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Publicado em número 196 - (pp. 11-17)

A Utopia de Jesus

Por Pe. Benedito Ferraro

Falar da utopia de Jesus é falar do Reino de Deus. O Anúncio do Reino é o núcleo central do Evangelho (cf. Mc 1,14-15; Mt 9,35-36; Lc 4,16-30; Mt 11,2-6. 25-26). Jesus iniciou sua pregação pelo Reino, foi perseguido por causa do Reino e foi morto por causa do Reino. Por isso, para compreendermos o sentido da utopia presente nos Evangelhos e no Novo Testamento, é preciso estar atentos ao ambiente messiânico-apocalíptico da Palestina do I século.

 

1. Jesus e o anúncio do Reino no contexto messiânico-apocalíptico

Jesus se insere num contexto carregado de muitas expectativas messiânico-apocalípticas. Basta relembrar a dominação que pesava sobre a Palestina desde o ano de 722 a.C., no Reino do Norte, e 587 a.C., no Reino do Sul. O povo da Palestina, terra de Jesus, sofreu a opressão por parte dos assírios, babilônios, medos, persas, gregos e romanos. Foram séculos de dominação política e cultural. Séculos de opressão econômica e, em muitos momentos, de verdadeiros massacres contra a população. Sobretudo com os romanos, podemos compreender que a realidade de vida na Palestina era extremamente dura. A partir da conquista de Pompeu (63 a.C.), podemos notar uma verdadeira devastação do país, com uma cobrança altíssima de impostos e uma agitação social generalizada: “Na sua conquista inicial, e particularmente nas reconquistas subsequentes, os romanos trataram os habitantes brutalmente a fim de induzir o povo à submissão. Repetidamente, os exércitos romanos incendiaram e destruíram completamente cidades e massacraram, crucificaram ou escravizaram as suas populações. Por exemplo, quando Cássio conquistou Tariqueia, na Galileia, “escravizou cerca de trinta mil homens”, diz Josefo, e posteriormente (43 a.C.) escravizou o povo de importantes cidades regionais, tais como Gofna, Emaús, Lida e Tamna (Ant. 14.120,272-75). Num caso, tal destruição foi feita simplesmente por causa da não obtenção, ou por atraso na obtenção, da arrecadação de impostos extraordinários (G.J. 1.180,219-220). Várias décadas mais tarde, Varo, legado da Síria, depois de capturar Séforis, “vendeu seus habitantes como escravos e incendiou a cidade” (Ant. 17.288-89). E mandou crucificar os rebeldes presos pelas tropas — cerca de 2.000 (Ant. 17.295)[1].

É dentro desse contexto de perseguição e opressão que se pode compreender a importância da utopia do Reino, anunciado por Jesus. A literatura apocalíptica que se desenvolveu sobretudo a partir do II século antes de Cristo e que avança até o II século depois de Cristo — embora seus primeiros escritos possam ser localizados bem antes, por volta do exílio da Babilônia (586-538 a.C.) —, marca muito bem a grande esperança da época. Na verdade, a apocalíptica trabalha num campo em que a realidade presente está em contradição com as promessas. Retrata a posição de grupos de protesto e resistência diante do opressor interno e externo. Jesus também pode ser compreendido nessa corrente, suscitando esperanças e expectativas com o anúncio do Reino. Não podemos nos esquecer de que Jesus era Judeu e como tal está inserido na tradição de seu povo, que ansiava por libertação[2].

 

1.1. As principais funções da literatura apocalíptica

Falar da literatura apocalíptica é falar do relançamento da utopia na história, pois sua finalidade básica é suscitar esperança para o povo enfrentar o sofrimento e encontrar forças para vislumbrar saídas em vista do futuro. Nesse sentido, podemos indicar três funções desta literatura e que acabam influenciando a dinâmica de todo o Novo Testamento.

 

a) A apocalíptica é um modo de se analisar a história

Diferentemente da escatologia profética, que “o fim a partir da história”, a apocalíptica “vê a história a partir do fim[3]. Exatamente porque acredita que Deus está no fim, pode-se fazer obra histórica. Em outras palavras, a apocalíptica reinventou a profecia e a relançou numa situação de opressão.

 

b) A apocalíptica é um movimento cultural

A literatura apocalíptica procura retomar a memória perigosa do passado, para reavivar os valores da tradição. Nesse sentido, tenta mostrar a importância da retomada desses valores num ambiente não favorável à sua vivência. Daí seu grande enraizamento no religioso: “Em vista da frequente associação da exaltação política e reavivamento religioso, não é surpresa que no tempo dos macabeus a revolta contra Antíoco Epífanes tivesse se iniciado como um ato de protesto religioso e tivesse tido um caráter religioso, de modo que, quando, pela primeira vez, a literatura apocalíptica se nos tornou evidente no livro de Daniel, é ela associada com um movimento de caráter tanto político como religioso”[4]. Contra-ataca-se o poder dos modelos do opressor através da resistência ideológica e contracultural, indo, se necessário for, até o martírio. Por detrás do confronto político, a apocalíptica deixa entrever uma verdadeira luta de deuses!

