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Publicado em novembro-dezembro de 2023 - ano 64 - número 354 - pp.: 28-35

A beleza da arte sacra

Por Marcos Oliva*

O artigo trata da beleza da arte sacra, em contraponto à beleza evidenciada pela estética. Fala das características de transformação e transcendência que essa beleza sacra possui, baseada no mistério da revelação de Cristo como bem, verdade e beleza para todos os que o receberem.

Introdução

Indo para meu trabalho, numa manhã fria de inverno, vi uma senhora a regar as flores do jardim frontal de um templo. Aquilo tocou tanto meu coração, que me fez parar e pedir à senhora permissão para fotografar aquele momento. Tempos depois, em uma reunião de um grupo de pesquisa em arte sacra, ouvi a frase: “Uma senhora regando um jardim é beleza” e imediatamente fui trasladado, em minha mente e em meu espírito, direto ao local da cena em que a senhora regava o jardim do templo; percebi que aquilo que me tocara naquele dia e me fizera parar o trajeto, interrompendo a rotina, se chamava Beleza.

Roger Scruton, filósofo e crítico cultural inglês, em seu livro Beleza, inicia o capítulo “A beleza cotidiana” da seguinte forma: “O melhor lugar para dar início à exploração da beleza cotidiana é o jardim, onde o ócio, o aprendizado e a beleza se unem numa libertadora experiência de familiaridade” (SCRUTON, 2015, p. 89). A beleza da arte sacra evoca algo muito maior que o simples prazer estético. Faz uso da estética, visto que por ela é expressa, seja na plástica das cores, do movimento ou do som, mas não a tem como objetivo final. Muito diferente da beleza clássica antropocêntrica, em que a forma define o conceito do belo e do perfeito baseado na capacidade humana, o belo da sacralidade transpõe essas barreiras físicas e se funda no gesto de fazer o ser humano transcender seu estado natural, em vista de seu estado espiritual; toma-o desta terra, tirando-o do plano físico e levando-o ao plano espiritual, de volta ao conceito original do Éden, que evoca a Deus como centro de toda a criação, na sua plena vontade de relacionar-se com o ser humano e encontrá-lo, todo fim de tarde, para conversar. É dessa beleza que trato aqui. Para tanto, porém, faz-se necessário tecer breve visão da beleza clássica grega, para, então, diferenciá-la da beleza da arte sacra.

1. A beleza da arte clássica grega

Quando o cristianismo surgiu, grande parte do mundo estava dominada, politicamente, pelo Império Romano e era influenciada pela filosofia grega; é o que chamamos de mundo greco-romano. O pensamento e a arte grega expressavam o antropocentrismo, que situava o ser humano no centro de tudo, pondo a capacidade humana em evidência: a ideia, o desenvolvimento da individualidade humana, os sentimentos, tais como raiva, ira, alegria, paixões, desejos etc. Disso se originaram os mitos de deuses e semideuses, que refletiam as vontades humanas. A simetria das formas, a proporção e o equilíbrio eram elementos trabalhados com o objetivo de atingir a harmonia visual e construir o corpo perfeito, seja com os músculos do masculino, seja com as curvas do feminino, para expressar a perfeição do ser humano desde sua capacidade intelectual até seu exterior.

2. Teocentrismo

O cristianismo traz uma visão de beleza completamente diferente. O ser humano já não é o centro do universo; ele é pó, feito de barro. Deixa de olhar para si para olhar para Deus. Trata-se de perspectiva nova, segundo a qual Deus está no centro de tudo, como criador e provedor de todas as coisas. A condição humana, vista dessa forma, fica esclarecida ao vermos a indagação a Deus por parte de Jó, diante de sua terrível situação, acometido de um flagelo mortal incurável, doença que lhe corroía a carne e a pele: “Que é o homem para que lhe dê importância e atenção?” (Jó 7,17). Davi declara Deus criador do universo e o põe acima de tudo e de todos: “Quando contemplo os teus céus, obra das tuas mãos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: que é o homem, para que com ele te importes?” (Sl 8,3-4).

3. A verdade, o bem e a beleza

 É a revelação da verdade que transforma o ser humano no seu interior, e essa transformação se expande para todos os seus atos e formas de se expressar no mundo, entre as quais a arte. O mistério ocorre de dentro para fora.

Segundo o artista plástico sacro contemporâneo Marko Ivan Rupnik, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, existe uma tríade formada pela verdade, pelo bem e pela beleza. Esses elementos são temas de discussão desde a Grécia de Platão, mas a religião cristã ressignifica-os: quando uma pessoa recebe a verdade, tem o bem gerado em si, e, para que esse bem seja pleno, é necessário haver beleza. Essa tríade é intrínseca, ou seja, nenhum dos seus componentes pode ser separado. Não existe beleza se a verdade não for revelada ao ser humano e esta não gerar nele a crença que resulte no bem, pois a beleza é justamente a manifestação exterior desse bem concedido ao humano por meio da revelação da verdade. “A beleza faz coroar, como uma auréola de inapreensível esplendor, a estrela da verdade e do bem e sua indissociável união” (BALTAZAR apud TOMMASO, 2017, p. 185).

