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Publicado em novembro – dezembro de 2017 - ano 58 - número 318

A espiritualidade das CEBs no mundo urbano

Por Emerson Sbardelotti

Introdução

“As comunidades imitam de perto a comunidade dos primeiros cristãos na alegria, na partilha, no serviço. Como eles, são ‘assíduas ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e à oração’ (At 2,42). Renovam a Igreja pela base e são um sinal do reino para nós, povo empobrecido da América Latina” (TEIXEIRA, 1996, p. 196).

Diante de inúmeros tipos de espiritualidade presentes nas comunidades, paróquias e dioceses, muitos agentes de pastoral, assessores, catequistas, animadores ficam sem saber qual caminho seguir ou então resistem a adaptar-se a certas linhas de espiritualidade cristã, especialmente às que nasceram em ambientes monásticos ou àquelas que são adaptadas de contextos culturais muito diferentes dos nossos.

Devido aos muitos tipos de espiritualidade que acentuam uma perspectiva individualista e carismática, muita gente a entende como cultura de valores individuais orientada para o aperfeiçoamento pessoal, para uma vida interior, na qual o que conta é a intenção do coração. Nesse contexto, a espiritualidade é compreendida como seguimento espiritualista de Jesus, caracterizado pela insensibilidade à presença e às necessidades das pessoas reais e concretas. É uma espiritualidade que não se compromete com nada, com ninguém.

Porém, na raiz da autêntica espiritualidade cristã, existe sempre uma experiência viva e dinâmica de Deus, realizada por pessoas concretas que buscaram e buscam viver a Palavra na história, num tempo e cultura bem precisos, com os pés no chão da realidade. Não são numerosos, porém são teimosos, esperançosos e fiéis ao Jesus histórico. A espiritualidade é parte constituinte do ser humano (SBARDELOTTI, 2016, p. 13).

A espiritualidade não pode ser cristã se ela não for humana e, se for humana, ela é, explicitamente ou implicitamente, cristã. […] O ser humano é um ser espiritual. Ser espiritual significa ser ‘humano’, viver o ‘humano’, viver a ‘humanidade’ sempre mais radicalmente, libertando-se de tudo aquilo que oprime e desumaniza. […] Se almejamos ser mulheres e homens espirituais, sejamos humanos, radicalmente humanos, em todos os momentos e em todas as situações da vida, mesmo e sobretudo nas situações que ainda são desumanas. (SASSATELLI, 2014, A Espiritualidade das Cebs: http://www.ihu.unisinos.br/170-noticias/noticias-2014/534571-a-espiritualidade-das-cebs.)

É nosso desejo motivar a espiritualidade que brota do projeto de vida de Jesus de Nazaré, que acolhe o pobre como lugar da manifestação de Deus. À luz do evangelho, sejamos de fato evangelizadores com espírito, como nos diz o papa Francisco: evangelizadores que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e em todo tempo e lugar, mesmo contra a corrente. Uma evangelização com espírito é uma evangelização com o Espírito Santo, já que ele é a alma da Igreja evangelizadora. Evangelizadores com espírito constituem evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força para uma ampla penetração, porque mutilam o evangelho. É preciso cultivar sempre um espaço interior que dê sentido cristão ao compromisso e à atividade (FRANCISCO, 2015, p. 147-148).

As comunidades eclesiais de base (CEBs) bebem do mesmo poço do Concílio Ecumênico Vaticano II (Roma, 1962-1965) e aqui, na América Latina e no Caribe ganham importância nas Conferências de Medellín (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979). Em 2007, recebem um novo ânimo na Conferência de Aparecida. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) dedicará às CEBs dois documentos: o primeiro, de 1982, explicando a eclesialidade das CEBs, sua dimensão sociopolítica de evangelização, a luta pela justiça, a importância dos(as) leigos(as) e porque são alvo de interesse e de incompreensão; o segundo, de 2010, reafirma e atualiza o documento de 1982 e aponta os desafios das CEBs hoje, seu percurso histórico no Brasil, a experiência dos Intereclesiais, a espiritualidade e a vivência eucarística, o anúncio da Palavra de Deus, a solidariedade e o serviço, a participação nos movimentos sociais, sua abertura ecumênica e o diálogo inter-religioso.