 

c) A apocalíptica é uma literatura de resistência

Os grupos que produzem a literatura apocalíptica surgem como forma de protesto contra a situação de dominação presente, que gera exclusão e marginalização e apontam para uma “virada”, que virá como intervenção de Deus na história. Nesse sentido, há não somente uma releitura das promessas antigas, mas também a “revelação de outras promessas que têm a ver com o fim deste mundo ou história e o advento de um novo mundo/história em que os grupos agora marginalizados, oprimidos, perseguidos, únicos ‘fiéis’ a Deus, serão salvos e desfrutadores. Esta ‘revelação’ de tudo o que acontecerá implica segurança de que as promessas realmente se realizarão. Para quem nada tem (bens, felicidade, liberdade), esta segurança do fim favorável é geradora de esperança e contribui fortemente para a constância na fé no meio dos sofrimentos. Era isso um escapismo futurista? Nas situações em que nascem, os textos apocalípticos não são evasivos, mas constituem uma literatura de resistência dos oprimidos; não criam conflitos de luta ofensiva contra os poderosos e sim um confronto contra-hegemônico no plano ideológico que torna o grupo coeso, debilita o opressor e ocasionalmente pode gerar uma defesa violenta[5].

A literatura apocalíptica, com essas funções delimitadas pela situação de dominação e buscando uma alternativa possível diante do sofrimento por ela causada, visava fundamentalmente a animar a história com o Espírito de Iahweh, dando coragem aos “crentes” para enfrentarem os momentos difíceis, que já têm seus dias contados. A esperança apocalíptica vem carregada de muita expectativa e apresenta algumas características significativas que ajudam na sua compreensão.

 

1.2. As características da literatura apocalíptica

 

a) “Este mundo” está condenado a desaparecer

A apocalíptica não espera que o mundo mude para melhor, pois prevê que “este mundo” vai desaparecer. O fim “deste” mundo é um dos problemas centrais da preocupação da apocalíptica, pois há uma impossibilidade total de continuidade entre o “éon” presente e o “éon” futuro. Por isso o fim do mundo é esperado e a salvação vai aparecer com o mundo novo trazido por Deus e ele será dado às pessoas piedosas com uma glória que não terá fim. Quando no meio popular se fala de fim de mundo, normalmente essa fala vem associada a grandes catástrofes ou convulsões sociais, indicando que a presente situação não tem mais sustentação. Logo, deve vir o fim! Deve mudar esta “geração” (toledot em hebraico), este “éon” (grego) este “século” (latim), esta “formação social” (linguagem sociológica). Dessa forma, a apocalíptica é muito pessimista em relação ao presente e indica a chegada de um mundo “qualitativamente diferente”, que é pensa do a partir de “cima” (cf. Ap 21,1-7).

 

b) Ressurreição dos mortos e julgamento final

O “mundo que vem” é acompanhado do juízo de Deus sobre os justos e injustos e da ressurreição de todas as pessoas (cf. Dn 12,2; Jo 5,28-29). O julgamento final está associado ao “Dia de Iahweh”, presente nos profetas e que influencia também o Novo Testamento, sobretudo no que se refere à prática de João Batista (cf. Mt 3,1-17; Lc 3,1-22). Também a perspectiva apocalíptica da ressurreição dos mortos influenciou os textos da Paixão, mostrando que muitos mortos ressuscitaram e apareceram na Cidade Santa depois da ressurreição de Jesus (cf. Mt 27,52-53).

 

