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Publicado em novembro-dezembro de 2024 - ano 65 - número 360 - pp. 14-17

A dignidade batismal: da societas perfecta ao povo de Deus

Por Simona Segoloni*; Tradução de Darlei Zanon**

A escolha de passar de uma eclesiologia centrada na societas perfecta para uma centrada no povo de Deus
é um dos mais fortes elementos de descontinuidade entre o Concílio e a eclesiologia anterior.

1. Societas perfecta

O termo societas é de natureza sociológica e indica o conjunto de indivíduos e/ou sujeitos coletivos “unidos por relações de vários tipos, entre as quais se estabelecem formas de cooperação, colaboração e divisão de tarefas, que garantem a sobrevivência e a reprodução do próprio conjunto e dos seus membros” (Dicionário Treccani). Já a partir dessa descrição surge uma dúvida sobre a possibilidade de aplicar essa categoria à Igreja, uma vez que a sociedade é caracterizada pelo objetivo de autopreservação, enquanto o dinamismo eclesial específico, desde seu início, tende à extroversão, pois a Igreja nasce do anúncio do Evangelho e existe para ele e, além disso, está destinada a dissolver-se no Reino.

Compreendemos, então, o porquê de essa categoria ganhar destaque num momento em que a evangelização não está no centro da consciência eclesial, mas sim o sonho de reafirmar a singularidade e a superioridade da sociedade eclesial em relação a todas as outras. A Igreja, de fato, é pensada como uma societas a partir da Contrarreforma, com o objetivo de sublinhar seu caráter sobrenatural enquanto fundada por Cristo, que delegaria depois sua autoridade aos apóstolos. Essa abordagem marca fortemente a autoridade, diretamente ligada a Deus. Além disso, tal sociedade é considerada perfeita, porque possui estruturalmente tudo o que precisa para atingir seu objetivo e não é afetada pelas relações com o mundo e com os outros.

O teólogo que utiliza com maior clareza a categoria de societas é Belarmino. Sua intenção era destacar a visibilidade da Igreja diante de uma reforma protestante que insistia antes na dimensão mistérica e invisível da Igreja. Essa intenção, no entanto, é problemática, pois “a Igreja corre o risco de se apresentar mais como pessoa jurídica guiada pela hierarquia do que como organismo de discípulos de Cristo animado pelo Espírito: uma societas perfecta, que tem tudo o que é necessário para alcançar os fins de que necessita” (Erio Castellucci).

Com os mesmos termos também se fala da Igreja no século XIX, desenvolvendo a ideia de uma societas não apenas perfeita, mas também desigual e hierárquica. Entre o Concílio Vaticano I e o Vaticano II, insistiu-se
várias vezes na desigualdade estrutural entre os fiéis, propondo-a como elemento de identidade da própria Igreja.

2. Povo de Deus

A categoria de povo de Deus, escolhida pelos padres conciliares como base da sua eclesiologia, propõe uma Igreja que não se apoia na autoridade transmitida pelo fundador aos “hierarcas”, mas se abre a uma Igreja de iguais, porque a fundamental pertença de todos à Igreja, com base na qual é possível declinar toda diversidade sem perder a radical igualdade, é dada pelo batismo.

O próprio fato de o Concílio optar por estender os três múnus (sacerdócio, profecia e realeza) de Cristo a todo o povo e, depois, especificamente aos cristãos leigos, enquanto anteriormente eram relacionados apenas aos ministros ordenados, permite-nos dizer que a autoridade de Cristo, sua exousia, que se expressa precisamente nos três múnus mencionados acima, é transmitida a cada fiel com o batismo e ao povo no seu conjunto, o qual, por isso, é chamado de messiânico, isto é, ungido, como acontecia com sacerdotes, reis e profetas.

A estrutura hierárquica da sociedade desmorona não porque já não existam ministros ou porque estes já não possuem a potestas própria deles, mas sim porque essa potestas é dada para fazer viver todo o povo, de quem os ministros ordenados estão a serviço. Além disso, a doutrina dos três múnus abre a possibilidade de reconhecimento das potestates alicerçadas no batismo. Portanto, abre as portas a uma Igreja de relações assimétricas, na qual não são sempre as mesmas pessoas que estão em posição superior, mas se alternam e ocupam diferentes posições em função da situação e das diferentes potestates que ela exige sejam exercidas.

Outro aspecto fundamental da categoria de povo é que a Igreja já não é pensada como autônoma e autorreferencial, intocável pela história e pelas relações com os outros, mas antes como sujeito histórico que caminha entre todos os seres humanos e se mistura com eles. O povo de crentes põe suas raízes entre todos os outros povos, une-se a eles e, ao mesmo tempo, alimenta-se das suas riquezas. Não só não é um povo autorreferencial, porquanto é enviado aos outros, mas também não é um povo indiferente às relações que estabelece.

Pelo contrário, a Igreja é nutrida pelos encontros, pelos sinais dos tempos atuantes nas sociedades humanas e pelas relações que cria, porque “ninguém se salva sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe” (EG 113). Essas palavras que o papa Francisco usa para a Igreja, descrita como rede de relações que salva, aplicam-se também às relações entre a Igreja e os povos entre os quais ela vive.

3. Raízes e frutos

O que tornou possível a passagem da societas perfecta ao povo de Deus? A consciência da Igreja foi provocada a mudar quando começou a considerar a condição dos cristãos leigos como propriamente eclesial. Tomando consciência da dignidade batismal e da plenitude da participação eclesial de todos os fiéis, a Igreja foi obrigada a se repensar.

Encontramos vestígios desse repensar no processo conciliar. De fato, o segundo capítulo, sobre o povo de Deus, é fruto da extrapolação e reelaboração do capítulo sobre os cristãos leigos. Parte do que era dito sobre os cristãos leigos foi reconhecido como verdade para toda a Igreja. E isso permitiu abandonar a ideia de uma sociedade desigual para abraçar aquela de povo messiânico que tem como cabeça Cristo, como condição a dignidade dos filhos de Deus, como lei o amor e como fim o Reino. São assim representados os elementos clássicos da societas (liderança, condição, lei, fim…), mas completamente transfigurados.

Qual é o fruto dessa mudança tão corajosa? Acredito que ele possa ser colhido, em primeiro lugar, na possibilidade de a Igreja mostrar que é sinal e instrumento da comunhão que Deus quer estreitar com os seres humanos e com a qual une os seres humanos entre si (cf. LG 1). Se a marca das relações eclesiais é a fraternidade (e a irmandade) entre os fiéis e para com todos, a sociedade desigual não tem utilidade nenhuma e pode até se tornar motivo de escândalo. Ao contrário, um povo de iguais, irmãos e irmãs, pode confirmar com força que o Evangelho é verdadeiro e é para todos.

Simona Segoloni*; Tradução de Darlei Zanon**

*é uma teóloga italiana.
**assessor editorial da PAULUS
(Publicado originalmente em abril de 2024 na Vita Pastorale, Itália)