Acredito que isso é próprio da vocação cristã. É incompatível com a vocação cristã rejeitar os mais pobres, os abandonados.
Sim. No livro Amor à maneira de Deus, o senhor diz que uma das experiências mais profundas da misericórdia, do amor de Deus, ocorreu através da Casa Vida. Se o senhor pudesse falar àqueles que nos assistem o que foi a Casa Vida… Por que ela teve esse impacto tão grande em sua vida e missão?
Pe. Júlio: [A Casa Vida surgiu] com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, e para nós foi uma luta muito grande. Na Constituinte de 1988, estávamos com uma multidão de crianças na Praça da Sé, bem ali perto da livraria da Paulus, e nos representava no Congresso Nacional o Plínio de Arruda Sampaio, grande figura, já falecido. Ele era deputado federal e deputado constituinte, e colocou no sistema de som da Câmara Federal o grito das crianças e adolescentes direto da Praça da Sé. Foi quando nós aprovamos – com o grande apoio de dom Luciano Mendes de Almeida, que era secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – o artigo 227 da Constituição Federal, que coloca a criança e o adolescente como prioridades absolutas. Como decorrência do artigo 227 da Constituição de 1988, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, e uma das coisas que o Estatuto previa era a dissolução dos grandes orfanatos. Eu trabalhava na unidade Sampaio Viana da Febem, no Pacaembu, onde havia mais de 500 crianças abandonadas, de 0 a 6 anos, e depois eu saí de lá. Nós estávamos na Pastoral quando veio o Estatuto, e eu pensei: “Temos de mostrar que é uma lei viável”. Fui ver na Febem, as crianças e adolescentes estavam na pior situação; as crianças que estavam com HIV fechadas, no pior isolamento, sem poder conviver. Viam o mundo pela janela, não podiam nem brincar, nem sair do quarto, ficavam presas o dia inteiro. Falei então com dom Luciano: “Vamos fazer uma casa, uma casa-abrigo, uma casa-família para acolher as crianças”. E dom Paulo imediatamente me deu apoio. Minha mãe disse: “Você vai sofrer muito com isso”. E, realmente, foi um grande desafio. Dom Paulo abriu a Casa; eu fui processado, tentaram pôr fogo na Casa, fui para a Justiça. Dom Paulo abriu a Aliança pela Vida, que ajuda as pessoas com HIV e aids. A primeira iniciativa civil foi da Igreja, que foi em socorro das pessoas com HIV e aids. E essas crianças [e adolescentes] marcaram muito minha vida, porque convivi com eles na vida e na morte, sepultei muitos deles, que viveram situações extremamente desafiadoras, marcadas muito pela dor e muito pelo amor. Uma das coisas que guardo muito no coração é que batizei todos eles. Para grande parte deles consegui dar a primeira comunhão, e também acompanhei muitos até a sepultura. Hoje alguns estão vivos, já adultos, estão bem, graças a Deus, conseguiram superar a crise e chegaram a uma medicação adequada. Cada uma dessas crianças era um filho, uma filha, uma dor, uma alegria: vê-los falar, alimentá-los, cuidar deles com carinho, ver aquelas crianças pequeninas superar a dor. Alguns deles ficarão muito marcados em minha mente pelo afeto; o nome deles é inesquecível, e todos os que morreram eu acompanhei até o último momento. Tive a alegria de lhes ter dado uma infância feliz, uma infância com alegria: brincar, cantar, dançar, ter brinquedo, boa alimentação. Muita gente comentava: “Mas você investe demais nessas crianças que não têm futuro”. Aqui está a grande palavra-chave: gratuidade. Hoje até coloquei no Instagram, por causa do seu aniversário, uma foto de dom Luciano segurando uma dessas crianças da Casa Vida, a Jurema Cíntia, que, além do HIV, teve uma crise de lúpus e faleceu com 16 anos. Foi uma criança que viveu conosco desde os 5 anos e teve uma vida cheia de dores, desafios e esperanças. Então isso me desafiou muito na questão pedagógica, pastoral, na minha luta pelos direitos humanos, porque minha convivência foi com presos, com jovens infratores, com pessoas com HIV e aids, em situação de rua, idosos, pessoas mais sofridas, e buscava dar a essas pessoas a melhor resposta, em cada momento.