c) O fim do mundo antigo e a vinda do novo mundo

A representação do fim do mundo normalmente é associada ao fogo, por ser elemento de purificação. Em seu lugar aparecem novos céus e nova terra, como já se fala em Is 65,17-25 e 66,22. A chegada do mundo novo é concebida de duas maneiras: ou Jerusalém, a Sião e a Terra Santa serão transformadas de maneira a se tornar o Jardim do Paraíso (cf. Is 65,17-25; Cl 3,9-10; 2Cor 5,17; Rm 8,16-30), ou se mostra que o mundo novo já está preparado no céu e que no fim dos tempos ele descerá sobre a terra (cf. Ap 21,1-7; 2Pd 3,13; Mc 13,24.31; Mt 19,28; Dn 9). Podemos notar que essa linguagem apocalíptica traz consigo uma referência à utopia e sua função no interior da história. Certamente podemos traçar um paralelo com o Jardim do Éden do livro do Gênesis, com a Terra Sem-Males da cultura Tupi-Guarani ou mesmo com a Sociedade sem Classes da tradição marxista. Na verdade, tem-se aqui a base antropológica dos mitos de origem e do fim da história. Em relação a Jesus, sua ressurreição se torna o “topo”, o lugar a partir de onde se pode analisar e compreender a história. Por isso o livro do Apocalipse o apresenta como o Cordeiro que tem o poder de abrir o sétimo selo (cf. Ap 8,1-13). A partir da ressurreição, o seguidor de Jesus tem plena certeza da vitória sobre o mal e sobre a morte e, por isso, age na história, apesar de todos os sofrimentos e da realidade em contradição com a promessa. Aliás, a própria morte de Jesus é interpretada em moldes apocalípticos, pois Jesus morre em contradição com o que pregou. No entanto, Deus o ressuscitou e confirmou seu caminho (cf. At 2,36; Jo 8,14; 14,6).

 

d) O dualismo na apocalíptica

Há uma estrutura fundamental na apocalíptica que é comandada pelo dualismo: o mundo presente passa, o outro mundo vem! Pelo fato de que a “virada” (cf. Lc 1,46-56; 6,20-26; 16,19-31) decisiva se anuncia já nas tribulações do presente, não haverá muito tempo para que os sofrimentos cheguem ao fim e a felicidade seja dada aos justos. Quaisquer que sejam as provas que ainda devem cair sobre a comunidade dos piedosos, elas nada podem contra a certeza de que a salvação se aproxima. Esse dualismo revela, ao mesmo tempo, uma visão pessimista e uma visão otimista. O pessimismo se revela na caducidade e transitoriedade do mundo presente e na sua perversidade. Por isso ele vai passar. Ele não tem consistência e não poderá resistir indefinidamente. Podemos compreender, nessa perspectiva, a afirmação de Jesus em Jo 18,36, falando que “seu reino não é deste mundo”, pois o reino representado por Pilatos, por causa de sua perversidade, teria de ceder lugar ao “novo mundo”! O otimismo se revela no triunfo de Deus apesar das vitórias aparentes do mal. Essa concepção otimista é mais viva nos períodos de crise para poder sustentar a fé dos que estão sendo perseguidos. Nesse sentido, a linguagem do futuro apresentada pelos textos apocalípticos é funcional, nunca uma linguagem antecipada. O que importa é buscar a resposta para a situação presente, apoiando-se na certeza da vitória que virá. Do ponto de vista do movimento dos sem-terra, podemos compreender esta característica da literatura apocalíptica, pois, ao iniciarem a luta pela terra, eles já a conquistam nas suas representações. Assim, “o futuro das representações apocalípticas não é o conteúdo da mensagem, mas o meio para exortar/consolar e manter a esperança para o momento presente de crise e sofrimento[6].

 

1.3. O anúncio querigmático da apocalíptica: “Construir o céu na terra” (cf. Is 65,17-25; Ap 21,1-7)

A apocalíptica traz, em seu bojo, desde o seu nascimento, um grande poder querigmático: anuncia a esperança onde só se vê desgraça. Proclama a esperança, quando tudo parece perdido! Busca construir o céu na terra, para poder transformar a terra. Esta literatura coloca-se frontalmente contra a dinâmica neoliberal que critica todos aqueles que buscam lutar contra a injustiça, afirmando que quem quer o céu na terra acaba produzindo o inferno! Por isso esta literatura, que relança a utopia, deve ser relida por nós hoje, para suscitar esperança e a busca de caminhos novos de libertação[7].

 

2. Jesus: Reino de Deus e Deus do Reino

Como nos afirma a Evangelii Nuntiandi, 7.8: “O próprio Jesus, ‘Evangelho de Deus’, foi o primeiro e o maior dos evangelizadores”… “Como Evangelizador, Cristo anuncia em primeiro lugar um Reino, o Reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser ‘o resto’, que é ‘dado por acréscimo’. Só o Reino, por conseguinte, é absoluto, e faz com que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com ele”.

