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Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 28-34

A esperança que nasce num vale de ossos secos Ezequiel 37

Por Luiz Alexandre Solano Rossi* e Érica Daiane Mauri**

A leitura do livro de Ezequiel é, no mínimo, surpreendente. Um profeta com extrema sensibilidade ao projeto de Deus e, ao mesmo tempo, profunda sensibilidade pelas dores e destino de seu povo. O capítulo 37 é prova incontestável de sua sensibilidade. Tomado pela visão divina, ele vê além da aparência e, por isso, além da imobilidade e do silêncio provocado pela morte; ele vê a esperança semeada pelo Espírito e o som da vida substituindo o silêncio da morte.

 

Introdução

O capítulo 37 do livro do profeta Ezequiel é fascinante! Por meio de visões, Deus comunica ao profeta suas palavras e ações, e a imagem que se desvela aos olhos de Ezequiel é inquietante. À primeira vista, a visão pode parecer assustadora. O texto bíblico nos leva até um vale. Contudo, a paisagem não é agradável aos olhos; não há sinal do verde das plantas, do canto dos pássaros nem do colorido das flores. O ambiente parece reduzido à ausência de vida. Impera o silêncio e a morte! Desespero e desolação se apresentam de forma absoluta, enquanto qualquer possibilidade de esperança é desfeita. Esses são os contornos do vale – do vale da sombra da morte. O que, porém, se vê no vale? “A mão de Javé pousou sobre mim e o espírito de Javé me levou e me deixou num vale cheio de ossos” (v. 1).

O profeta é convidado a andar por entre os ossos a fim de confirmar que não há o menor indício de vida. Eram muitos os ossos e estavam extremamente secos. O que representavam? A visão é aplicada exclusivamente aos exilados na Babilônia. O povo de Israel é comparado a cadáveres em sepulcros, situação que não permitiria vislumbrar nenhuma possibilidade de esperança (v. 11b). Todavia, há diferentes modos de ver a vida: na perspectiva dos olhos e do projeto de Deus ou na perspectiva dos olhares demasiadamente humanos que se afastam de Deus. Contra a desconfiança dos deportados, que pensam já estarem destinados ao túmulo, Deus lhes assegura que fará o milagre da restauração: pelo poder do seu espírito, a vida será maior do que a morte e, vivos, retornarão à terra natal. Então, todos reconhecerão que é tudo obra de Deus e de mais ninguém (v. 13-14).

1. A visão

Em Ezequiel 37,1-14 lemos:

1A mão de Javé pousou sobre mim, e o espírito de Javé me levou e me deixou num vale cheio de ossos. 2E o espírito me fez circular em torno deles, por todos os lados. Notei que havia grande quantidade de ossos espalhados pelo vale e que estavam todos secos. 3Então Javé me disse: “Filho do homem, será que esses ossos poderão reviver?” Eu respondi: “Meu Senhor Javé, és tu que sabes”. 4Então ele me disse: “Profetize, dizendo: Ossos secos, ouçam a palavra de Javé! 5Assim diz o Senhor Javé a esses ossos: Vou infundir um espírito, e vocês reviverão. 6Vou cobrir vocês de nervos, vou fazer com que vocês criem carne e se revistam de pele. Em seguida, infundirei o meu espírito, e vocês reviverão. Então vocês ficarão sabendo que eu sou Javé”. 7Profetizei de acordo com a ordem que havia recebido. Enquanto eu estava profetizando, ouvi um barulho e vi um movimento entre os ossos, que começaram a se aproximar um do outro, cada um com o seu correspondente. 8Observando bem, vi que apareciam nervos, que iam sendo cobertos de carne e que a pele os recobria; mas não havia espírito neles. 9Então Javé acrescentou: “Profetize ao espírito, filho do homem, profetize e diga: Assim diz o Senhor Javé: Espírito, venha dos quatro ventos e sopre nestes cadáveres, para que revivam”. 10Profetizei conforme ele havia mandado. O espírito penetrou neles, e reviveram, colocando-se de pé. Era um exército imenso. 11Em seguida, Javé me disse: “Filho do homem, esses ossos são toda a casa de Israel. Eles dizem: ‘Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós, tudo acabou’. 12Pois bem! Profetize e diga: Assim diz o Senhor Javé: Vou abrir seus túmulos, tirar vocês de seus túmulos, povo meu, e vou levá-los para a terra de Israel. 13Povo meu, vocês ficarão sabendo que eu sou Javé, quando eu abrir seus túmulos, e de seus túmulos eu tirar vocês. 14Colocarei em vocês o meu espírito, e vocês reviverão. Eu os colocarei em sua própria terra, e vocês ficarão sabendo que eu, Javé, digo e faço – oráculo de Javé”.