O senhor falou de gratuidade. No livro Amor à maneira de Deus, afirma que três das principais características do amor misericordioso de Deus são a incondicionalidade, a gratuidade e a transformação. Queria que comentasse um pouco sobre isso.
Pe. Júlio: E hoje, falando de misericórdia, não podemos esquecer que é dia de Santa Faustina de Jesus Misericordioso e também dia de São Benedito, o Negro. Nós vamos percebendo essa revelação do amor de Deus em Jesus: Jesus é o Deus misericordioso; é, como disse o papa Francisco, “o rosto da misericórdia”, de um amor incondicional, de um amor de gratuidade. O amor de Deus por nós não envolve meritocracia, é isto que quero mostrar também nesse livro: Deus não nos ama porque merecemos, mas porque precisamos. Ele não olha para nosso mérito, mas para nossa necessidade. E isso é transformador, na medida em que nossa vocação, nossa vida cristã, é a resposta que damos a esse amor: somos amados para amar também. Essa é a grande transformação num momento tão tenebroso como este em que nós vivemos, de pandemia, de dor, de desespero, de desprezo às populações indígenas, aos povos ancestrais, aos quilombolas, de genocídio da juventude negra. Nunca tivemos tanto feminicídio de forma aguda, homofobia, transfobia. Então, o amor de Deus é para todos: para todos a partir dos fracos; para todos a partir dos pequenos; para todos a partir dos indesejados; para todos aqueles a quem é negada a dignidade da vida. Isso marca muito nossa vida, marca de forma transformadora, e é isso que vai fazer com que a sociedade, a comunidade e a vida em comum possam ser melhores. Aos mais fracos, o melhor; aos mais fracos, aquilo que se pode fazer. Na Casa Vida, tínhamos uma menina chamada Raíssa, e a Raíssa me chamava muito a atenção, porque me lembrava a Raïssa Maritain, mulher do Jacques Maritain, figura do século XX e uma grande convertida. E a Raíssa, além do HIV, tinha uma grande encefalopatia crônica. Não enxergava, não ouvia, não andava, e a única forma de se comunicar com ela era pela pele, com o carinho, o afago. A Raíssa ficou 42 dias na UTI do Hospital Infantil Cândido Fontoura, depois foi para o Hospital Emílio Ribas e lá faleceu. Durante esses 42 dias em que ficou na UTI, fui visitá-la diariamente. Eu ia com a irmã Leonice, que coordenava a Casa Vida: como era uma hora de visita, eu entrava na primeira meia hora e, na segunda, entrava a irmã Leonice; no outro dia, ela a visitava na primeira meia hora e eu na segunda. Eu sabia de cor quantos degraus havia naquela escada. E a Raíssa estava lá na UTI, toda monitorada, não falava, não enxergava, não andava, mas, quando chegávamos lá e tocávamos nela, o monitor cardíaco sempre disparava e apitava. As enfermeiras vinham, desligavam e diziam: “Quando vocês chegam, o monitor dispara”. Isso porque a Raíssa entendia a linguagem do amor pela pele, a única forma [possível] de expressão; ela percebia e sabia como era o toque da irmã Leonice e do meu toque na sua pele. Muita gente dizia: “Mas você investe tanto nessa menina, custa muito caro, e ela não tem futuro, não vai viver”, e eu respondia: “Não é isso que importa; importa cada momento dela, para que não tenha dor, para que não tenha sede, para que não tenha fome, para que se sinta sempre acarinhada, confortável, sem nenhum incômodo, limpa, com roupa que não lhe cause nenhum problema, bem cuidada, tendo uma sensação boa”. Assim também foi o Vítor. O Vítor também tinha encefalopatia e, além de tudo, tinha uma traqueostomia e uma colostomia, então era um menino com o qual era preciso ter muito cuidado. O Vítor tinha certa visão; a gente não sabia seu grau de acuidade, mas ele percebia nossa presença também. Foram crianças como [ele], a Mislene, a Fabiana, a Jurema, o Anderson, o Samuel, o Daniel, que marcaram muito minha vida. Todos eles estão com Deus, junto com o Renan, com a Fabíola… São muitas as crianças que passaram por nós e hoje estão com Deus; elas marcaram profundamente