Por outro lado, podemos notar, nos textos evangélicos, que Jesus apresenta o Deus do Reino a partir das raízes que estão no Antigo Testamento. Um Deus que se apresenta sempre ligado à história, ao mundo e às pessoas: “Deus nunca aparece como um Deus-em-si, mas como um Deus para a história e, por isso, como o Deus-de-um-povo. ‘Eu serei vosso Deus e vós sereis meu povo’ a confissão de Israel. Nela se proclama um Deus por essência relacional, que se revela e que é em relação a um povo. Por mais diferentes que sejam as tradições sobre Deus no AT, têm em comum isto: que é um Deus-de, um Deus-para, um Deus-em, nunca um Deus-em-si. Assim, no êxodo é Deus quem escuta os clamores de um povo para libertá-lo, constituí-lo em povo e torná-lo seu povo. Nas tradições proféticas é Deus quem defende os oprimidos, denunciando os opressores e anunciando uma nova aliança com seu povo. Nas tradições apocalípticas é Deus quem refará escatologicamente seu povo e a criação toda. Nas tradições sapienciais Deus continua aparecendo como providente, e quando se reflete sobre seu silêncio se trata de um silêncio ativo e dizente; não é mera ausência de Deus na história, mas silêncio que se faz sentir. A partir destas tradições também Jesus compreende a realidade última como unidade dual, um Deus que se dá à história ou uma história que chega a ser segundo Deus. Essa unidade dual, que é a realidade última, é o que formalmente se quer expressar com ‘o reino de Deus’ e o que Jesus anunciou”[8].

 

 

 

2.1. Jesus, como profeta apocalíptico, retoma o projeto de Deus

Jesus anuncia O Evangelho do Reino (cf. Lc 4,18.43; Mt 11,5; Mc 1,14-15), num ambiente de dominação e opressão. Nesse sentido, ele procura resgatar a memória de salvação e libertação presente na história do povo de Israel. Ele “desengaveta” a promessa de vida e vida abundante para todos (cf. Jo 10,10), para mostrar que o Deus que ele prega é o Deus da Vida, o Defensor, o Goel do povo, cuja ação libertadora está presente na ação histórica de Deus (cf. Ex 3,7-10). Na Palestina do I século, sob dominação dos romanos, Jesus retoma o projeto de Deus, o projeto da Vida, presente no Antigo Testamento. Anuncia o Reino aos pobres e mostra-os como os primeiros destinatários de sua mensagem de salvação (cf. Mt 11,5; Lc 7,22). Estamos diante do núcleo central da prática e mensagem de Jesus que é “Evangelizar o Reino”. Evangelizar é, pois, resgatar a possibilidade da vida para quem não tem vida. É, na verdade, recriar a “utopia”, o “sonho”, para quem estava esmagado pela situação de opressão que inviabilizava a possibilidade da vida. Jesus, com sua prática, “refaz” a utopia, aponta para a possibilidade de se resgatar a vida dos pobres e excluídos: “Sempre em relação com a libertação dos pobres, deve-se considerar um ‘logion’ da fonte Q, testemunhado por Mt 11,5 e Lc 7,22. Para além do teor exato das palavras, pode-se reter, como provável, que este remonta substancialmente a Jesus. A referência a Is 61,1, quanto à alegre notícia dada aos pobres, e a Is 29,18-19, quanto às curas indicadas, mostra que em Jesus se cumpriram os sinais messiânicos do tempo escatológico preanunciado pelo profeta. Emerge além disso que a evangelização dos pobres, posta no fim do ‘logion’, recapitula os gestos de libertação antes indicados. Evidencia-se assim que os pobres são evangelizados não só com uma proclamação verbal, mas também por meio de gestos eficazes de cura dos doentes e da ressurreição dos mortos. Jesus é um evangelista eficaz e operativo. Os beneficiários naturais do Reino de Deus, isto é, os pobres, como resulta da bem-aventurança, encontram uma libertação efetiva na sua atividade taumatúrgica. Por ela, irrompem na história os tempos escatológicos[9].