Em 1982, os bispos diziam que as CEBs não surgiram como produto de geração espontânea nem como fruto de mera decisão pastoral. Elas são o resultado da convergência de descobertas e conversões pastorais que implicam toda a Igreja – povo de Deus, pastores e fiéis –, na qual o Espírito opera sem cessar. Em 2010, irão dizer que as CEBs representam uma maneira de ser Igreja, de ser comunidade, de fraternidade inspirada na mais legítima e antiga tradição eclesial. Teologicamente, são uma experiência eclesial amadurecida, uma ação do Espírito Santo no horizonte das urgências de nosso tempo. Uma destas urgências é o desafio de viver a espiritualidade no seguimento de Jesus de Nazaré e de proclamar a fé, sem deixar cair a profecia no mundo urbano.

  1. Espiritualidade: viver pelo Espírito com esperança

Há vários conceitos e definições a respeito de espiritualidade, pois há várias espiritu­­a­l­i­­­­­dades. Aquela sobre a qual refletimos aqui é a espiritualidade que inspira as CEBs, uma espiritualidade “pé no chão”, uma espiritualidade libertadora.

A palavra “espiritualidade” tem sua raiz na palavra “espírito”: “Então YHWH modelou o ser humano com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o ser humano se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). “Ser vivente” corresponde ao vocábulo nefesh, que designa o ser animado por um sopro vital – manifestado também pelo “espírito” = a ruah (hebr.: sopro, vento): “Ele lhes disse de novo: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (Jo 20,21-22).

Mas o que é Espírito? Somos morada deste Espírito? Onde está centrada a nossa espiritualidade? Sim. Somos morada do Espírito. Nossa espiritualidade está centrada e fundada em Jesus de Nazaré: encarnado, vivo, crucificado, morto, ressuscitado.

Anselm Grün diz que sempre é bom refletir sobre a origem das palavras. Spiritualis (latim) é a tradução da palavra grega pneumáticos, que pode ser traduzida por “de acordo com o espírito” ou “cheio de espírito”. A palavra “espiritualidade” formou-se, pois, no contexto cristão. Em última análise, portanto, espiritualidade significa: viver do Espírito; viver da fonte que é o Espírito Santo. A espiritualidade cristã orienta-se pelo Espírito de Jesus Cristo. No desenvolvimento de uma vida espiritual, refere-se às palavras e ações de Jesus, à sua doutrina e às suas obras de redenção e libertação. É o caminho do deixar-se formar e mudar cada vez mais pelo Espírito de Jesus; é o caminho da moldagem do mundo segundo o modelo da mentalidade de Jesus. O teólogo Karl Rahner entende por espiritualidade: “viver pelo Espírito”. É sem dúvida a definição mais simples e clara. Espiritualidade significa que o Espírito Santo é a fonte da minha vida. Todavia, para eu poder viver dessa fonte, preciso primeiramente de caminhos que me levem a ela. São eles a meditação, a oração, o silêncio e a celebração dos cultos religiosos. Todas essas formas querem me pôr em contato com a fonte, que é o Espírito Santo que mana dentro de mim, mas da qual eu frequentemente também estou desligado. Pode-se dizer, pois, que a essência da espiritualidade consiste em haurir minha vida da fonte que é o Espírito Santo (GRÜN, 2008, p. 12-15).

Sempre recordo as palavras de Sua Santidade, o dalai-lama, que disse a Leonardo Boff: “Espiritualidade é aquilo que faz no ser humano uma mudança interior”. É aquilo que transforma nosso ser, leva-nos a transformar a sociedade. Se não o faz, não é espiritualidade, é espírito de porco! Entrar em contato com Deus é conhecer as suas ações no meio dos povos que compõem o seu povo escolhido.