Essa verdade é a salvação em Cristo. Não há mistério sem ele, “porque dele, por ele e para ele são todas as coisas” (Rm 11,36). Se não for por ele, nada acontece. Ele é “o caminho, a verdade e a vida”, o único pelo qual se chega ao Pai (Jo 14,6). Quando Cristo, a verdade, é revelado a alguém, o milagre acontece. Sua transfiguração no monte Tabor mostrou a Pedro, Tiago e João um Deus Pai que eles não conheciam. O Reino dos Céus foi-lhes aberto para que pudessem ver “aquilo que os olhos não viram nem os ouvidos ouviram, nem jamais penetrou o coração humano, […] o que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1Cor 2,9). Ao verem o Filho, puderam contemplar o Pai e as inefáveis coisas que aguardam os fiéis na Jerusalém celeste: “Quem vê a mim, vê ao Pai” (Jo 14,9). Uma porta se lhes abriu por meio da revelação da verdade e, por meio dessa porta, eles adentraram os mais profundos lugares celestiais.

Ora, se as coisas reveladas ao ser humano por meio dessa verdade são tão maravilhosas a ponto de serem inefáveis, inaudíveis e indescritíveis, não podem, portanto, ser retratadas por meio da representação naturalista, com a busca da perfeição das formas do corpo humano. “O homem natural não pode discernir as coisas espirituais, mas o homem espiritual a tudo discerne e por ninguém é discernido” (1Cor 2,14-16). Uma arte naturalista não alcança o indizível. Coisas materiais se explicam com coisas materiais, mas as espirituais se revelam pelas espirituais. “O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do Espírito é espírito” (Jo 3,6). Quando Nicodemos, mestre fariseu judeu, foi encontrar com Jesus à noite para aprender sobre os mistérios dos céus, Jesus começou a explicar-lhe a necessidade de nascer de novo e morrer para as coisas deste mundo, a fim de viver desde já, aqui na terra, as coisas do Eschaton, as coisas que estão por vir, isto é, a nova vida em Cristo. Nicodemos, todavia, nada entendeu; a reação de Jesus diante da incompreensão foi a pergunta: “Você é mestre em Israel e não conhece essas coisas? […] Eu lhes falei de coisas terrenas e vocês não creram; como crerão, se lhes falar de coisas celestiais?” (Jo 3,10-12).

A resposta a essa pergunta está na continuação do trecho da primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios: “Porque quem conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo” (1Cor 2,16). Por esse motivo, Rupnik diz que “a arte cristã começou nas catacumbas, no subsolo, lugar da morte, na contramão da arte clássica greco-romana da época, abandonando completamente a ideia de perfeição” (TOMMASO, 2019, p. 3). O filósofo russo Nicolas Berdiaev, cujos pensamentos de distanciamento da arte clássica grega pela arte sacra cristã são diretrizes para o artista Rupnik, acredita que “nada de verdadeiramente clássico e perfeitamente completo e realizado sobre a terra é possível no mundo cristão” (TOMMASO, 2019, p. 3).

Após a revelação da verdade, que gera em nós o bem, somos chamados para uma transformação, e aí está inserida a beleza. Ela é o reconhecimento externo e a manifestação do bem gerado em nós quando recebemos essa verdade em forma de graça, Jesus. O papa São João Paulo II disse: “a beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro” (JOÃO PAULO II, 1999, p. 13). Se a verdade em nós revelada gera o bem e esse bem não atinge a expressão da beleza, tornamo-nos vazios, pois

ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria” (1Cor 13,1).

De que me valeria ter a experiência da transcendência e conhecer todos os mistérios inefáveis, se esse conhecimento não gerasse em mim uma mudança que transformasse primeiro a mim e depois aos que estão ao meu redor? É necessário que esse bem existente dentro de mim se torne beleza, pois, como disse o pensador russo Vladimir Solov’ev: “O bem que não se torna beleza se torna um fanatismo, destrói o homem, é um monstro. Em nome da verdade foram cortadas muitas cabeças, com a bandeira de ideia humanista, a época moderna assassinou milhões de pessoas” (TOMMASO, 2019, p. 6). Portanto, é preciso que esse conhecimento do novo de Deus ocasione em mim uma libertação, por meio da qual viverei o novo nascimento dado a todos os que creram. “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Para Berdiaev, essa libertação é justamente a vida de Cristo em nós:

Para ele [Berdiaev] a liberdade, que nada mais é que o espírito, é o imperativo por excelência da humanidade. O homem que está condenado, por sua natureza, que se pode qualificar, indiferentemente para ele, de livre, espiritual ou ainda pessoal, a ser divino-humano, na medida onde o espírito – ou a liberdade – é a imagem do Deus no homem. E o ser teândrico, esse homem semelhante a Deus, é a pessoa (Berdiaev apud TOMMASO, 2019, p. 3).