Diante da situação de dominação, fruto da dominação do Império Romano, Jesus aponta a retomada da tradição da terra como mediação da vida para todos. Anunciar o “Ano da Graça do Senhor” foi uma teimosia por parte de Jesus, que lhe valeu imediatamente a perseguição por parte dos grupos dominantes e que procuravam legitimar o status quo. Basta olharmos o contexto do anúncio em Lc 4,14-30 e veremos que, no final, nos vv. 28-30, nos defrontamos com o rito do Bode Expiatório que deve ser eliminado para se retomar a tranquilidade da “ordem estabelecida”: expulsão da cidade, subida ao monte e tentativa de lançamento para o precipício. Percebemos, pois, que o resgate da vida, proposto a partir da posse da terra, foi uma retomada da memória perigosa do povo em relação à terra (cf. Lv 25,8-17; Dt 15,1-18; Ex 23,10-11; Sl 24,1;115,16). Quer como prática efetivada (cf. Nm 36,4-11), quer como utopia (cf. 2Cr 36,21; Ez 46,16-18; Is 61,1-3)[10] a retomada da tradição do Ano Jubilar, por Jesus, mostra a importância que a igualdade e a partilha têm no interior de sua pregação. A paz, nesse sentido, só pode ser fruto da justiça (cf. Is 32,17) e da gratuidade a partir da prática de misericórdia (cf. Mc 2,1-3,6; Jo 13,34), sendo os pobres os primeiros beneficiários dela, mas repercutindo na vivência de todos (cf. Sl 133), pois Deus, como nos afirma Jesus de Nazaré, quer que todos sejamos irmãos e irmãs, filhas e filhos do mesmo Pai (Mt 6,7-12; Lc 11,1-4), e por isso, ele escolhe os últimos para que ninguém seja excluído. Cremos que temos neste anúncio do Reino aos pobres e excluídos o prenúncio de uma sociedade onde deve haver lugar para todos, sem exclusão de ninguém (cf. At 2,42-47; 4,32-35), uma sociedade onde caibam todos e todas. A partir do anúncio do Reino, somos convidados(as), continuamente, a buscar alternativas de inclusão. Essa utopia não deve morrer nunca!

 

2.2. A reinvenção da profecia a partir da apocalíptica

A grande novidade da literatura apocalíptica é a reinvenção da profecia num tempo de duras cargas que pesavam nos ombros do povo, devido à dominação que já durava vários séculos. O anúncio do Reino é feito num mundo conflitivo. Assume os conflitos e aponta para a necessidade de conversão (cf. Mc 1,15). E conversão significa, fundamentalmente, mudar a mentalidade. Para tanto, há a exigência de se mudar os critérios de julgamento. Uma das exigências, nessa mudança de mentalidade, é a convicção de que a presente situação não é a última possibilidade da história, pois Deus pode possibilitar alternativas. Desse modo, a mensagem do Reino, revestida da roupagem apocalíptica, recria a profecia, mostrando que a história tem futuro e, portanto, o ser humano pode ter esperança, por pior que se apresente a presente realidade. Nessa ótica, a utopia do Reino, presente na pregação de Jesus, exige de todos — mesmo dos pobres — a fé no futuro, pois o futuro a Deus pertence! Certamente, essa exigência de fé nas possibilidades de Deus é um dos grandes desafios que encontramos na prática pastoral. Muitas vezes, os pobres e excluídos acabam desanimando diante das dificuldades e não acreditam que há uma possibilidade histórica de mudança. Fecham-se à novidade e acabam caindo nos “sonhos” fantasiosos das classes dominantes que anunciam o “fim do mundo”. E como o fim já está próximo, não adianta apostar no novo que pode germinar na história. Por outro lado, há os que se recusam a aceitar o Reino que chega como graça que anuncia a salvação aos pobres e excluídos. Usam seu poder para calar o grito dos que sofrem e estão em necessidade e acabam matando o próprio grito de Deus que clama no grito dos que sofrem (cf. Jr 16,22). Fecham-se em sua autossuficiência e acreditam que a história já chegou ao seu final. A partir de agora, não há mais lugar para a utopia. Basta repetir o presente! O futuro é pura cópia do presente. O sonho acabou!

 

3. A Utopia retomada

Em tempos de Pax Romana, que se inicia com Augusto Tibério (14 a.C. — 29 d.C.), a “Nova Ordem” acabou modificando ainda mais as formas tradicionais da vida do povo, aprofundando o processo que já fora iniciado com a dominação grega, há aproximadamente 300 anos. O poder romano acelerou o processo de concentração da terra, através do endividamento progressivo dos camponeses, que não conseguiam pagar os impostos exigidos por Roma e suas terras acabavam nas mãos da oligarquia do Templo ou com os colonos romanos. Os antigos proprietários acabavam como assalariados dos grandes latifúndios ou acabavam vagando sem destino fixo à procura de emprego ou de algum trabalho temporário para poder sobreviver. Esse processo era acompanhado de muita violência por parte dos romanos, reagindo com dureza contra todo e qualquer movimento de contestação. Essa situação produziu aumento da pobreza no campo e concentração da riqueza nas cidades[11].

 

3.1. Confronto com o Império Romano

No período histórico do Império Romano, a situação agravou-se com os acontecimentos da conjuntura internacional: “Neste contexto conturbado de revoltas e golpes militares, três acontecimentos causam uma crise muito grande na vida das comunidades cristãs: a perseguição de Nero em Roma (64), o levante e o massacre dos judeus em várias partes do Império, sobretudo no Egito (66) e a revolução judaica na Palestina (66) que levou à brutal destruição de Jerusalém pelos romanos (70). Um quarto acontecimento mais interno às comunidades, a saber, a morte dos apóstolos e das testemunhas da primeira geração, fez aumentar esta crise e contribuiu para que a vida das comunidades entrasse numa nova fase”[12]. Os cristãos perderam o privilégio, que era dos judeus, da isenção do culto ao imperador e se tornaram alvo das perseguições por parte do Império. Desse modo, os cristãos viveram como pequena minoria sem nenhuma influência política.