nossa vida. O dia em que a Fabiana faleceu, aos 7 anos, era um domingo em que a arquidiocese estava fazendo uma romaria a Aparecida. Dom Paulo, antes de ir para Aparecida, tinha que passar pela via Dutra. E ele passou na zona leste, na paróquia onde estou até hoje, São Miguel Arcanjo. Na hora em que eu estava celebrando a missa de corpo presente da Fabiana, ele, de surpresa, entrou na igreja. A igreja estava com muita gente, lotada. Quando viram o arcebispo de São Paulo entrando, todos choraram muito. Dom Paulo foi para a frente do altar e logo dei a palavra a ele, que então falou: “O grande teólogo russo Von Balthasar dizia que, se chegasse diante de Deus, faria uma pergunta para a qual ele, como grande teólogo, não tinha tido resposta: ‘Por que uma criança sofre?’” Dom Paulo disse isso ao povo e depois logo teve de sair, pois teria a romaria para Aparecida. Eu o acompanhei até a rua para ele entrar no carro, e então ele me segurou firme e disse assim: “Console esse povo, porque esse povo está sofrendo”. Ele sabia da minha dor e ainda disse: “Console esse povo”. Isso marcou muito, e essa palavra de dom Paulo ficou em meu ouvido, em minha memória: “Console esse povo”. Diante da dor, do sofrimento, que não nos afoguemos na própria dor, mas sejamos capazes de socorrer os que estão doloridos também.
O senhor deve ainda ouvir muito isso. A gente vive em uma sociedade que sempre espera algo em troca. Questionam o senhor por que investe tanto nessas crianças, já que elas não vão retribuir, não vão ter vida longa. Deve ouvir muito isso também com relação aos moradores de rua, aos viciados da Cracolândia. O senhor costuma dizer que não trabalha com os moradores de rua, mas convive com eles, porque trabalho envolve um tempo limitado, como se o senhor trabalhasse, depois fosse para casa e não vivesse mais aquilo. Mas nós sabemos que essa é sua vida.
Pe. Júlio: E a convivência é exigente, tanto que hoje eu até comentava com algumas pessoas: quem pergunta a um morador de rua o que ele está pensando, o que ele está sentindo, qual é a dor, que sofrimento ele tem? Muitas vezes eles não passam de números, de estatísticas; são casos, não pessoas; são considerados números. Então é uma situação dramática. Agora, na pandemia, aprendi muito isso, a ler o olhar deles; todos de máscara e só com os olhos visíveis. Você ler o olhar dessas pessoas, entender a dor, o sofrimento que todos eles passam… Falo isto nesses textos: que na população de rua não há anjos nem demônios; são pessoas e, como tais, são sujeitas às limitações que todas as pessoas têm. Hoje mesmo uma jornalista estava me perguntando sobre a violência contra os moradores de rua. Há também a violência da discriminação, da institucionalização de tutela, existe muita violência simbólica e que fere o corpo, mas fere psicologicamente, de maneira muito profunda. Comentei com ela que, quando afirmam que a população de rua é muito agitada, eu digo: “Vá a uma reunião de condomínio para perceber como é, na hora de fazer sorteio de vaga no estacionamento”. Sei de muitas reuniões que acabam na delegacia, e olhe que elas estão fechadas num condomínio, ao passo que a população de rua todo mundo vê. Você vê hoje a situação do centro de São Paulo: nunca nossa cidade assistiu a um processo de empobrecimento tão galopante como o de agora. Se você vê a Praça da Sé, é um acampamento, é um campo de refugiados, e a população de rua são refugiados urbanos, ninguém os quer, todos os rejeitam. Muita gente os hostiliza, muitos os destratam, olham para eles com absoluta indiferença. Isso acontece de maneira contínua. A população de rua não tem acesso garantido a água potável, a saneamento básico, a um banheiro para utilizar de maneira adequada; a alimentação que eles têm é na velocidade de quem oferece, e não a partir das necessidades deles. Nunca podem fazer escolhas, tudo é escolhido para eles, e ainda as pessoas dizem: “Para quem não tem nada, qualquer coisa está bom”.