Espiritualidade da libertação é sem dúvida a libertação da espiritualidade. Ela é um viés da espiritualidade de Jesus de Nazaré, que fez a opção radical pelos pobres, solidarizando-se com eles, amando-os em profundidade, portanto, libertando-os das prisões (religiosas, sociais, econômicas e políticas) que não os deixavam ser seres humanos. A espiritualidade da libertação se constrói a partir da leitura que se faz da realidade em períodos da história, em termos de utopia e de práxis para realizá-la. Ela é uma voz que chama a pessoa para realizar-se enquanto sujeito, mediante o compromisso firmado na transformação histórica de libertação, inspirada no projeto de Deus, manifestada nas causas de Jesus, as quais, no entardecer de nossos dias, se tornam nossas causas para o dia seguinte. Mesmo que esta espiritualidade não esteja na mídia, que não se fale nela, engana-se quem pensa que ela não supõe um diálogo profundo com a atualidade, reinterpretando a religião e produzindo insegurança e desestabilização, tornando-se uma peça de discórdia e de conflito na engrenagem do sistema neoliberal vigente. Essa hegemonia neoliberal, que também está presente na Igreja, coloca todos os ventos contrários aos que defendem o reino de Deus, entendido como opção pelos pobres.

Para o teólogo Segundo Galilea, ter uma espiritualidade da libertação significa atuar sempre sob a premissa de que a meta final é constituída pela fraternidade, pela justiça e pela reconciliação e empenhar-se em criar atitudes e valores que permitam que isso seja realmente possível. Significa criar um dinamismo no qual a morte (os conflitos, a frustração e o fracasso) adquire sentido em relação à nova vida, a um novo homem e à nova sociedade, a uma ressurreição libertadora e criadora de fraternidade (GALILEA, 1985, p. 42). Mais do que nunca, ela é urgente, necessária, imprescindível. É uma mistagogia! Mistagogia é a arte de conduzir outras pessoas à experiência do místico fundador. No caso, é a fé de Jesus de Nazaré que me faz ser cristão, que faz você ser cristão!

Sem oração, não há libertação! Sem oração, não há espiritualidade! Sem oração, não há CEBs. Se os membros das CEBs não oram, não podem tornar-se instrumentos de libertação, não podem participar do banquete.

A espiritualidade é caracterizada por:

  1. a) Alteridade – conduz à vivência da espiritualidade. Muito além das fronteiras legais de um Estado, estão os seres humanos, os “nós” e os “eles”, nos quais se tornam necessários o diálogo e a vivência da alteridade.
  2. b) A comunidade de fé – muro de contenção. A espiritualidade é a força do amor Ágape, que forma a comunidade. A comunidade se torna, então, um ponto de convergência, para onde afluem os iguais. A espiritualidade identifica-se e se fortalece com pessoas que vivem a mesma situação de vida.

A espiritualidade é a raiz profunda de nossa força. A espiritualidade é beber do próprio poço! A espiritualidade, se não estiver inserida na caminhada de libertação do povo e, ao mesmo tempo, fincada na tradição bíblica e eclesial, nada será, não terá nenhuma importância.

As fontes da espiritualidade são: a Palavra de Deus e o evangelho, a sacramentalidade da Igreja, o testemunho da Igreja e o rosto de nossas irmãs e de nossos irmãos. A espiritualidade vive da gratuidade e da disponibilidade!

A espiritualidade das CEBs, em meio aos desafios do mundo urbano, expressa-se ao redor da Palavra de Deus, no serviço aos mais necessitados e na profecia, onde anuncia as maravilhas de Deus e denuncia os abusos, a mentira e a injustiça. Essa espiritualidade oferece rica produção artística (músicas, pinturas, poesias etc.) nas e das CEBs, tornando-se instrumento de evan­ge­lização, discipulado e missão, valorizando a prática cultural e religiosa do povo.

A espiritualidade é basicamente uma teimosa esperança, uma fé ardente, um amor inflamado que vai em direção à contemplação da compaixão e do cuidado. Compaixão e cuidado não são conceitos psicológicos, mas ontológicos. Não são sentimentalismos nem assistencialismos. São, sem dúvida, dois dos grandes elementos constitutivos das grandes religiões da humanidade, são a base comum para o respeito, o diálogo e o encontro entre as religiões. Compaixão e cuidado são metáforas polissêmicas, sinônimos de solidariedade, justiça, ternura, amor. Nenhuma espiritualidade é autêntica se não se converter em compaixão e cuidado.

