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Unidade religiosa e respeito às diferenças: Dignitatis Humanae e Nostra Aetate

14/08/2024

Em meio a uma sociedade cada vez mais pluralista e sincrética, parece-nos essencial falar em liberdade religiosa e em diálogo interreligioso. Mas nem sempre isso acontece de forma natural e pacífica, basta vermos conflitos recentes pelo mundo a fora. Muitos passos já foram dados, mas é sempre bom recordar o ponto de partida e fundamento deste processo, que está no Concílio Vaticano II.

Paris, France – September 23rd, 2012: Group in charge of making Madeleine church cleansing meets the priest on the stairway before the ceremony.

Por Darlei Zanon, jornalista e assessor editorial da PAULUS Editora

Eis o artigo:

Já apresentamos nesta seção as quatro constituições dogmáticas do Vaticano II, que formam, como explicou dom Manuel de Almeida Trindade, bispo português falecido em 2008, como que uma árvore,: “o tronco é a Igreja na sua constituição essencial: luz das gentes (Lumen Gentium); as raízes são a Sagrada Escritura (fonte constitutiva) e as Tradições (fonte interpretativa): Dei Verbum; a seiva é a Oração (de modo particular a Liturgia), que mantém vivo o tronco: Sacrosanctum Concilium; a casca é o contato da Igreja com o mundo, do qual ela deve constituir a alegria e a esperança (Gaudium et Spes).” Agora iniciamos a percorrer os ramos e as folhas desta árvore, ou seja, as declarações e os decretos, que tratam de temas complementares às constituições. Vamos iniciar conhecendo os documentos sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e sobre o diálogo interreligioso (Nostra Aetate), duas das três declarações do Concílio. No próximo artigo analisaremos a terceira, sobre a educação cristã (Gravissimun Educationis).

Dignitatis Humanae foi um dos textos mais discutidos e alterados do Vaticano II. Isso se deve ao delicado tema que aborda, mas principalmente à grande transformação de mentalidade que trouxe. Ele contribuiu de forma decisiva para a mudança de atitude e superação de uma visão redutiva do magistério com respeito às outras tradições religiosas, passando-se a ver o lado positivo das religiões não cristãs. Representa a revisão da teoria de exclusividade da verdade que serviu para justificar séculos de intolerância. Os princípios expostos nesse documento constituem um pressuposto essencial e estruturante para a dinâmica ecumênica e interreligiosa concretizada pela Igreja nos anos posteriores.

O primeiro capítulo da declaração trata de aspectos gerais da liberdade religiosa. Logo no segundo parágrafo afirma: “o Concílio declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa”. Cada um tem o direito de procurar a verdade em matéria religiosa de modo a formar juízos de consciência retos e verdadeiros. Nenhum indivíduo ou comunidade religiosa deve ser coagido por qualquer pessoa ou grupo. Em muitos países vemos estes direitos desrespeitados, seja por parte dos cristãos, seja por outras religiões. O documento chama a atenção ainda para o papel do governo civil na garantia desses direitos. Ele deve garantir e promover a liberdade religiosa, que está também associada à responsabilidade social, segundo DH 8.

No segundo capítulo, a temática da liberdade religiosa é abordada à luz da Revelação. Vemos expresso aí o princípio teológico de que a resposta à revelação é sempre um ato livre e pessoal. A fé é esta resposta, e por isso pode ter muitas variantes. Enfatiza, porém, que a Igreja Católica segue o caminho de Cristo na promoção da paz e da liberdade; e que os cristãos devem dar exemplo de respeito à liberdade religiosa.

Assim como as constituições analisadas anteriormente mostram grande abertura e diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo, aqui vemos a abertura ao diálogo com as outras religiões, que fica ainda mais claro nos decretos Orietalium Ecclesiarum e Unitatis Redintegratio, sobre o ecumenismo (que veremos em outro artigo) e na Nostrae Aetate, sobre a relação com as religiões não cristãs. Este é o menor dos documentos do Vaticano II, com apenas cinco números, e foi aprovado com 1763 votos a favor, 250 contra e 10 nulos. A Nostrae Aetate inicia com a reflexão de que todos os povos, em todos os tempos, buscam a Divindade Suprema, o Absoluto, sendo que todas as religiões têm algo em comum, pois procuram respostas para questões existenciais da condição humana: O que é o homem? Qual é o sentido e o fim da vida? Qual é o caminho para chegar à felicidade? E assim por diante.

A seguir, apresenta uma breve descrição do hinduísmo (NA 2), do budismo (NA 2), do islamismo (NA 3) e do judaísmo (NA 4). A nova relação com os judeus foi decisiva para a origem da presente declaração. Estudiosos afirmam que o encontro de João XXIII com Jules Isaac, historiador judeu, em junho de 1960, foi um momento importante na gênese do documento. Isaac manifestou sua admiração pelo gesto de João XXIII de abolir, em 1959, as fórmulas negativas presentes no ritual romano sobre os judeus e muçulmanos, até então definidos como “pérfidos”. A partir daquele encontro o papa refletiu sobre a necessidade de o Concílio discutir sobre o tema do judaísmo e do antissemitismo, além da sua relação com as religiões de modo geral.

A conclusão da Nostrae Aetate convoca todos a promoverem o diálogo fraterno e o mútuo conhecimento e estima; e enfatiza que a Igreja reprova qualquer tipo de discriminação e perseguição. Introduziu uma significativa mudança na forma de tratamento, passando a destacar-se o respeito e a acolhida. Esse documento carece de bases doutrinais e perspectivas teológicas mais aprofundadas, mas se adequa perfeitamente ao espírito pastoral do Concílio, traduzindo uma visão mais aberta sobre o mundo e mais otimista com respeito à dinâmica de salvação. Nesse sentido, conseguiu promover uma mudança de perspectiva, conduzindo à compreensão, à estima, ao diálogo e à mútua cooperação.

Antes do Concílio, era marcante a visão de que “fora da Igreja não há salvação”. O Vaticano II não nega esta afirmação, mas também não a enaltece. Mantendo a convicção da centralidade de Cristo na História da Salvação, reconhece o valor e os elementos positivos de cada religião. Antes via-se as outras religiões como obstáculo a ser superado. Agora abre-se espaço ao diálogo, adotando a perspectiva da praeparatio evangelica, ou seja, no plano da pedagogia divina as outras religiões são situadas como preparação ao Evangelho. Há no documento muita cautela: não assume o valor salvífico das outras religiões, mas respeita a parcela de verdade presente em cada uma delas.

Os documentos conciliares foram o ponto de partida necessário para promover o diálogo e o respeito cada vez mais necessários e exigidos no mundo atual, composto por cerca de 2,4 bilhões de cristãos, 1,9 bilhão de muçulmanos, 1,15 bilhão de hindus, 521 milhões de budistas, 30 milhões de siques e 15 milhões de espírita e outros 15 milhões judeus, além de milhões de seguidores de religiões tradicionais chinesas e outras religiões étnicas. Para nos motivarmos ainda mais ao diálogo, nunca é demais enfatizar os esforços que o papa Francisco tem feito para estreitar laços com todos os povos e religiões, participando de diversos encontros e eventos. Além das diversas mensagens em que trata do tema do diálogo e da paz entre as religiões, a sua encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, estabelece o diálogo e o respeito à diversidade como pressupostos para uma amizade social verdadeira que seja capaz de gerar a fraternidade e a paz. Se ainda não a leu, vale a pena dedicar algumas horas ao aprofundamento do conteúdo da Fratelli Tutti juntamente com as declarações do Concílio.