Na pandemia, também, a gente ouvia muitos relatos: o governo, a prefeitura mandavam ficar em casa, lavar as mãos. Mas como fazer isso no caso de quem não tem casa? Foi até um dos dilemas do Arsenal da Esperança [casa de acolhimento do povo em situação de rua, fundada em 1996 por iniciativa de Ernesto Olivero e dom Luciano Mendes de Almeida]. Eles falavam: “E quem não tem casa, não tem como lavar as mãos?” Como o senhor sentiu essa situação durante a pandemia?
Pe. Júlio: Durante a pandemia, convivi diariamente com a população de rua. Durante os momentos mais agudos de fechamento, de lockdown, quando a cidade ficou praticamente fechada, nós continuamos convivendo com eles. Fazíamos a convivência na paróquia, e hoje – devido às normas [higiênicas] da pandemia, à diminuição de voluntários, de doações – nós a fazemos na comunidade São Martinho de Lima. E todos os dias estou na rua com os irmãos em situação de rua. O início da pandemia foi um momento muito difícil, de muita incerteza, de muita dúvida; não tínhamos nada no horizonte de vacinação, e todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde – que são corretas e devem ser vividas – eram todas impossíveis para os moradores de rua, como: usar máscara, trocar máscara, ter acesso a álcool em gel, lavar as mãos e ficar em casa. Como eles podiam fazer isso? Muitos deles me perguntavam: “Onde é a casa em que a gente vai ficar?” Foi realmente um tempo extremamente exigente, extremamente difícil. Então nós pensamos: Como a gente conseguiu chegar até aqui? E a pandemia ainda não acabou. Nesta semana acompanhei a inauguração da UPA, aqui na Mooca, que tem o nome de Dom Paulo Evaristo Arns; é a Unidade de Pronto Atendimento da Mooca. Acompanhei até lá um rapaz com suspeita de covid; ele estava na porta da igreja com muito tremor, e eu fui acompanhá-lo para fazer os exames e tudo o mais. Ele continua em observação. [A pandemia] foi um momento muito desafiador. Muita gente achou que ela iria mudar a sociedade, mas não mudou: quem nela entrou egoísta, saiu mais egoísta; quem entrou solidário, saiu mais solidário.
Sim, infelizmente. Nós tínhamos este sonho: a pandemia vai melhorar as pessoas. Mas, de fato, não é isso que nós temos visto por aí.
Pe. Júlio: Basta ouvir a CPI da covid, cada barbaridade. E nós vimos, durante toda a pandemia, o superfaturamento de respiradores, a falsificação de álcool em gel, uma série de situações de corrupção que aconteceram. Quantas vacinas foram perdidas, quanta medicação ineficaz foi comprada e está sem utilização. Então vivemos num momento em que é preciso muito discernimento, muita coragem, no enfrentamento de todos os desafios. Eu digo no livro e repito mais uma vez: não luto para vencer, e sim para ser fiel até o fim, porque, em grande parte das nossas lutas, sabemos que seremos derrotados. Mas não estou contando vitórias e derrotas; estou contando fidelidade até o fim naquilo em que acreditamos e naquilo que buscamos.
No livro, o senhor afirma que o critério para a vida cristã é a caridade. Como podemos combater essa fé intimista, tão ensimesmada, eu e Deus só, sem considerar a comunidade? Como podemos amar a Deus se estamos fechados em nós mesmos?