  1. Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus

A Igreja dos pobres está aí, mais viva do que nunca, não mais tão falada como antigamente, pois foi duramente perseguida e difamada, mas continua presente em várias lideranças que não se cansam de lutar por outro mundo novo e possível; por uma comunidade eclesial de base onde todos se conheçam, celebrem a vida, a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré e queiram seguir os passos do Mestre, dentro de sua pedagogia e prática libertadora, assumindo todos os riscos que a caminhada irá oferecer. Todos sabem muito bem que não há como fugir da cruz para obter a salvação. Não há luz sem cruz!

A Igreja, quando é perseguida, é mais profética, mais cheia de vida. Quando ela está acomodada, inerte, não cria problema nenhum para quem oprime e extermina.

A Igreja dos pobres não é uma nova Igreja, mas sim um novo modelo de Igreja, que, portanto, é chamada também de Igreja popular, Igreja que nasce do povo, Igreja no povo ou Igreja de base. É o modelo de Igreja que busca uma relação de totalidade social através do envolvimento com grupos de oprimidos e de explorados, ao mesmo tempo que procura organizar-se internamente segundo relações de serviço e fraternidade.

A caminhada das CEBs no Brasil rumo a uma experiência profunda (ontem, hoje e amanhã) do projeto de Deus e na defesa da vida teve, tem e terá momentos importantes: 1) a noção de Povo de Deus; 2) a opção pelos pobres; 3) a consolidação e refundação do método Ver-Julgar-Agir, hoje acrescido do Rever-Celebrar-Sonhar; 4) o método Paulo Freire; 5) a espiritualidade da libertação; 6). a leitura popular da Bíblia; 7) a Teologia da Libertação (TdL); 8) os(as) leigos(as) assumindo um lugar de destaque nesta nova forma de ser Igreja; 9) Igreja dos pobres e em saída; 10) a profecia. Estes momentos permitem que as CEBs sejam um sinal de vitalidade da Igreja e se refundem com o passar dos anos, aumentando as relações de reciprocidade e promovendo a solidariedade, que são a verdadeira força dos pobres e dos pequeninos.

Benedito Ferraro afirma que não encontramos, de forma explícita, a expressão “comunidades eclesiais de base” nos textos do Vaticano II. No entanto, poderemos encontrar muitos textos que manifestam o que as CEBs já vinham vivenciando no Brasil e em vários países da América Latina e Caribe. No Brasil, as CEBs nascem por volta do final da década de 1950 e início da década de 1960. Fazem a ligação da com a vida e, a partir da articulação da Palavra de Deus com a ação social e política em busca da justiça, vai surgindo “um novo modo de ser Igreja”. As CEBs nascem antes do Concílio, mas recebem um impulso maior a partir do Vaticano II e das Conferências do Episcopado Latino-americano e Caribenho, sobretudo de Medellín (1968) e Puebla (1979). Atualmente, elas recebem um ânimo novo a partir da Conferência de Aparecida (2007), como também no ministério do papa Francisco, especialmente com sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013), em que ele afirma: “Desejo uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198). As CEBs assumem que os pobres são hoje os novos sujeitos históricos e os novos sujeitos eclesiais (FERRARO, 2015, p. 91-95).

CEBs não são “pastorais” e muito menos um “movimento”. Não são apenas momentos em grupo, em equipes de serviço ou ajuntamentos frequentes dos fiéis. Não são seitas fechadas no seio da Igreja. Elas brotaram no cenário eclesial brasileiro como uma pequena flor sem defesa. Elas são um processo de grande significação que incidiu e continua incidindo profundamente sobre as estruturas da sociedade e também da Igreja, mesmo não estando mais na mídia. Esse novo modo de a Igreja ser incomodou tanto, que, a partir da década de 1990, tanto as CEBs quanto a TdL foram arrastadas para fora dos holofotes, para fora da publicidade e para fora dos debates, pois não se alinhava e não se alinha ao pensamento neoliberal, fundamentalista e de cristandade medieval que impera em setores mais reacionários da Igreja, os quais declaram que elas são invisíveis, inexistentes e que a TdL morreu, considerando-as como coisa do passado.