Uma vez que a mim foi revelada a verdade, tenho essa liberdade “e agora não vivo mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20). Ele está em mim, o que me define como um ser teândrico, aquele que é simultaneamente divino e humano, e esse é o modo pelo qual Deus é manifestado por meio da humanidade. Quando a Virgem Maria, já tendo concebido em seu ventre o Filho de Deus por obra e graça do Espírito Santo, foi visitar sua prima Isabel, que também estava gestante por um milagre divino, a cumprimentou; a criança que estava no ventre de Isabel, João Batista, agitou-se assim que Isabel ouviu a saudação da Virgem que carregava Jesus. Isabel encheu-se do Espírito Santo, a ponto de testificar sobre Maria: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (Lc 1,42). Isso é beleza! É esse fruto dentro do ventre de Maria a transformação que, gerando o bem em nós, manifesta algo ao mundo. Maria, de tão feliz, salmodiou ao Senhor, pois quem estava dentro dela gerou mudança – primeiro nela e, depois, nos que estavam perto. A beleza exprime às pessoas que estão ao redor o bem que há dentro de nós. Maria não estava vazia, “como um sino que tine”, pois dentro dela havia amor. Cristo é esse Amor e essa Beleza.

Considerações finais

O papa São Paulo VI falou aos artistas, por ocasião do Concílio Vaticano II, em 1965:

A beleza como a verdade é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos. […] Recordai-vos que vós sois os guardiões da beleza do mundo” (apud TOMMASO, 2017, p. 185).

A beleza do Evangelho e da arte que o expressa é Cristo. E se a beleza é Cristo, então essa beleza é pascal, porque ele veio como um menino, mas cresceu e sofreu a morte, e morte de cruz. Tal morte nos causa vida e, por esta nova vida que vivemos, nós compartilhamos essa beleza pascal na koinonia, termo grego para se referir à comunhão entre os irmãos. Somente alguém que viveu a verdade da Igreja primitiva pode expressar a beleza do cristianismo de maneira tão profunda quanto Lucas descreveu no seu relato da convivência diária dos primeiros cristãos: “Da multidão dos que creram era só um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente seus os bens que possuía, mas todos compartilhavam tudo entre si, de forma que ninguém padecia necessidade” (At 4,32).

O testemunho, o gesto, o ato consumado são o bem materializado, a beleza acontecendo à medida que o pão é compartilhado, o vinho é tomado, os donativos são distribuídos, o abraço é dado, o sorriso é retribuído e o jardim frontal do templo é regado numa manhã fria de inverno.

O papa São João Paulo II, em sua Carta aos artistas de 23 de abril de 1999, fala da importância do artista, da sua tamanha responsabilidade em manifestar essa beleza revelada a nós e em nós por Cristo:

Esta manifestação fundamental do “Deus-Mistério” apresenta-se como estímulo e desafio para os cristãos, inclusive no plano da criação artística. E gerou-se um florescimento de beleza, cuja linfa proveio precisamente daqui, do mistério da encarnação. De fato, quando se fez homem, o Filho de Deus introduziu na história da humanidade toda a riqueza evangélica da verdade e do bem e, através dela, pôs a descoberto também uma nova dimensão da beleza: a mensagem evangélica está completamente cheia dela (JOÃO PAULO II, 1999, p. 5).

A arte sacra é a senhora observadora do cristianismo, a guardiã da beleza da história da Igreja e a testemunha fiel da santa fé em Cristo por meio das obras que produz. Cabe, pois, ao artista sacro, detentor dessa habilidade artística, expressar a beleza do Evangelho, que é Cristo, por meio da arte, bem como manifestar aos seres humanos o bem e a verdade por meio dessa beleza. Quando compartilha o que está em você com o outro, você transforma o bem em beleza.

Referências Bibliográficas

JOÃO PAULO II, papa. Carta aos artistas. [Vaticano]: Libreria Editrice Vaticana, 1999. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1999/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists.html. Acesso em: 13 jun. 2023.

SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2015.

TOMMASO, Wilma Steagall de. A beleza é pascal. Off-lattes, São Paulo, 10 abr. 2020. Disponível em: https://offlattes.com/archives/2467. Acesso em: 13 jun. 2023.

TOMMASO, Wilma Steagall de. Beleza e arte contemporânea na concepção de Marko Ivan Rupnik. Academia, [s. l.], 2019. Disponível em: https://www.academia.edu/40410469/Beleza_e_arte_contempor%C3%A2nea_na_concep%C3%A7%C3%A3o_de_Marko_Ivan_Rupnik. Acesso em: 13 jun. 2023.

TOMMASO, Wilma Steagall de. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus, 2017.

Marcos Oliva*

*é pesquisador de arte sacra, integrante do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea: Religião e História (Labô PUC-SP) e do grupo de estudo sobre Marko Ivan Rupnik (coordenado por Felipe Koller); graduado em Comunicação Social (Uninove) e pós-graduado em Cinema e Fotografia – Comunicação em Multimeios (Universidade Anhembi Morumbi). E-mail: [email protected]