Pe. Júlio: O fechamento é a negação do amor. Não existe amor sem abertura, sem acolhimento. O amor é, como diziam os poetas e os cantores, um verbo intransitivo. Então não existe essa possibilidade – até comento na comunidade que muita gente diz: “Eu e Deus estamos muito bem, eu o amo muito, não temos problemas”. O problema é quando chega a família dele; quando chega a família: aí está o problema. Temos que ter um critério, e o critério é Jesus de Nazaré. Quando uma pessoa diz: “Todo caminho leva a Deus”, sempre pergunto: “De que Deus você está falando?” É muito interessante esse livro da Paulus do qual sempre faço propaganda, A loucura de Deus: o Cristo de João. É um livro fantástico, e [acho que] a Paulus deveria publicar toda a obra do Alberto Maggi. Mas tem esse livro que é A loucura de Deus: o Cristo de João. O que o Alberto Maggi diz logo no começo – ele é um religioso servita italiano – é: “A Deus ninguém viu”. É o que João diz lá no Evangelho, uma posição firme que ele toma. E o Alberto Maggi, que estudou muito os textos joaninos, diz: Jesus não é como Deus, porque a Deus ninguém viu; Deus é como Jesus, porque Jesus é o Deus que nós vemos. Este é nosso critério fundamental: como é que Jesus age, qual é a maneira de ser de Jesus, como é que Jesus agiu com as mulheres, como é que agiu em relação aos evitados, aos rejeitados, aos humilhados, aos abandonados.
Nosso critério de cristianismo não é um critério intimista; é, antes, um critério solidário, comunitário, é um critério de entrega de vida. Jesus nos diz no Evangelho de João: “Eu vos dei o exemplo”. E João nos diz no Evangelho: “Tendo amado os seus, amou-os até o fim” – isto é, até as últimas consequências. Então acredito que esses são nossos critérios no seguimento de Jesus. Nosso critério é aquilo que ele diz: “Ninguém tira minha vida. Eu dou a minha vida. Eu é que dou a minha vida, ninguém a tira de mim”. O critério de Jesus é o Bom Pastor. Nas parábolas da misericórdia do Evangelho de Lucas, Jesus coloca [a reflexão] de uma maneira muito provocante, quando diz: “Que vos parece? Quem é que, tendo cem ovelhas e perdendo uma, não deixa as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la?” A resposta lógica seria: ninguém. Quem é que, tendo cem e perdendo uma, vai deixar as 99 para ir atrás da que se perdeu, até encontrá-la? De fato, perder uma não seria nada diante da margem de erro, porque uma só é muito pouco. Esse amor é o amor incompreensível; é o amor do pai que acolhe o filho que tinha ido embora e o filho que rejeita o irmão. O pai que acolhe os dois, e os dois não pensam no pai; pensam em si mesmos e não tratam o pai como pai, e sim como patrão. Então o amor de Deus é um amor ilógico, muitas vezes incompreensível. Nós buscamos entender o amor de Deus dentro da lógica, e da lógica neoliberal. O amor de Deus revelado em Jesus, revelado na Palavra, é um amor completamente ilógico, desconcertante, fora do padrão, fora de toda lógica. Quando alguém disser na comunidade: “É lógico”, desconfie, porque você deve desconfiar de tudo que é muito lógico, dentro dessa lógica em que nós vivemos. Este é um grande questionamento, para todos nós,
no seguimento de Jesus: o de um amor ilógico, incompreensível, incomensurável, infinito, incondicional, de um amor que se derrama totalmente, esquecendo-se de si mesmo. O amor de Deus por nós é infinito. Por isso, amar à maneira de Deus é um grande desafio. Nós só vamos descobrir essa maneira de Deus aceitando seu amor e amando até o fim, amando sempre, de maneira incondicional. E com um amor que não é simplesmente um sentimento, mas é uma decisão, uma determinação, uma direção.