A CNBB afirma que as comunidades eclesiais de base constituem hoje, em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja. Em sua caminhada, a fidelidade das CEBs é constantemente posta à prova em nossa sociedade cada vez mais pluralista e profundamente marcada por conflitos. A urgência de certos problemas vitais e a tentação de soluções simplistas representam riscos aos quais as comunidades devem estar atentas (CNBB, 1999, p. 5.17.).

As CEBs são fundamentalmente estruturas de Igreja, uma forma de organizar a Igreja. São unidades eclesiais menores, mas unidades relativamente completas e autônomas, dotadas dos elementos constitutivos de uma Igreja. Elas são caracterizadas por alguns elementos estruturais: pelos círculos bíblicos ou grupos de reflexão bíblica, a partir do método da leitura popular da Bíblia; pela celebração semanal – celebração da Palavra (com distribuição da eucaristia), por pura falta de sacerdotes, dirigida por uma equipe de liturgia; pelos conselhos pastorais comunitários nos quais mulheres e homens, em forma colegiada, assumem a animação e a condução da CEB, estando todas as equipes de serviço e pastorais ali representadas; pelo compromisso sociotransformador, mediante o qual a fé é confrontada com os desafios da realidade em que as CEBs estão inseridas. Transpassando estes elementos estruturais, encontram-se a mística, a espiritualidade libertadora, centradas nas causas do reino de Deus, na opção pelos pobres e em sua dimensão profética (FERRARO; DORNELAS, 2014, p. 122-124).

Pedro A. Ribeiro de Oliveira constata que essa força local das CEBs é potencializada pelo fato de elas não ficarem isoladas, mas articularem-se em âmbito local, diocesano, regional e nacional, numa enorme rede de comunidades (MURAD; BOMBONATTO,  2012, p. 131).

O Texto-base do 14º Intereclesial das CEBs, que se realizará em Londrina, no Paraná, de 23 a 27 de janeiro de 2018, e cujo tema central é: “CEBs e os desafios do mundo urbano”, afirma que o mundo urbano é um desafio para as CEBs: ao longo de sua história, elas têm feito o possível para cumprir sua missão de tornar a sociedade mais humana, mas constatam que as cidades não são plenamente espaços de convivência saudável e pacífica entre seus habitantes.

João Batista Libanio explica que a cidade desafia o compromisso integral das CEBs, primeiro, como lugar do encontro social das pessoas nas suas relações sociopolíticas e socioeconômicas justas e injustas. A cidade tenta escondê-las, anestesia a consciência crítica, dificulta as lutas, faz perder certa garra de luta (TEXTO-BASE, 2013, p. 33).

  1. Numa sociedade globalizada e urbanizada, como viver em comunidade?

“O lugar onde devemos viver, aprofundar e celebrar a nossa fé, onde devemos confrontar a nossa vida e nossa prática com a luz da Palavra de Deus, para ver se a nossa ação política está de acordo com o Plano de Deus” (TEIXEIRA, 1996, p. 58).

A resposta a esta pergunta está no fato de, mesmo enfrentando preconceitos, discriminações e perseguições, as comunidades eclesiais de base conseguem adaptar-se às realidades em que estão inseridas. Fortalecendo sua leitura popular da Bíblia e os círculos bíblicos, oferecendo uma formação qualificada e cotidiana para as pastorais sociais, especialmente para as Pastorais da Juventude (PJ, PJE, PJMP, PJR), buscando beber das fontes da liturgia, com celebrações da Palavra espontâneas e criativas, sem perderem o foco sociopolítico e profético da mensagem de Jesus de Nazaré adaptada ao hoje da caminhada. O zelo com a memória dos(as) mártires da caminhada latino-americana e caribenha e com as músicas da caminhada as diferenciam de outras comunidades, onde impera uma espiritualidade mais individualista; ao contrário, as CEBs procuram ser Igreja discípula missionária e em saída, sua espiritualidade procura acompanhar os desafios do mundo urbano.