O cristianismo nascente teve de acreditar na força de Deus na história e, para enfrentar tal situação, pautou-se pelo exemplo da Testemunha Fiel, Jesus Cristo, tão bem apresentado no livro do Apocalipse, que torna a profecia possível em tempos de novos sacrifícios exigidos pelo Império. Além da dominação pela força política e pelo poder econômico, sobretudo através dos tributos ou mesmo pela escravização de populações inteiras, essa situação era legitimada pela ideologia dominante, como muito bem deixa entrever este texto de Flávio Josefo, mostrando que a guerra contra os romanos seria como um insulto a Deus: “Pois a quem tomareis como companheiros para a guerra? Todos os que vivem no mundo habitável são romanos, ou a eles sujeitos… Pois não há outra ajuda nem socorro senão em Deus; mas a este também o têm os romanos, porque, sem ajuda particular sua, seria impossível que Império tal e tão grande permanecesse e se conservasse”[13].

É diante do Império que se apresenta como o criador da Paz e da Ordem que o cristianismo se insurge, assumindo a espiritualidade advinda da apocalíptica para se sustentar nos momentos de crise e de perseguição. É baseado nessa mística que recria a utopia e aponta para as alternativas, que Deus sustenta com sua promessa (cf. Ap 21,1-7). Sobretudo em Ap 13, notamos uma crítica veemente ao Império: “O capítulo expressa a vida e a consciência da comunidade cristã oprimida pelo Império. Ao lermos este capítulo, sabemos como os cristãos viviam, sentiam e pensavam o Império Romano. Eles viviam no Império, mas estavam excluídos dele (pois não podiam comprar e vender); viviam como condenados à morte por não adorar o Império idolatrizado. A comunidade cristã representa a resistência ao Império; era uma comunidade de fé que descobria a presença de Satanás no Império. Tinha igualmente a inteligência para entender (calcular) a fragilidade deste Império. É a partir desta situação de exclusão, resistência e fé, que o autor faz esta crítica teológica ao Império Romano. Ele escreve para as Igrejas da Ásia Menor no final do primeiro século. É neste contexto histórico que se deve interpretar o Apocalipse. Também para nós esta visão pode ser paradigma e critério de interpretação[14].

Alicerçados na mística apocalíptica da esperança, que apontava o Ressuscitado como vencedor, os cristãos recusavam a idolatria da Besta e do dinheiro. Por isso, eram malvistos e perseguidos: “Condenados à morte economicamente ao serem excluídos do mercado; condenados à morte política, cultural e espiritualmente, por não reconhecerem a Besta como deus, os cristãos não aceitam ser transformados em objetos de Baal (o deus Império) e em objetos de Mamon (o deus dinheiro)[15]. Por isso enfrentam o Império e mostram por sua prática que o Império Romano não é um sujeito absoluto a quem ninguém possa resistir. Por sua persistência e coragem, os cristãos romperam com a opressão e acreditaram na possibilidade do futuro. Hoje, podemos nos pautar por tal postura, pois passamos também por momentos de ídolos e sacrifícios que procuram dilapidar os fundamentos da vida, baseada na justiça, na solidariedade e na partilha. Pregam o espírito de competição e lucratividade, e, sobretudo, do salve-se quem puder!

 

3.2. O Confronto com o neoliberalismo e o redimensionamento da utopia hoje

É pensamento corrente, hoje, se falar do fim da história e do fim das utopias. Mas tudo indica que tal “declaração do fim da utopia não passa de manobra para encobrir utopias que não se querem confessar como tais[16]. Tudo indica que as utopias fazem parte da condição humana e nenhum pensamento humano pode situar-se fora do horizonte utópico. O ser humano busca sempre transcender-se, procurar alternativas, mesmo quando tudo esteja a indicar a impossibilidade de mudança. É próprio do humano buscar uma realidade para além da presente situação. Isso indica que a utopia faz parte da condição humana. Negar a utopia é negar a própria condição humana[17]. Porém a realização desse desejo de ultrapassar o presente nunca se dá de forma plena no interior da história. Por isso o ser humano “no seio da condição humana deve vislumbrar a esperança do impossível, encarnando-a em um mundo que continua condicionado pela morte. Contudo, como não se pode derivar a condição humana das leis das ciências empíricas, nunca se sabe a priori se uma meta atual vai além dos limites do possível e, portanto, da condição humana. Embora se conheça a morte como raiz da condição humana, não se conhece necessariamente onde se encontra a cada passo da ação humana o limite imposto por essa condição humana. No agir é que se descobre a condição humana. Andando é que se faz caminho(‘se hace camino al andar…’)[18].