A estrutura desse oráculo se apresenta de maneira muito clara: trata-se de uma visão (v. 1-11) que se converte em parábola (v. 12-14) ao ser apresentada como resposta a um lamento do povo (v. 11). Os versículos iniciais deixam evidente, de imediato, o protagonismo de Deus em todo o desenvolvimento da cena: “a mão de Javé pousou sobre mim, […] me levou e me deixou […] me fez circular” (v. 1-2). Deus é o executor de tudo o que será apresentado ao profeta e se consumará na vida do seu povo. Há tempos a casa de Israel compreende que seu Deus não é um Deus da indiferença e da inércia, mas é aquele que age na história, que caminha com eles, que os liberta e os conduz (Ex 19,4).

O profeta se comporta por vezes como um espectador, observando o que se passa ante seus olhos, e, em outros momentos, cumpre as ordens expressas por Deus. No início da visão, cabe a Ezequiel, por ora, a corajosa missão de encarar sua realidade e “notá-la” (v. 2b) em todas as suas nuances e complexidades, por mais tenebrosa que se apresente. Diante da realidade contemplada por Ezequiel – uma realidade de exílio, sofrimento, desesperanças e incertezas –, resta uma fagulha que ilumina os olhos e nutre o coração: a fé. Esta se expressa na certeza de que Deus conduz a história e é o único a conhecer como a realidade marcada pela morte se desenvolverá ao longo do tempo: “Meu Senhor Javé, és tu que sabes” (v. 3).

Parece estranho que o profeta se dirija a um aglomerado de “ossos secos”, anunciando a Palavra de Deus (v. 4); afinal, a Palavra deveria ser destinada aos viventes, ao povo: “Escute, Israel!” (Dt 6,4). Porém, o próprio autor esclarece a analogia entre a “casa de Israel” e os “ossos secos” no v. 11. Os receptores da Palavra e destinatários da missão profética de Ezequiel ainda são o povo eleito, mesmo que sua atual condição seja de um povo inerte e sem vida.

A imagem dos ossos secos e dos túmulos representa a condição de um povo morto, sem espírito, sem sentido e sem finalidade de vida. Ezequiel é um profeta que exerce sua atividade em meio ao exílio da Babilônia, uma época de dor e sofrimento. Afinal, tudo quanto era importante e significativo, que assegurava a própria identidade do povo de Deus, deixara de existir. O poderoso exército da Babilônia, liderado por Nabucodonosor, invadiu e destruiu a cidade e o templo de Jerusalém (586 a.C.). Pensava-se, naquela época, que a cidade de Jerusalém e o templo eram invioláveis, porque Deus se fazia presente. As certezas do povo desmoronaram e, em terra estranha, exilado, “à beira dos rios da Babilônia, aí nos sentamos e choramos” (Sl 137,1). Se a dor estava presente no cotidiano do povo, Ezequiel, nessa belíssima visão, mostra que Javé também se encontrava presente em meio ao drama vivido por ele. Deus não se emudece, não é indiferente ao sofrimento, mas segue oferecendo sua Palavra, seu alento (espírito).

Os v. 5-6 apresentam o que Ezequiel deveria anunciar e os v. 7-10 descrevem a execução do mandato divino. À medida que Ezequiel pronuncia as palavras que havia recebido, a ação é executada instantaneamente (v. 7b): palavra proferida = ação concebida. Nessa passagem, temos uma menção à imagem do primeiro relato da criação em Gênesis 1, em que a Palavra é criadora, consuma o que ela anuncia. A Palavra de Deus, portanto, é a geradora e mantenedora da vida.

É interessante perceber o desenvolvimento processual do relato em etapas subsequentes, oferecendo um ritmo crescente e positivo: primeiro os ossos se ajuntando, depois os nervos, a carne, a pele e, finalmente, o espírito (a vida). O relato leva o ouvinte a recordar um evento recente que se desenvolveu igualmente em etapas, porém de modo descendente e negativo: a queda de Jerusalém e a destruição do templo. Seguindo os eventos históricos que se agravavam em intensidade e terror, temos: o primeiro cerco a Jerusalém pelo Império Babilônico e a deportação do rei Joaquim com grupos de pessoas importantes da capital (597 a.C.); o novo cerco a Jerusalém pelo período de um ano e meio; a rendição da capital; o novo grupo de deportados; saque, destruição e incêndio do templo e da cidade de Jerusalém (586 a.C.). A gradualidade desses eventos resultou no que Ezequiel agora contempla: um povo sem esperança, ressequido pela trágica realidade, um cenário de morte. Se o Império Babilônico produziu um escalonamento de fatos que resultaram na ausência de vida para a casa de Israel, de modo diretamente inverso, a Palavra do Senhor, anunciada por Ezequiel, levará processualmente à vida.

O relato segue afirmando que Javé é o Deus da vida. Após os elementos biológicos estarem reconstituídos – ossos, nervos, carne e pele –, é necessária a infusão do elemento vivificante, a ruah (espírito, sopro, vento). O espírito vivificador (v. 9) provém dos quatro pontos cardeais, expressando sua plenitude (Is 11,2). A formação do ser vivente em duas etapas – formação do corpo biológico e vivificação desse corpo – relembra a narrativa da criação do adam (humano) contida em Gênesis 2, na qual, após o Senhor ter modelado o humano do ‘adama (pó do solo), infunde em suas narinas o sopro vivificante (ruah), tornando-o um ser vivente. Esses elementos fazem-nos pensar que o que Ezequiel contempla é, de fato, uma nova criação. Deus faz novo o seu povo, recria o que havia sido dizimado.