De fato, o amor de Deus nos coloca em questionamento, questiona a lógica do mundo. Uma espectadora desta live comenta que o senhor costuma dirigir-se às pessoas em situação de rua como se elas fossem Jesus, dizendo, por exemplo: “Hoje encontrei Jesus caído e com fome”.
Pe. Júlio: Levo muito a sério o que está no Evangelho de Mateus [25,31-46]. Jesus se identifica com, e personaliza, o faminto, o sedento, o abandonado, o excluído, o encarcerado, o rejeitado, o maltratado. É muito forte essa questão de você ver, na dor do irmão, a presença do próprio Senhor; as suas feridas estão nas feridas dos pobres, dos pequenos. Por isso o papa Francisco diz aquela frase que nos marcou tanto na pastoral do povo de rua: “Quem toca o corpo do pobre toca o corpo do Cristo. E quem também fere o corpo do pobre fere o corpo de Cristo”.
O senhor fala no livro sobre olhar o pobre como lugar teológico, lugar da manifestação de Deus. Por quê?
Pe. Júlio: Essa é uma grande intuição teológica presente na Bíblia. [Já] na Primeira Aliança, está bastante claro que a presença do pobre é a presença e a negação – a ausência – de Deus. Por exemplo, uma coisa que hoje me chama bastante a atenção: nunca a cidade de São Paulo teve tantas igrejas; é impressionante a quantidade de igrejas e religiões existentes aqui. Quem visitar São Paulo vai dizer: “Nossa, esta cidade é muito religiosa”. Você não anda dez ruas sem encontrar duas ou três igrejas. Do Largo da Concórdia até a Penha, você vai encontrar pelo menos umas 60 igrejas. Então, pela lógica, você poderia dizer: “Esta cidade é tão religiosa, nela você não vai encontrar pobres. Ninguém deve dormir na rua, ninguém deve passar fome, porque este povo é muito religioso; e, porque é muito religioso, deve ser muito solidário”. Só que não. Esta cidade, que tem tanta igreja, nunca teve tanta gente na rua, tantos desempregados, tanta gente sem ter o que comer e tendo que cozinhar com fogão a lenha. Então, qualquer um que hoje olhe para São Paulo vê uma cidade extremamente empobrecida: muita gente pelas ruas, muita gente que não tem o que comer e como sobreviver. E uma cidade que ostenta grandes templos e grandes aglomerados – que não deveria haver neste tempo de pandemia – de gente religiosa se reunindo para louvar a Deus sem olhar o irmão. Santo Irineu nos diz: “A glória de Deus é que o homem viva”, é que o ser humano viva. Não existe outra forma de glorificar a Deus a não ser [dignificando] a vida humana. A glória de Deus é que o homem e a mulher vivam com dignidade, que tenham alimento, que tenham água potável, que tenham teto. Como nos pede o papa Francisco: terra, trabalho e teto. Então, que tenhamos uma vida com dignidade. Isto é o amor de Deus: um amor com concretude. Não existe amor sem verificação histórica. É a mesma coisa que você dizer que ama uma pessoa e não ter o mínimo interesse por ela, o mínimo cuidado com ela. Como é que você me ama se não fala comigo, se não se interessa por mim, se não partilha nada comigo? Isso não é amor. Isso é indiferença. O amor a Deus tem uma mediação, ninguém ama a Deus diretamente. O amor a Deus passa pelo amor ao semelhante. Essa é a única forma e a única veracidade do amor. Inclusive nós temos visto na liturgia católica, nestes últimos domingos, a carta de São Tiago, que deixa muito clara essa questão da fé e das obras. Não é possível desvincular uma coisa da outra.
Jesus estava sempre com os marginalizados, com aqueles que mais necessitavam. O senhor acredita que hoje estamos vivendo uma crise de valores, não só na Igreja, mas também na sociedade?