É com base nessa esperança que podemos compreender a busca da Nova Terra, da Terra Sem-Males, como o horizonte da própria história. “Nunca totalmente alcançado, mas sempre desafiando a criatividade, a inventividade e a perspicácia humanas. É uma utopia não factível na história, mas que continua sustentando a esperança contra toda esperança de que “o novo” pode acontecer!

Essa esperança contra toda esperança retrata a intuição presente na apocalíptica, pois indica a possibilidade de alternativa para a presente situação entendida pelo neoliberalismo como a definitiva e que não permite nenhuma outra alternativa. Na verdade, o neoliberalismo se apresenta como “a alternativa, contra a qual não há alternativa! Porém, hoje estamos diante de vários sinais que indicam uma nova postura. A crítica ao neoliberalismo como instituição absoluta está abrindo caminho para a busca de alternativa históricas que visam à construção de uma sociedade onde caibam todos e todas[19]. Nesse sentido, “fazer oposição ao neoliberalismo significa, antes de tudo afirmar que não existem instituições absolutas, capazes de explicar ou conduzir a história humana em toda a sua complexidade. O homem e a mulher são irredutíveis ao mercado, ao Estado ou a qualquer outro poder ou instituição que pretenda impor-se como totalitária. Significa proteger a liberdade humana, afirmando que o único absoluto é Deus e que sei, mandamento de amor se expressa socialmente na justiça e solidariedade. Significa finalmente, denunciar as ideologias totalitárias, pois elas, quando conseguiram se impor, só apresentaram como resultado injustiça, exclusão e violência[20].

 

Concluindo

— Temos uma certeza ao final desta reflexão: É preciso continuar sonhando! E sonhar com os pés no chão. O Reino de Deus não se deixa enquadrar por nenhum esquema ou concretização histórica (cf. Sl 33,10-11). Ele passa por essas encarnações históricas, mas nunca se identifica com elas. Toda e qualquer busca de identificação corre o risco do totalitarismo.

— O sonho e a utopia fazem parte da condição humana. Na linguagem popular, diz-se que “a esperança é a última que morre”! Enquanto houver vida, enquanto houver o grito dos oprimidos, a esperança continuará a fazer seu caminho na história, pois acreditamos, por nossa fé bíblica, que é Deus que grita no grito dos pobres e oprimidos. Calar sua voz é pecar contra Deus!

— A Ressurreição de Jesus mostra que o impossível aconteceu como ação do próprio Deus. Jesus, o Vivente, a Testemunha Fiel, continua agindo na história e puxando-a para sua plenitude. Por isso podemos esperar contra tudo e contra todos pela chegada da Nova Terra (cf. Ap 21,1-7), mesmo sendo ela um “impossível” para a condição humana, mas não impossível para o Deus Libertador.

— Finalmente, sabemos que somos convidados a progredir sempre no caminho da plena realização humana, esperando, mesmo no meio do sofrimento, a gloriosa libertação dos filhos e filhas de Deus e da própria natureza (cf. Rm 8,14-39). Não há limite para esta busca, pois somos convidados(as) a ser perfeitos(as) e misericordiosos(as), como perfeito e misericordioso é nosso Pai (cf. Mt 5,48; Lc 6,36).



[1] HORSLEY, R. A.- HANSON, J. S., Bandidos, Profetas e Messias. Movimentos Populares no tempo de Jesus, Paulus, SP, 1995, p. 44. Cf. também MESTERS, C., “Os Profetas João e Jesus e os outros Líderes Populares daquela Época”, em RIBLA, 1 (1988/1), p. 75, onde o autor mostra a violência ocorrida no governo de Arquelau entre o ano 4 antes de Cristo e o ano 6 depois de Cristo: “Foi um período marcado pela explosão da violência. Foram dez anos de revoltas, de repressão, de massacres. No dia mesmo em que Arquelau se apresentou pela primeira vez ao povo, no dia de Páscoa do ano 4, ele provocou um massacre de 3.000 pessoas”.

[2] Cf. VERMÈS, G., Jesus, o Judeu. Uma Leitura dos Evangelhos, feita por um Historiador, Loyola, SP, 1990; A Religião de Jesus, o Judeu, Imago, RJ, 1995.