João Batista Libanio explica que, na origem primeira de toda cidade, está o ser humano com seu “transcendental social”. Tem em si a condição de criar cidades, porque é um ser social. Por isso, o ser humano ergue sua casa, diferenciando-se do animal. Essa casa se interligou com outras, dando origem às cidades. Nelas foi preciso criar – algo necessário ainda hoje – regras de convivência. As regras de convivência nos permitem buscar meios de sobreviver numa cidade. A cidade aproxima fisicamente as pessoas e também produz o efeito contrário. Ao invés da socialização, há o isolamento, o anonimato e o individualismo. Estabelecer relações com pessoas próximas traz uma invasão de privacidade? Eis um desafio a ser superado: conseguir um equilíbrio entre o anonimato e a invasão de privacidade num ambiente de proximidade física. A resposta está no cultivo de um espírito comunitário, e nesse ponto as CEBs podem ajudar, pois possuem um cabedal social e fraternal imenso, porque conservam a vocação de ser presença no coração da vida da cidade.

Libanio relembra que o cristianismo cresceu no meio urbano. Sofreu transformação profunda na Idade Média, com a genial instituição da paróquia rural. Firmou-se então no campo. E as cidades, sobretudo na modernidade, transformaram-se em centros arredios à prática religiosa. Vários fenômenos se somaram: modernização, industrialização, urbanização, que tiveram enorme impacto sobre a vivência religiosa. A Igreja começou a, cada vez mais, preocupar-se com a pastoral urbana. Isso se acentuou depois da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o processo acelerado de urbanização é mais recente. Ele se impõe hoje de modo inelutável. A sorte histórica do cristianismo está vinculada à cidade. A reflexão sobre a cidade levanta dois tipos diferentes de problemas. Uns atingem mais diretamente o modo de ação pastoral da Igreja. Outros vão mais fundo: atingem a própria compreensão da fé, questionando-a nela mesma, obrigando-a a reinterpretar-se e também a assumir posição crítica diante da sociedade. A cidade é atravessada pelo pluralismo religioso. Impacto forte sobre uma fé de tradição monolítica, obrigada a reinterpretar-se, sem perder, porém, sua identidade no meio esfuziante de expressões religiosas. Nada se anuncia tão vigorosamente quanto a crise da ética, com as correspondentes reações. No fundo, está a mudança rápida e radical dos valores. Trabalho e poder marcam o viver na cidade (cf. LIBANIO, 2001, p. 9-11).

O Texto-base do 14º Intereclesial das CEBs esclarece que cada cidade é única e que o mundo urbano não se limita ao espaço geográfico das cidades. E conceitua que cidade é qualquer aglomeração urbana, independentemente do número de habitantes, desde que seja sede de município. São consideradas pequenas as cidades que têm até 100 mil habitantes, médias as de 100 mil a 500 mil habitantes e grandes as cidades com mais de 500 mil habitantes. É alta a concentração populacional em grandes e médios centros urbanos: 42% da população brasileira está em apenas 2% dos municípios com mais de 250 mil habitantes. Dentre estes, destacam-se as regiões metropolitanas, formadas por um conjunto de municípios próximos entre si e socioeconomicamente integrados a uma cidade-polo. O Brasil tem 38 regiões metropolitanas, onde vive cerca de metade da população brasileira. O mundo urbano não é apenas espaço físico, é também espaço social produzido pelas pessoas que nele habitam. Se a lógica do mercado leva à segregação social, a solidariedade da população se contrapõe a essa tendência, estabelecendo encontros, mantendo a capacidade de se alegrar em meio às dificuldades, de festejar, desencadeando processos inovadores no âmbito da cultura e da ação social e política. A diversidade de experiências tipicamente urbanas aumenta conforme o tamanho das cidades (TEXTO-BASE, 2017, p. 9ss).