Nesse aspecto, a mensagem de esperança apresentada pelo profeta, a qual compreende a renovação (nova criação) do povo, passa por diversas etapas: 1) a restauração de cada indivíduo, ao afirmar que o Senhor restauraria a cada um, oferecendo um novo coração (Ez 36); 2) a restauração do povo, reerguendo do “vale dos ossos secos” um “exército imenso” (Ez 37); 3) por último, a restauração da terra, com uma nova cidade, um novo templo, que nutre e organiza a vida (Ez 40-48).

2. A esperança que germina em meio à dor

Todo o capítulo 37 possibilita refletir que a esperança está germinando em meio ao sofrimento. Se a esperança parecia escapar por entre os dedos e o desânimo não proporcionava saída, o Espírito de Deus soprava, restaurando todos aqueles que o exílio fatalmente havia atingido. Deve-se salientar que a ação é do próprio Javé. Ele é o protagonista da salvação. Um Deus que está plenamente vivo e ativo para restaurar a vida e a esperança de seu povo. Por duas vezes, lemos a importante expressão “povo meu” (v. 12.13). Se o povo, anteriormente, quando da destruição de Jerusalém, pensava que havia sido abandonado por Deus, a expressão demonstra a relação de afeto e de pertença do povo em relação a Deus. Daí advêm as múltiplas promessas (v. 12): “vou abrir”, “tirar vocês”, “levá-los”, “colocar meu espírito”, “colocarei em sua própria terra”, a fim de que o povo saiba que ele é Javé.

A ação de Javé possui objetivos históricos e visíveis: o retorno do exílio! “O espírito penetrou neles, e reviveram, colocando-se de pé. Era um exército imenso” (v. 10). A palavra profética e o espírito estão juntos nesse projeto de libertar e reconstruir o povo de Deus. Dois momentos sobressaem: a palavra profética responde pela organização/recomposição do povo, e ao espírito cabe a função de revitalizar sua espiritualidade. Dessa forma, a promessa de salvação pode se tornar realidade. O espírito é a instância que cria a mediação pela via da profecia. O profeta entende a ressurreição desses ossos como nova criação. O grande ruído que se ouve dá início a nova possibilidade de vida. A experiência da ressurreição (assim descrita nos v. 11-14) é trabalhada por meio do verbo “fazer subir”, expressão emprestada de outros contextos bíblicos para evidenciar a saída do Egito (cf. 1Sm 12,6; Dt 26,8; Os 12,14). Afinal, o povo dos tempos exílicos não passava de um vale cheio de ossos.

Conclusão

Diante de um ambiente de extermínio, morte e desfalecimento, é proposto um projeto de descontinuidade. Ou seja, a nova criação não será simplesmente um melhoramento progressivo do que já existe; ao contrário, a velha criação, bem como o coração de pedra (36,26), dará lugar a realidades completamente novas: uma nova criação e um coração de carne. Não se trata, portanto, de um projeto de continuidade, mas sim de ruptura!

A imaginação profética de Ezequiel cria uma imagem impensável: os ossos escutam as mesmas palavras proféticas que os vivos não escutavam e obedecem a elas. Mencionados oito vezes, eles simbolizam os mortos, o passado marcado pela tragédia, e se referem àquilo que nega a vida, aquilo que se corrompe dia após dia para terminar em pó; os ossos não são nada, pois com base neles não é possível construir comunidade. De sua parte, o Espírito de Deus – que também aparece outras tantas vezes – é a força vital que aponta para o futuro, potencializa a recriação da realidade e da vida e, com isso, põe ordem no caos. Contudo, a maestria do relato faz que as duas realidades não se oponham, mas se cruzem quando, sob o comando do profeta, os ossos que estão mortos ganham vida a partir do momento em que o espírito neles se encarna.

Ezequiel, num movimento de vaivém, é um mestre no uso de imagens: o mesmo espírito que o havia colocado em pé, no relato de sua vocação, agora é responsável por colocar em pé uma multidão que estava reduzida a ossos. Espírito que se encontra tanto em relação com o indivíduo quanto em relação com a comunidade. Espírito que revitaliza tanto um quanto o outro. Nessa dinâmica é possível encontrar a esperança em meio aos dramas da vida, ou seja, em meio aos vales de ossos ressequidos do cotidiano.

Referências bibliográficas

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Luiz Alexandre Solano Rossi* e Érica Daiane Mauri**

*é leigo, doutor em Ciências da Religião (Umesp). Professor no mestrado e doutorado em Teologia da PUC/PR e na Uninter (Centro Universitário Internacional).
**é leiga, mestra e doutora em Teologia pela PUC/PR. Coordenadora de cursos de especialização do Insech.