[3] Cf. CROATTO, J. S., “Apocalíptica e Esperança dos Oprimidos (Contexto Sociopolítico e cultural do Gênero Apocalíptico)”, em RIBLA, 7 (1990/3), p. 14; ELLUL, J., Apocalipse: Arquitetura em Movimento, Paulus, 1980, pp. 22-23: “O apocalipse não nos descreve nenhum momento da história, mas revela-nos a profundidade permanente da história; é, pois, poderíamos dizer, uma penetração do Eterno no Tempo, da ação do Fim no Presente, da descoberta do Novo Éon, não no final dos tempos, mas nesta história, do Reino de Deus escondido neste mundo; de um lado, ele revela, portanto, o nó do problema, nó insolúvel, e não faz apenas um apelo à passividade, mas à obra específica da Esperança”.

[4] ROWLEY, H. H., A Importância da Literatura Apocalíptica. Um Estudo da Literatura Apocalíptica Judaica e Cristã de Daniel ao Apocalipse, Paulus, SP, 1980, p. 17; cf. também pp. 51-53.

[5] CROATTO, J. S., op. cit., p. 12.

[6] CROATTO, J. S., op. cit., p. 20.

[7] Cf. RICHARD, P., “Apocalíptica: Esperança dos Pobres“, em RIBLA, 7 (1990/3), pp. 5-7.

[8] SOBRINO, L., Jesus, O Libertador. I. A História de Jesus de Nazaré, Vozes, Petrópolis, 1994, pp. 107-108.

[9] BARBAGLIO, G., “O Reino de Deus e Jesus de Nazaré”, mimeografado, p. 5, extraído de VV. AA., Conoscenza storica di Gesù, Paideia Editrice, Brescia, 1978, pp. 103-119.

[10] GNUSSE, R., Não Roubarás. Comunidade e Propriedade na Tradição Bíblica, Loyola, SP, 1986, pp. 52-77; KIPPENBERG, Religião e Formação de Classes na Antiga Judeia, Paulus, SP, 1988, pp. 59-64.

[11] Cf. MÍGUEZ, N. O., “Contexto Sociocultural da Palestina”, em RIBLA, 22 (1995/3), pp. 24-25.

[12] MESTERS, C. e OROFINO, F., “As Primeiras Comunidades Cristãs dentro da Conjuntura da Época. As Etapas da História, do ano 30 ao ano 70”, em RIBLA, 22 (1995/3), p. 42.

[13] JOSEFO, F., Las Guerras de los Judíos, Tomo I, Libros CLIE, Barcelona, 1988, p. 260, citado por HINKELAMMERT, F., Sacrifícios Humanos e Sociedade Ocidental: Lúcifer e a Besta, Paulus, SP, 1995, p. 118. Cf. também WENGST, H., Pax Romana: Pretensão e Realidade. Experiências e percepções da paz em Jesus e no Cristianismo primitivo, Paulus, SP, 1991, pp. 16.28.

[14] RICHARD, P., Apocalipsis: Reconstrucción de la Esperanza, DEI, San José, 1994, p. 140.

[15] RICHARD, P., op. cit., p. 144.

[16] HINKELAMMERT, F., “O Cativeiro da Utopia. As Utopias conservadoras do Capitalismo atual, o Neoliberalismo e o espaço para Alternativas”, em REB, 216 (dez/94), p. 815.

[17] Cf. HINKELAMMERT, F., op. cit., p. 816.

[18] HINKELAMMERT, F., op. cit., p. 817.

[19] “Partilha-se profundamente a convicção de que um Projeto de Libertação hoje tem de ser um Projeto de sociedade na qual caibam todos e todas, e que isto implica uma ética universal, porém não dita princípios éticos universalmente válidos. Este Projeto tem que enfrentar a lógica da exclusão que está na base da sociedade neoliberal e da proposta globalizadora. Deve enfrentar a este Mercado Total ou capitalismo totalizante e suas implicações multidimensionais. Deve questionar a racionalidade econômica imposta e a eficiência competitiva. Um dos maiores desafios é a conquista de uma ética econômica justa que coloque o ser humano no centro e como eixo das decisões e não o capital e o lucro como se tem presenciado até o presente” (GONZÁLEZ BUTRON, M. A., “Desde el Mundo de Ias Excluidas para un Mundo donde quepan todos e todas. Por la Visibilización de las Invisibles” em PASOS, 70 (março/abril/1997), p. 5.

[20] O Neoliberalismo na América Latina. Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina. Documento de Trabalho, Loyola, São Paulo, 1997, nº 11, p. 19. Este texto focaliza as razões do enfrentamento que se deve fazer ao neoliberalismo, oferecendo pistas concretas para a ação pastoral e social.

Pe. Benedito Ferraro