Pe. Júlio: Essa crise sempre houve. Se você olhar, o que foi a vida de São Francisco de Assis? Quanto São Francisco foi perseguido, debochado… O que fizeram com ele? Quando São Francisco ia pedir pão nas casas de Assis, jogavam urina em cima dele. São Francisco foi tratado de maneira cruel. Se olharmos o que aconteceu com Santa Dulce… Uma pessoa doce como foi a “Dulcinha”, como diziam os baianos, a senhora dona Dulce. Quem não conhece Santa Dulce, assista ao filme Irmã Dulce dos Pobres e vai ver que ela foi posta fora da congregação por dez anos, ficou sozinha, teve que levar seus doentes, empobrecidos, para o galinheiro do convento, que se tornou esse grande Hospital Santo Antônio em Salvador. Acerca dessa crise de valores, olhe para a própria vida de Jesus, o que lhe diziam na cruz: “Se és o Filho de Deus, desce daí e vamos acreditar em ti”. Essa crise e essa luta estão sempre presentes na nossa vida, e sempre vamos ter que tomar decisões, assim como Paulo, Pedro e todos os outros no decorrer da história. Todos temos que tomar decisões, dar sentido à nossa vida, a partir do amor de Deus. Fico às vezes inculcado, na paróquia São Miguel Arcanjo, quando os que são devotos dos anjos falam mais do diabo do que do anjo e ficam mais preocupados com o diabo do que com o anjo. Gosto mais de falar do anjo do que do demônio. Há gente que gosta de falar mais do demônio do que do anjo. Não, vamos falar do anjo. Nesta cultura do ódio em que vivemos, vamos viver o amor – como diz aquela canção: “E viva o amor”. A gente fala do amor, da dignidade humana, defendendo os que estão feridos, os que estão abandonados. Na crise de valor, onde é que está o valor diante do irmão abandonado? Então, alimentar irmãos que estão na dependência química e não têm o que comer é uma forma de vivenciar o amor ilógico de Deus. O amor que não somos capazes de compreender, mas ao qual somos capazes de nos assemelhar, acolhendo esse amor até quando as pessoas falam: “Amar à maneira de Deus? Como é que vou amar à maneira de Deus?” Vamos ver ali no livro do Gênesis: o homem e a mulher são criados à imagem e semelhança de Deus. Se somos criados à semelhança de Deus, somos chamados a amar à imagem e semelhança – à maneira – de Deus. Amando a todos, não discriminando ninguém, não tendo preconceito, lutando contra todo tipo de preconceito racial, contra todo tipo de machismo, de misoginia, de homofobia, de “lgbtfobia”, não rejeitando ninguém, acolhendo a todos, as pessoas em situação de rua, os abandonados e os famintos, os mais difíceis, os enlouquecidos, os solitários, os que estão afogados no sofrimento mental. Isso é amar à maneira de Deus, amar como Deus ama. E sabe qual a maior prova do amor de Deus para cada um de nós? Somos nós mesmos. Se Deus ainda me ama, sem nenhum merecimento da minha parte, ele me ama porque necessito imensamente desse amor, e assim sou chamado a amar também. Deus não me ama para me dar privilégios, mas para que eu ame também.
Júlio Lancellotti*
*nasceu em São Paulo em 1948 e foi ordenado sacerdote em 1985. Referência nacional na defesa dos direitos humanos, dedica-se há mais de 30 anos à população marginalizada. Participou da fundação da Pastoral da Criança e da formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e tem atuado fortemente junto a menores infratores, detentos em liberdade assistida, pessoas carentes e em situação de rua, além de imigrantes, sem-teto e refugiados; em suma, junto a todos aqueles que são marginalizados. Atualmente é vigário episcopal da pastoral do povo de rua da arquidiocese de São Paulo e, há mais de 25 anos, é pároco da paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca. Entre os diversos prêmios que recebeu, destacam-se dois: Prêmio Zilda Arns, em 2021, pela defesa e promoção dos direitos da pessoa idosa, oferecido pela Câmara dos Deputados, e o Prêmio dos Direitos Humanos, em 2007, promovido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, na categoria “enfrentamento à pobreza”.