O papa Francisco, em relação aos desafios das culturas urbanas, diz que precisamos identificar a cidade a partir de um olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus, o qual habita nas casas, nas ruas, nas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efetuam para encontrar apoio e sentido para sua vida. Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território e das relações que diferem do estilo das populações rurais. Novas culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas em que o cristão já não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em contraste com o evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações dessas grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização. Isso requer imaginar espaços de oração e de comunhão com características inovadoras, mais atraentes e significativas para as populações urbanas. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente e suscite os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger do que para unir e integrar. A proclamação do evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo 10,10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta realidade. No entanto, viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a cidade (FRANCISCO, 2015, p. 50-52).

Posso estar sendo um sonhador, um utópico, mas, de esperança em esperança, prefiro acreditar que o futuro da Igreja seja vislumbrado como CEBs, e delas surja uma rede de comunidades comprometidas com a defesa da vida no mundo urbano. Ao invés da forma autoritária de exercer e impor o poder, a forma plena de autoridade que cresce e faz o outro crescer. Quanto mais a Igreja construir-se a partir das CEBs e de sua identidade, de suas características fundadoras, mais ela se fortalecerá diante de uma sociedade cada dia mais doente, por cada dia estar mais individualista, egoísta, fanática, fundamentalista, solitária e desprovida de sentido para viver.

Conclusão

“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos” (FRANCISCO, 2015, p. 37).

O objetivo maior deste artigo foi apresentar a espiritualidade das CEBs no mundo urbano a partir de sua originalidade, que é o esforço de compreender racionalmente a realidade social em que estão inseridas. Por isso, a crítica construtiva que é feita à sociedade não está apoiada exclusivamente em uma leitura religiosa, mesmo sendo feita a partir da Bíblia perante a realidade. Em suma: as CEBs procuram sua própria linguagem para perguntar e responder à realidade social e compreender a situação em que se encontram. Depois de um rigoroso inverno, com o desabrochar de uma nova primavera na Igreja com o papado de Francisco, as CEBs recebem um novo sopro vivificador e reafirmam sua luta por “uma nova terra e um novo céu” ou, como dizem, “um outro mundo novo, melhor e possível”! Intensificam o seu novo jeito de ser Igreja a partir da cultura do bem viver, da construção de uma sociedade mais justa, livre, solidária, democrática e participativa. Sua mística busca a realização dos direitos humanos e da ideia de uma Igreja em saída e o cuidado com a casa comum.

Sua produção artística (música, poesia, pintura, escultura etc.) – com destaque para o Movimento dos Artistas da Caminhada, MARCA, que ajuda a descobrir e incentivar tantos animadores e lideranças – é de fundamental importância para entender o compromisso dos(as) participantes das CEBs, a leitura que fazem da realidade em que vivem e sua dedicação em defesa da vida a partir do que chamam de Arte-Vida.

As CEBs estão mais vivas do que nunca e prontas para encarar inúmeros desafios, sem deixar cair a profecia, num mundo em que cresce o individualismo, o fundamentalismo religioso, o racismo e inúmeras práticas de violência. Pegam o trem da história e, por onde passam, semeiam paz, justiça, amor e fraternidade. São chamadas a testemunhar a sua fé em Jesus de Nazaré – o Crucificado-Ressuscitado, o Mártir primeiro. E cumprem o que lhes pede o papa Francisco: “Não deixemos que nos roubem a comunidade!” (EG 92).

Bibliografia

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SASSATELLI, Marcos. A Espiritualidade das Cebs: http://www.ihu.unisinos.br/170-noticias/noticias-2014/534571-a-espiritualidade-das-cebs. Acesso em 3 de maio de 2017.

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Emerson Sbardelotti

Emerson Sbardelotti é mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Agente de pastoral leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, em Cobilândia, Vila Velha, Espírito Santo. Catequista de crisma na CEB Nossa Senhora do Magnificat, em Jardim Marilândia, Vila Velha, Espírito Santo. Autor de Espiritualidade da libertação juvenil. São Leopoldo: CEBI, 2015. E-mail: [email protected]